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O Museu de Arte Contemporânea de Serralves aproximou-se de 2017 deixando o registo de um último ano marcado por conferências e conversas com algumas das maiores personalidades da esfera artística a nível nacional e internacional. A instituição manifesta o seu compromisso com a promoção da arte contemporânea e dá mais um passo no caminho para o avanço e conhecimento da arte e da cultura no nosso país.

A proposta foi lançada para pensar toda a esfera da arte contemporânea, desde a sua produção nas mais variadas formas, à sua exposição, curadoria e colecionismo, e suas relações com a atualidade. O auditório e a biblioteca do museu tornaram-se palcos de ocasiões inéditas, algumas que se destacam, aqui, pela possibilidade de representarem esta forte programação.
 

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Como o Presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira indica [1], o ciclo Um objeto e seus discursos já está inscrito na rotina cultural da cidade. Uma vez por semana, em diferentes espaços, vários objetos artísticos são abordados e explorados por personalidades da arte e da cultura nacionais.

João Sousa Cardoso, convidado a intervir na sessão de 26 de novembro de 2016, defende a importância de repensar toda a arte sob um novo olhar. Procura compreender e rever cada obra na atualidade, revisitando-a no presente independentemente do momento da sua produção. Sugere-nos atribuir-lhe novos significados e interpretações, permitindo que desperte, em nós, outros sentidos e experiências. Só assim impedimos que qualquer criação artística se esgote no tempo e no espaço, possibilitando que permaneça intemporal e contrariando a sua condição efémera. A arte passa, assim, a viver e a circular num revivalismo da sua própria existência.

O alargamento do tempo de cada obra é determinado, também, pelo seu autor. Tal é nítido no trabalho do conceituado artista Álvaro Lapa, mas, particularmente, quando este escreveu numa tela sua "Em que pensas? No tempo todo", objeto convocado para análise. Ora, estas palavras, ao indicarem uma dimensão temporal infinita, proporcionam múltiplas interpretações e uma abertura do campo de análise e de compreensão da obra. Mesmo que, visualmente, o quadro sugira uma leitura a partir das duas formas nele visíveis, a de uma mulher e a de um homem, a frase tem mais impacto no espetador.

Esta obra, datada de 1979/80, pertence à Coleção de Serralves, mas nunca tinha sido exposta e, como Ricardo Nicolau referiu no encontro, foi um privilégio vê-la ao vivo. Falar desta pintura pode iniciar-se por identificá-la como particularmente relacionada com a escrita de Lapa e, por isso, bem representativa do que alcançou enquanto artista livre e global. Foi autor de variadíssimas obras de literatura e pintura, as quais se encontram intimamente relacionadas entre si e ligadas ao seu tempo. E, precisamente, para associar essas duas vertentes do trabalho artístico, a plástica e a literária, Miguel-Manso esteve presente nesta ocasião, confessando ter como grande influência a obra de Lapa e tendo também começado por ser pintor, para se dedicar, de seguida, à poesia. O poeta sugere-nos não desvendar na totalidade a obra sobre a qual nos debruçamos e, pelo contrário, defende que o enigma se mantenha, pois, como Lapa referiu "se eu puder ler uma pintura não regresso a ela".

Contudo, ainda assim, podemos meditar em conjunto sobre a obra, tal como João Sousa Cardoso sugeriu no início da sua intervenção. Começando por reconhecer, humildemente, o prazer que foi ter Álvaro Lapa como professor, revelou o impacto que isso causou na sua vida. Ainda hoje, e sempre que sente ser necessário, João Sousa Cardoso retorna à obra deste conceituado artista português para se dedicar a ela uma vez mais. Para tal, o artista visual explica que se deve vê-la e lê-la, identificando fragmentos da pintura na escrita e vice-versa. Chegou, inclusivamente, a levar três obras de Lapa a palco, entre as quais, Raso como o chão (2012), no TECA, e Barulheira (2015), no Mosteiro São Bento da Vitória. Considerando que no teatro descobre o que o texto pode ser, é aí que o desperta do passado, dando-lhe uma inesperada utilização e atualidade. Como explicou na sessão de Serralves, trata-se de migrar o texto do escritor para um território que não é literário, sendo esta vontade e ímpeto arrojados, inovadores e característicos da arte mais contemporânea.

Ao mesmo tempo, estas novas formas que se podem criar a partir da obra de Lapa, ainda que, aparentemente, inusitadas, estão de acordo com a sua própria natureza, a qual, como destaca João Sousa Cardoso, se apresenta profundamente contraditória. É possível denotar na criação artística de Lapa uma polifonia de vozes que se atropelam, resultantes de uma multiplicação do próprio autor. De tal modo que, como Lapa refere no seu livro Sequências narrativas completas (1994), "ninguém escreve este livro".

Álvaro Lapa, caracterizado por um premeditado amadorismo, como Ricardo Nicolau sugeriu, deixou-nos um espólio de objetos densos e plurais, em consequência de um particular percurso artístico e intelectual marcado por múltiplas influências. Desde a experiência em Paris, onde Lapa conheceu o surrealismo e a arte pop, até aos estudos de pintura e filosofia, nutrindo, paralelamente, um enorme interesse por política, cruzaram-se e fundiram-se ideias, conteúdos e impressões que resultaram numa obra complexa, polissémica e multidimensional.

Ainda assim, observando a obra do artista como um todo, é possível desenhar uma linha de acontecimentos e um itinerário, desde Évora, cidade natal de Lapa, à sua imigração para Lagos, espaço transitório, ao norte de África, à Arrábida e, por fim, ao Porto, estadia sugerida por Ângelo de Sousa. Ao longo deste atribulado caminho percorrido, surgiram elementos que marcaram Lapa e, consecutivamente, a sua obra literária, entre os quais os cigarros, o profeta e as putas, referências que surgem, recorrentes, nas páginas dos seus livros.

Contudo, a maior constante na obra deste grande artista é, sem dúvida, a fuga ao doméstico numa procura contínua de estudar mais, saber mais e, acima de tudo, fazer mais. Os quadros são exemplo disso, neles se identificando riscos, emendas, casos de tentativa-erro, também visíveis nos livros, nas interrupções que se mantêm no assumir da dúvida como parte integrante do ato de produção artística. Em parte, será graças a esta preservação de uma criação genuína combinada com um incessante desejo de crescer que o trabalho de Álvaro Lapa se destaca entre a sua geração e se revela como uma enorme influência para as seguintes.

Hoje, torna-se necessário compreender toda a criação artística na perspetiva do que ela poderá ser no futuro, preservando o apreço pelo seu passado, sendo nesse sentido que avança o ciclo Um objeto e seus discursos e o Porto. Assim, do mesmo modo que a arte, e como o Presidente da Câmara Rui Moreira refere, a cidade projeta-se "no futuro através do amor que nutre pela sua história".

 

Constança Babo


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Notas:

[1] Citação e mais informações em: http://www.umobjetoeseusdiscursos.com