|
ELAS AQUI, OS CINQUENTA ANOS, O RENASCIMENTO, OS SENHORES DO VENTO E O JAMES BROWN, OU CINCO IMPRESSÕES DE LUANDA (UMA DAS QUAIS EM LISBOA)ANA BALONA DE OLIVEIRA2018-01-26
No final de 2017, tive a oportunidade de visitar algumas exposições em Luanda. Dentre uma série de visitas a espaços museológicos e galerísticos, arquivos, estúdios de artistas e outros locais de interesse no espaço urbano da cidade, e para além de outros eventos relevantes (como a estreia do documentário Do Outro Lado do Mundo, 2017, de Sérgio Afonso, no Centro Cultural Brasil – Angola), destaco uma exposição colectiva e três individuais: Being Her(e), comissariada por Paula Nascimento (Angola) e Violet Nantume (Uganda) na Galeria do Banco Económico (23 Novembro de 2017 – 31 de Janeiro de 2018), um projecto itinerante da plataforma !KAURU – Contemporary Art from Africa (África do Sul), em parceria com a galeria angolana This Is Not a White Cube (TINAWC) e com Beyond Entropy Africa (Angola), entre outros parceiros, e que contou com mesas-redondas a 24 de Novembro de 2017 e a 29 de Janeiro de 2018; 50 Anos Vivendo, Criando, de António Ole (Angola), no Instituto Camões (7 de Novembro – 21 de Dezembro de 2017); Luvuvamo + Nzola | Paz + Amor, de Paulo Kapela (Angola), no ELA – Espaço Luanda Arte (24 de Novembro – 13 de Dezembro de 2017); e Senhores do Vento, de Thó Simões (Angola), na galeria Mov’Art (27 de Outubro – 24 de Novembro de 2017). De regresso a Lisboa e já em 2018, ainda fui a tempo de ver Fuck It’s Too Late!, a primeira individual de Binelde Hyrcan (Angola) em Portugal, com curadoria de Ana Cristina Cachola (Portugal), na galeria Balcony (16 de Novembro de 2017 – 13 de Janeiro de 2018). Selecciono estas cinco exposições por motivos bem específicos, que passarei a explicitar. Todas elas assumem uma relevância particular, no âmbito mais alargado da pesquisa que me tem ocupado nos últimos anos em torno da arte contemporânea produzida e disseminada em vários contextos, nomeadamente, embora não exclusivamente, africanos e diaspóricos. Fundamento as razões que presidiram à selecção, reconhecendo que qualquer gesto de escolha é inevitalmente subjectivo e implica a exclusão de outras iniciativas que teriam merecido atenção. Being Her(e) reúne obras de catorze mulheres artistas oriundas de sete países africanos a trabalhar no continente e/ou na diáspora: Stacey Gillian Abe (Uganda), Phoebe Boswell (Quénia), Mimi Cherono Ng’Ok (Quénia), Eurídice Kala (Moçambique), Lebohang Kganye (África do Sul), Keyezua (Angola), Immaculate Mali (Uganda), Mónica de Miranda (Angola / Portugal), Nandipha Mntambo (África do Sul), Zanele Muholi (África do Sul), Aida Muluneh (Etiópia), Zohra Opoku (Gana), Jessica Atieno Ounga (Quénia) e Ana Silva (Angola). O projecto teve início em 2016 com a exposição colectiva Being and Becoming: Complexities of the African Identity, comissariada por Paula Nascimento e Rafael Chikukua (Zimbabwe) na galeria UNISA em Pretória. Continuou em 2017 com Being Her(e): Meditations on African Femininities, comissariada por Refilwe Nkomo (África do Sul) e Thato Mogotsi (África do Sul), sob orientação de Paula Nascimento e Violet Nantume, no Constitution Hill em Joanesburgo. A sua presença em Luanda, sob a forma desta nova exposição, constitui a primeira instância de uma dinâmica de itinerância através da qual a !KAURU pretende fortalecer redes de colaboração artística a nível regional e continental. Ao contrário da exposição de 2016 em Pretória, as iniciativas em Joanesburgo e Luanda em 2017 e 2018 foram compostas exclusivamente por obras de mulheres artistas, com o intuito de examinar as complexidades das identidades africanas no feminino e de fazê-lo a partir da noção fundamental de corpo, ou seja, de uma subjectividade que se assume como simultaneamente corpórea, psíquica, social, política e historicamente inscrita. Falar de identidade africana e de identidade feminina – de qualquer tipo de identidade – implica uma conjugação no plural e no gerúndio, ou seja, o reconhecimento da forma como cada sujeito, tanto individual quanto colectivo, é constituído por uma multiplicidade de posicionalidades identitárias, cuja concretude e especificidade (being) não comprometem o seu potencial de transformação e abertura (becoming) [1]. Esta exposição assume uma relevância particular por três razões essenciais. A