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É URGENTE O FULGOR. A PARTIR DA BACM25![]() CLÁUDIA HANDEM2025-09-05![]()
Fulgor, o tema eleito para a Bienal de Arte Contemporânea da Maia de 2025 (BACM25). Palavra curta, mas com um espectro semântico suficientemente amplo (e desassombradamente simples) para ser alavanca de uma reflexão sobre o nosso tempo, curada por Manuel Santos Maia. O fulgor começa por ser resgatado das ideias contidas na obra de Maria Gabriela Llansol (1931-2008), dando o enlevo necessariamente p(r)o(f)ético para o considerarmos como uma condição necessária ao nosso presente, para:
continuar o humano
Começo, portanto, por citar Llansol. O desafio que propõe não é tarefa fácil. No seu discurso de aceitação do Grande Prémio do Romance e da Novela de 1990 - “Para que o romance não morra” - Llansol pergunta pelo fulgor, assumindo que ele se sumiu e tarda em voltar, e afirma que o que procuramos são “estados do fora-do-eu (...) ao aproximar existência e êxtase, ao atribuir ao ser uma forma vibrátil de estar.” [2] Trriiim-trriiim. O som de um telefone que nos cumprimenta à chegada da exposição no Fórum da Maia, vindo do anonimato eternizante de uma Chamada sem título (Renato Ferrão, 2025), parece responder a essa vibração do vivo, como potenciador cinemático de foras-de-campo, foras-do-eu.
Renato Ferrão na Bienal de Arte Contemporânea da Maia de 2025. © Hugo Adelino / Cortesia BACM25
Como resolver então este conflito que aflora de um interior abandonado - “para onde é que o fulgor se foi?” - que precisa de ser tomado de súbito e expelir, por via da criação, uma energia vital capaz de sair do corpo e se encarnar noutro? Definido por um brilho intenso e instantâneo, o fulgor é metáfora de momentos de revelação e percepção ampliadas, de carácter transformador. É evidente que a sua natureza se identifica com a da criação e experiência artísticas (não necessariamente epifânicas. Queremo-lo prolongado). E quando Manuel Santos Maia diz que “ser fulgurante é criar a partir da potência - daquilo que ainda não se tornou ato”, projetando um “futuro que não é antecipação nem desejo”, lembro-me de uma entrevista ao escritor e artista Camille de Toledo: “o que tem sentido é olhar o contemporâneo do futuro. É a isso que chamo “potencial””. Acrescenta que a arte contemporânea apresenta similitudes com o género do romance, ambos termos vagos que exigem ser reinventados, deslocados e transformados, ambos territórios de recepção que não param de se interrogar. [3] Não deixa de ser curiosa esta coincidência em que nos encontramos: o romance, a escrita, a arte, a potência, o futuro. Questiono: que futuro é esse que o fulgor pode futurar? O fulgor constitui uma espécie de alegria criativa fundamental que tanto alimenta como consome, sendo que a forma mais pura de alegria é a interrogação. [4] Visualiza-se um fervilhar, um jorro, uma condensação. O mundo em estado líquido. 51 artistas participam na bienal [5] e a seleção - que derruba fronteiras etárias - justifica-se pela partilha de uma intensidade refulgente que dá a ver novos reais possíveis e novos modos de sentir, ativos pelo dom poético da imaginação (e não tanto pela razão), e alia-se à já habitual atitude transdisciplinar e multi-discursiva do evento, cruzando linguagens e saberes que vão desde as artes populares e tradicionais às académicas e de manipulação digital. Depois de Ágora (BACM21) e Foi para caminhar que aqui cheguei (BACM23), sustentadas pelo compromisso da arte na construção de uma sociedade politicamente ativa e livre, com o alargamento das práticas artísticas a potenciar novos caminhos de acção e pensamento, esta bienal propõe essencialmente pensar o humano nos mais diversos estratos que definem a sua existência: na relação consigo próprio (a psique, o corpo), com o outro (a comunidade, a fauna, a flora), com o tempo (herança passada e futura, potencialmente circular e inacabada), com o meio envolvente (paisagem), o surreal (o místico, o fantasioso, o pós-apocalíptico), a criação (arte). Dizê-lo assim, segmentando a humanidade em meia dúzia de tópicos, é pobre e injusto dada a sua complexidade e tentativa de harmonização do viver individual e coletivo. É a partir do gosto pela viagem da descoberta, aglutinada à alegria da interrogação por si só, que os artistas operam, resistindo à normalização de um mundo (des)feito. Estamos longe de compreender a totalidade do que é ser humano e o porquê lógico das suas criações/acções. Hoje, quando consideramos que pilares como a liberdade, a igualdade, a justiça, estão vincadamente fundados pelo estudo da história e registos da memória, o mundo consegue-nos surpreender pelo derrubar consecutivo dessas estruturas, sem que com elas tivesse aprendido os horrores e os efeitos da guerra, da violência, por uma ordem de poder descontrolada. A memória, enquanto veículo de aprendizagem, perde força a cada dia e a história parece inútil. Este é um tempo carregado de repetições e a arte, cuja força é levianamente subestimada e até rejeitada, mantém-se indelével no seu desígnio. Também ela é uma forma de história, que observa, analisa e traduz a experiência humana em novas concepções. Muitos não o sabem, mas a arte é sentinela e a sua dádiva, como refere a socióloga Sheila Khan, reside na ubiquidade. [6] O poder da arte contemporânea em propor possibilidades de mundo(s), sem rótulos e sem negar qualquer meio de formulação do sensível, torna político o seu ato de liberdade e libertação. A pergunta é sempre a mesma: o que pode a arte hoje?
Esta bienal é isto. Um texto que nos lê.
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Notas: [1] Apropriação das questões lançadas por Maria Gabriela Llansol no seu discurso de aceitação do Grande Prémio do Romance e da Novela de 1990, da Associação Portuguesa de Escritores, 1991.
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