primeira, de pendor feminista, diz respeito ao facto da exposição abrir um espaço decisivo de visibilidade para vozes femininas não só curatoriais e galerísticas, mas acima de tudo artísticas – algumas das quais já mais do que estabelecidas no panorama artístico internacional, e outras emergentes – num contexto que, tal como muitos outros, tem sido caracterizado por uma predominância da presença e das vozes masculinas. A segunda razão, de inspiração pan-africanista, concerne o facto da exposição conceder essa visibilidade a obras que, muito embora valham por si, individualmente consideradas, são curatorialmente colocadas num diálogo regional, continental e diaspórico. Este gesto é tanto mais significativo quanto certos legados históricos e certas realidades económicas têm implicado demasiadas vezes o privilegiar de ligações à Europa e a consequente falta de comunicação, de circulação e de conhecimento mútuo entre os agentes culturais do continente. Em terceiro lugar, nota-se uma preponderância da fotografia, do vídeo, da instalação e da performance, o que, neste contexto artístico, adquire especial relevo, já que constrasta com uma frequente ênfase local na pintura e na escultura. A arte contemporânea angolana que se internacionalizou tem sido profícua no que aos lens-based media diz respeito, mas isso nem sempre se traduz numa presença suficientemente forte destes meios quando se olha para lá do que uma geração e um circuito artísticos mais internacionalizados têm produzido. Apesar desta preponderância, a exposição não abdica de uma interessante diversidade de meios. Às obras fotográficas e videográficas de Abe, Boswell, Cherono Ng’Ok, Kala, Keyezua, Kganye, Miranda, Mntambo, Muholi e Muluneh – muitas delas de qualidade fortemente performativa pela forma como as câmaras retratam ou auto-retratam os corpos em vários tipos de paisagem ou no estúdio –, acrescentam-se interessantes exemplos de trabalho pictórico e de colagem em tela, como o de Silva, serigráfico, material e espacial, como o de Opoku, e mais explicitamente tridimensional, como os de Abe, Kala – ambas conjugando fotografia e instalação –, Mali e Ounga. A exposição constitui uma proposta discursiva de pendor tanto poético quanto assumidamente ético-político, reflectindo sobre questões tão diversas – ainda que intimamente relacionáveis – como as memórias pessoais e familiares e as histórias colectivas; o habitar e ocupar dos espaços domésticos e públicos, interiores e exteriores, das arquitecturas e das paisagens; a política da representação e da auto-representação do corpo feminino; o casamento, a maternidade e a religião; a desconstrução de estereótipos masculinistas, heteronormativos, racistas e eurocêntricos, nomeadamente aqueles inscritos nas narrativas da história da arte ocidental; a agência do olhar, da pose e do movimento; a materialidade corpórea do sujeito, o seu poder político de transfiguração e de subversão de normatividades socialmente impostas e naturalizadas, e as suas múltiplas manifestações virtuais. Por tudo isto, esta exposição torna-se de visita obrigatória. Em Novembro e Dezembro, o Instituto Camões recebeu mais uma exposição individual de António Ole. Apesar do seu título, 50 Anos Vivendo, Criando não foi a grande exposição retrospectiva que Ole merece ver acontecer em Luanda no momento em que perfaz cinquenta anos de carreira. Ainda assim, ao mostrar obras recentes, a exposição constituiu mais uma oportunidade para confirmar a sua enorme capacidade de constante procura e reinvenção artísticas e, dessa forma, celebrar e homenagear meio século de produção. Destaca-se a série em papel Burned Expectations (2015-2016), na qual Ole conjuga referências históricas, geográficas e culturais diversas através da adição e da subtracção material.[2] Justapõe camadas de vários tipos de superfícies em papel – desenhos, fotografias, mapas; material seu e material apropriado –, cujas formas são alcançadas nomeadamente através do corte e da queima das suas margens e do seu interior, e com as quais compõe novas configurações formais e discursivas. Como fizera já em obras anteriores que se tornaram marcos fundamentais do seu percurso artístico, Ole examina histórias e memórias individuais e colectivas, narrativas e símbolos, através da combinação poética de páginas esquecidas – hidden pages –, às quais confere novas visibilidades, especialmente através de uma atenção às suas margens – margens de zonas limite –, num gesto artístico, formal e material, que nunca deixa de ser, simultaneamente, profundamente ético-político. [3] Com efeito, o corte e a queima das margens originais, dos limites primeiros das superfícies e do seu interior, se é certo que lhes conferem novos contornos, sentidos e possibilidades de contacto com o que as rodeia, também evocam a violência de uma destruição, a nostalgia de uma perda, o desencanto de expectativas goradas, como nos lembra o título da série. De forma sempre aberta e em aberto, Ole conjuga leituras múltiplas, entre passados, presentes e futuros; entre territórios e paisagens, continentes, arquipélagos e ilhas; entre matérias, técnicas e formas; entre sujeitos, objectos e práticas, nomeadamente artísticas, com que nunca se cansou de experimentar. Para além deste trabalho, destaco ainda Viagem Imaginária entre Angola e o Oriente (2017), uma série de grandes dimensões em papel que conjuga igualmente desenho e colagem, mas a que Ole acrescenta caixas de luz e uma paleta intensa de vermelho, amarelo e verde. Evocando talvez mais intencionalmente um certo imaginário cromático oriental, esta tríade não deixa de lembrar igualmente a paleta com que tantas bandeiras do continente africano foram ‘pintadas’ após as independências. Tal intensidade cromática é suavizada por se encontrar em superfícies delicadas de papel translúcido, atravessadas de luz, que, no seu conjunto, compõem uma espécie de mural, um aglomerado de bandeiras verticais fictícias, as páginas do diário de uma viagem imaginária. Saliento igualmente as assemblagens de objectos sobre tela, tecido e madeira Memória da Colecta da Água (2017), Twins (2017) e Angola in Africus: Johannesburg Biennale (2017), uma obra em que Ole relembra a sua participação na primeira Bienal de Joanesburgo em 1995. Na medida em que a exposição se centra em desenho, colagem, pintura e assemblagens de parede, o seu título acaba por nos interpelar, convidando a que não esqueçamos todo um percurso multifacetado que inclui igualmente o cinema, a fotografia, a instalação e o vídeo, e que deveria ser proporcionalmente homenageado em Luanda. Em Luvuvamo + Nzola | Paz + Amor, patente no ELA – Espaço Luanda Arte, também na baixa de Luanda, Paulo Kapela expôs novos trabalhos (alguns dos quais integrando alguma produção anterior): uma instalação em técnica mista que incluiu o filme Kapela: O Renascimento (2015), realizado por Gretel Marín Palacio; uma série de sete trabalhos de grande formato em técnica mista; e um mural igualmente em técnica mista. Esta exposição individual celebra o septagésimo aniversário de Kapela e o seu renascimento físico, psíquico, espiritual e artístico desde 2015, após o momento difícil, no final de 2014, da sua saída forçada do espaço que ocupou durante cerca de duas décadas no edifício da União Nacional de Artistas Plásticos (UNAP) e da sua entrada no Beiral, um lar de terceira idade, de onde entretanto saiu. Apesar da dificuldade da transição, Kapela tem-se mantido sempre activo. Ainda em 2015, apresentou duas mostras individuais em Luanda – Kapela na galeria Tamar Golan e Entre Suplícios na galeria Hall de Lima Pimentel –, para além de uma série de participações em feiras de arte e exposições colectivas internacionais. Em 2016, já ocupara o espaço expositivo do ELA num encontro intergeracional com Binelde Hyrcan em Velhas Estórias, Novos Papéis, no âmbito da plataforma Pop-Up Mash-Up. Em Luvuvamo + Nzola | Paz + Amor, expôs obras realizadas no âmbito de uma residência no mesmo espaço. A peça central da exposição é uma espécie de altar – uma das práticas emblemáticas de Kapela, quer se trate de trabalho tridimensional, como este, ou mais puramente bidimensional, como os seus ‘altares’ sob a forma de colagens em papel e cartão, alguns dos quais culminando em verdadeiros murais, um exemplar dos quais também pôde ser visto na exposição. Neste altar, o artista justapõe um conjunto diversificado de referências históricas, espirituais e artísticas em desenho, colagem, pintura, objectos e imagem em movimento. Aqui encontramos uma espécie de homenagem ao seu percurso, nomeadamente ao importante período passado na UNAP e à difícil saída do seu edifício, através da abertura de um espaço dialógico, sob a forma do retrato conversacional filmado por Marín Palacio, presença invisível da qual apenas escutamos a voz, mas à qual outros interlocutores visíveis se juntam. Ocupando o centro do altar, o filme proporciona um encontro entre gerações artísticas – novamente, após o diálogo com Hyrcan, e na senda da forma como o próprio espaço de Kapela na UNAP se tornou um ponto de encontro para várias gerações de artistas, com um forte impacto numa jovem geração que entretanto se internacionalizou. Ou seja, de certa forma, poder-se-ía dizer que o filme evoca e, ao mesmo tempo, cria um espaço e um tempo de encontro e de conversa. Por isso, ele constitui um exercício de memória, um olhar para o passado que é também, significativamente, orientado para o futuro. O mesmo se poderá dizer da própria prática de Kapela. Às colagens em papel e cartão, onde se inscreve uma panóplia de signos visuais e linguísticos, seus e apropriados – desenhos, pintura, fotografias, recortes de imprensa, anúncios publicitários, inscrições em várias línguas, do português ao kikongo e ao francês –, acresce uma série de pequenos objectos, como flores e velas em garrafas vazias de cerveja angolana, esculturas tradicionais africanas, terços cristãos, peças de fabrico chinês, entre outros elementos. Trata-se de conjugações e confluências que se foram tornando sinónimas do nome Kapela. Contudo, na parede, por entre as colagens, vemos igualmente examplares de pinturas características da Escola de Poto-Poto (Brazzaville, República do Congo) – onde Kapela se iniciou artisticamente nos anos sessenta –, cuja presença sempre pontuou o seu atelier e algum do seu trabalho, mas a cuja estética tem sentido uma crescente vontade e necessidade de regressar. Com efeito, sem abandonar a sua experimentação mixed-media, combinou-a aqui fortemente com um trabalho em pintura que, longe de representar um simples regresso ao passado, foi investido de novos sentidos através das justaposições no âmbito das quais foi mostrado. Ou seja, esta expressiva combinação de técnicas e de estéticas díspares acaba por poder ser compreendida como uma extensão do jogo de combinações inesperadas que sempre caracterizou o arrojo do seu trabalho mais canónico em colagem e instalação. Para além deste altar, a exposição incluiu sete trabalhos em técnica mista de grandes dimensões, através dos quais Kapela examinou o papel de figuras emblemáticas da história política e cultural de Angola e do continente, incluindo a independência, o período revolucionário, a guerra fria, a guerra civil, o pós-guerra e o momento actual. Reunindo irónica e inusitadamente uma pequena comunidade de símbolos históricos e contemporâneos numa conversa em que o próprio artista participou, com retratos seus das suas fases na UNAP e no presente, Kapela convocou Agostinho Neto, Nelson Mandela, José Eduardo dos Santos, João Lourenço e Sindika Dokolo. A estas figuras juntaram-se outras personagens actuais dos meios artístico e político angolanos, por entre referências históricas e figuras anónimas, no mural instalado no espaço adjacente à sala principal. Ou seja, aqui a conversa alargou-se. À semelhança da conjunção de elementos diversos que ocorreu no seu altar, no mural encontrámos igualmente um desfiar artístico de várias narrativas assumidamente fragmentárias e estilisticamente heterogéneas da história pessoal de Kapela e das histórias colectivas de Luanda e do país. De forte componente espiritual, onde rastafarianismo, filosofia bantu e cristianismo culminam numa vivência muito pessoal da religiosidade, o trabalho de Kapela e esta exposição em particular – como o seu próprio título atesta – convidam o visitante a percorrer estes caminhos múltiplos em kikongo, com luvuvamo e nzola, paz e amor. Na galeria Mov’Art, na marginal de Luanda, Thó Simões apresentou Senhores do Vento. Nesta mostra individual, prestou homenagem à resistência dos hereros e de outros povos nómadas do sudoeste africano, como os namaquas e os mumuílas. Esta resistência refere-se não só ao passado – contra a ocupação colonial, a expropriação e o genocídio levados a cabo entre o final do século XIX e o início do século XX por alemães e portugueses no território que corresponde actualmente à Namíbia e ao sul de Angola –, mas também ao presente, dada a pressão que estes povos, que têm habitado esta região austral há vários séculos, continuam a sofrer no sentido da alteração e da extinção dos seus modos de vida ancestrais, não menos modernos e contemporâneos, como bem relatou e não se cansou de alertar Ruy Duarte de Carvalho. [4] A exposição de Simões tornou-se relevante não só pela força conceptual e ético-política do trabalho de memória que convocou – sem deixar esquecer as ligações profundas entre o passado e o presente –, mas também pela forma bem sucedida como conseguiu transpôr a energia da sua mais habitual linguagem artística em graffiti e street art para o espaço interior da galeria. Simões relembrou as lutas passadas de figuras como o namaqua Hendrik Witbooi e o herero Samuel Maharero – o líder das revoltas contra as forças alemãs comandadas por Lothar von Trotha – e as resistências presentes, recorrendo a um trabalho intenso de côr, figuração, estêncil e pichagem sobre tela e madeira, ao qual acrescentou ainda um vídeo de pendor documental. O artista adaptou ao espaço da galeria uma linguagem artística da rua e do espaço público, urbana e contemporânea, mas cuja história se poderá considerar como, em última análise, tão ancestral, transnacional e inseparável de um legado ético-político de protesto e luta contra os efeitos nefastos da modernidade ocidental quanto as histórias por ela evocadas. Simões cruzou, assim, uma série de supostas fronteiras, revelando a sua porosidade: entre arte pública e espaço galerístico; espaço exterior e interior; historicidade e contemporaneidade; ruralidade e cosmopolitismo; centro e periferia; tradição e modernidade. É também de assinalar o enfoque na resistência da mulher herero, namaqua e mumuíla (ou mucubal), dessa forma questionando-se a predominância das narrativas masculinistas da luta contra as violências coloniais e neo-coloniais. Em Mucubalização (2017), mulheres mumuíla ocupam o primeiro plano de um espaço urbano que se estende dos bairros da periferia aos arranha-céus do centro, erguendo-se frágeis no fundo da superfície de madeira. Por último, assinalo a irreverência e o humor inteligente de Fuck It’s Too Late!, a exposição individual de Binelde Hyrcan na Balcony em Lisboa, onde a energia e as contradições de Luanda surgem como personagem central – daí a sua inclusão neste texto. Assistíramos já a interessantes aparições artísticas de Luanda em Lisboa em 2017: Luanda, Los Angeles, Lisboa, de António Ole, na Fundação Calouste Gulbenkian; In the Days of a Dark Safari, de Kiluanji Kia Henda (Angola), na galeria Filomena Soares; Estúdio e Luuanda Rising, de Francisco Vidal (Angola), no Lumiar Cité e na Wozen, respectivamente; e Luuanda, a colectiva comissariada por Paula Nascimento e Suzana Sousa (Angola) no Hangar – Centro de Investigação Artística (onde também decorreu a quarta edição da mostra de cinema Olhares Sobre Angola). Em Fuck It’s Too Late!, Hyrcan retrata de forma irónica as recentes mudanças no país: a crise económica, financeira e cambial, que se repercutiu na dificuldade de obtenção de divisas estrangeiras e que culminou no corte do acesso da banca aos dólares e no agora iminente fim da indexação do kwanza ao dólar; e a saída de José Eduardo dos Santos do poder, ao fim de trinta e oito anos, as eleições presidenciais e a ascenção de João Lourenço à presidência. Estes eventos constituem o pano de fundo diante do qual Hyrcan partilha narrativas pessoais e quotidianas da cidade – em particular, da ilha de Luanda, onde vive – e dos seus habitantes. Logo à entrada deparamo-nos com Ilha Rock (2017), metade de um candongueiro estacionado no centro da sala principal da galeria. Hyrcan examina a forma como os táxis colectivos informais, os toyotas hiaces azuis e brancos que substitutem a quase inexistente rede de transportes públicos em Luanda, se tornam poderosos veículos de circulação não só de passageiros e mercadorias, mas também de práticas sociais e culturais. Pontos móveis de encontro e de passagem, marcam indelevelmente a paisagem urbana e sonora da cidade. Aqui, Hyrcan fez desaparecer a secção traseira do veículo, que transporta a maior parte dos passageiros, e chamou a atenção para a parte dianteira, de onde o condutor, acompanhado por alguns passageiros, normalmente faz circular poderosas ondas sonoras de kuduro e de outros ritmos musicais angolanos e internacionais. O rádio ligado transforma definitivamente este candongueiro em Ilha Rock, nome que o próprio anuncia, à semelhança da forma como os táxis colectivos em Luanda costumam ser criativamente nomeados pelos seus donos. As matrículas dianteira e traseira confessam: ‘20 buscar ... 100 pagar’. Ao lado e no piso inferior, um par de serigrafias, uma instalação, caixas de luz, pinturas em acrílico e carvão e uma obra fotográfica atentam nas sucessivas mudanças no país e no quotidiano dos habitantes de Luanda, através de um olhar sobre as várias imagéticas da moeda angolana. Em Empresta-me o teu lugar (1) e (4) (2017) e Saudad (2017), Benjamin Franklin, Agostinho Neto e James Brown são colocados à conversa. O retrato de Franklin abandona a nota de cem dólares com um ‘volto já’ para, envergando os óculos de Neto, ocupar o lugar deste na efígie da antiga nota de cem kwanzas. A banda sonora para esta dança de rostos é Please, Please, Please – a famosa canção que Brown eternizou em 1956 –, cujo refrão, suplicando insistentemente please don’t go, é emitido em loop pelo macbook parcialmente enterrado em cimento de Saudad, cujo écran insiste na nota desabitada de cem dólares. Esta obra parece sugerir uma espécie de artefacto tecno-arqueológico; o vestígio de um progresso inacabado, mas ainda audível, retido nas ruínas de cimento das novas construções interrompidas. À partida de Neto parece suceder-se a de Franklin, ficando Brown (apenas audível e nunca visível) sozinho no seu lamento; ou seja, fracassada a utopia socialista e ameaçado o capitalismo oligárquico dos petro-dólares, parece restar o consolo da energia musical de Saudad. Contudo, contrariando a aparente nostalgia das ausências de Empresta-me o teu lugar e de Saudad, Ilha Rock sugere a possibilidade optimista, verbalmente inscrita nas suas matrículas, de um encontro – de, embora sem pagar, se poder ir buscar algo ou alguém. Uma análise algo semelhante em torno das noções de desaparecimento e rarefacção perpassa Apneia (2012), uma obra anterior em que Hyrcan lançava o seu olhar irónico sobre os contrastes de Luanda e que, vista em 2017, parece ter antecipado o ‘mergulho’ que o próprio país daria nos anos seguintes. Vestido de skater-mergulhador, o artista espera na fila para levantar dinheiro, respirando com o recurso à garrafa de oxigénio que carrega – já que o oxigénio estará em falta em redor – e que, adivinha-se pela Apneia do título, entretanto se esvaziará. Em 100 títulos (2017), Hyrcan traduz as reflexões de Empresta-me o teu lugar em caixas de luz circulares, passando formalmente da nota à moeda. Introduz também uma reflexão em torno de uma versão mais recente da nota de cem kwanzas. Dela destaca a efígie com os retratos de Neto e dos Santos – sob a qual se lê que ‘A vitória é certa’, a expressão oriunda da luta de libertação e do período revolucionário –, onde insere o rosto de Lourenço, que surge também a solo na última moeda do conjunto. Em Kumbu (1) (2017) – uma adaptação do kimbundo que significa ‘dinheiro’ –, Hyrcan reproduz pictoricamente este triunvirato monetário fictício. Em Kumbu (3) (2017), instalado em posição cimeira no piso superior da galeria, volta a isolar Lourenço, fazendo desaparecer os demais, mas a efígie sob a qual a vitória continua a ser certa, de traços indefinidos, parece estar também a desvanecer-se, ou talvez ainda a definir-se. O 100 dos dólares, dos kwanzas, dos títulos – e do ‘buscar 100 pagar’, sem meio candongueiro e, em apneia, quase sem oxigénio – obviamente remete para o seu desaparecimento. Por último, Agitação sobrenatural (2016) é uma obra videográfica onde apenas se visualizam (e ouvem) as palavras trocadas entre Hyrcan e transeuntes com quem se cruzou na rua, sobre eventos tanto extraordinários quanto banais – em todo o caso, não ficcionais – do quotidiano luandense, onde tudo se pode comprar e vender. Ao lado, Fuck it’s too late! (2017), igualmente composto de palavras, exclama em néon o ritmo acelerado e a cadência frenética de Luanda e, muito justamente, dá o nome à exposição. Se é certo que indicia um certo desencanto com o progresso desigual, consumista e interrompido de Angola, exprime também a energia das novas possibilidades de reposicionamento que parecem estar a querer abrir-se no horizonte.
Notas [1] Stuart Hall, ‘Cultural Identity and Diaspora’, in Identity: Community, Culture, Difference, ed. Jonathan Rutherford (Londres: Lawrence & Wishart, 1990), pp. 222-37. |