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COLECTIVAVASOS COMUNICANTES II, INVENTAR SINAIS | REVER OLHARES![]() FUNDAÇÃO GRAMAXO Rua Conselheiro Costa Aroso, 601 4470-590 20 SET - 28 FEV 2026 ![]() ![]()
Philippe Sollers na sua obra Le Parc (tanto influenciada pela narrativa ambígua fictícia/real do roman à clef como exemplo concreto do nouveau roman) coloca na voz do narrador a ideia da contínua cambiância que a palavra escrita, formada textualmente numa sucessão frásica, apresenta numa aparente rígida e hirta manifestação imperturbável de um parágrafo. Pois, se ele (narrador) tentava ler, esse excerto se desencaixava, se abria, se interligava numa metamorfose como se dotado de um poder exorbitante (pouvoir exorbitant). Qualquer frase se transmutava em imagens, em rememorações, em viagens, em lembranças, ou sensações de presenças transversais multiplicadas. O ensemble parecia se movimentar, encavalitando-se, sucedendo-se em todos os sentidos, fazendo perder o pé a quem dele se aproximasse [1]. Esta escrita prestes a derrapar no sentido do informe, em contínua dilatação, ou prestes a abrir-se ao ilimitado, inclinando-se para uma visualização dos seus significantes em detrimento da sua exclusiva e auto-proporcional manifestação dos significados, induz-nos numa estetização da escrita pictórica, exarada numa superfície como continuação plástica, juntamente com os ritmos cromáticos, as texturas e as execuções formais, que podemos observar nos artistas em exposição (exemplo claro dado pela assemblage intitulada Chave de Autor de Ana Mota, que numa série de 6 obras, desenvolve metodologias de velamento ou de ocultamento de processos de escrita, polarizando as leituras, através de mecanismos de retenção de sentido, a favor de uma polivalência dinâmica de encobrimentos visuais). O que não deixa der ser interessante, já que nos permite abrir um espaço de controvérsia entre os distintos âmbitos metodológicos, pois se a pintura nada diz, na sua primordial incomunicabilidade e inominável gestualidade, a sua abrangência detém a possibilidade de catalisar todas as manifestações de sentidos excrescentes ou externos, num albergue incondicional, não garantindo que com ele, a escrita se possa diferenciar da pintura (a obra Dobble de Maria José Aguiar é um claro exemplo disso, ou mesmo as obras em exposição de Xai, onde os processos textuais se tornam elementos intrinsecamente pictóricos). No indizível que é a pintura, o dizível da escrita entra em confronto, em contacto de forças antagónicas, ou se quisermos, antitéticas, que por intermédio de uma solução de continuidade descomunicativa, leva a que estas duas placas tectónicas, outrora desfasadas e apartadas na sua geomorfologia, se introjectem (e colidam) na hibridez mirífica que é a obra de arte.
Ana Hatherly. A minha escrita secreta. Acrílico s/papel.1996. 89x73 cm. © Rodrigo Magalhães
As obras inserem-se em vertentes plásticas subsumidas à invenção de Olhares e Escritas, escreve Maria de Fátima Lambert, alertando-nos para a bífida representação destes artistas, nunca sabendo quando o pêndulo oscilará mais para o campo da escrita em detrimento da pintura, ou vice-versa. Estas contaminações são posições de ultrapassagem da simples figuração, automatizada (ao longo da história das artes visuais) pela posição representativa e denotativa de uma génese matricial da bela-pintura, a favor de uma tendencial usurpação pelos poderes taumaturgos dos processos escreventes pois, esta exposição, permite-nos uma espécie de saudação a Mnemosine, possibilitando-nos traçar ou proceder a uma inventariação historiográfica da palavra e/ou do alfabeto ínsitos na pintura, como condição relacional. Estas incursões históricas, como refere a curadora permitem-nos um levantamento, ou melhor um exercício de percepção de sintaxes e gramáticas - mais do que lógicas ou ilógicas - destituídas de logicidade, afastadas das tradicionais presenças representativas das artes plásticas. Os casos trazidos para esta exposição de Alberto Pimenta, Ana Hatherly, Ernesto de Melo e Castro, Fernando Aguiar e Salette Tavares, instabilizam os campos delimitados do foro textual e visual, numa espacialização da poesia concreta, que alastra consigo uma indeterminação multívoca de sinaléticas e versificações visuais, exponenciando as perturbações e polarizações de escritas altamente dinamizadas no recinto visualizável das suas formatações. Nesta alogicidade que é a pintura da escrita, as redes de consubstanciação da heterogeneidade plástica (tensão entre texto e pintura), elevam a obra para uma radicalidade de imprevistos e de intensidades recrudescidas de criação programática de originalidades, no desmoronamento das clausuras habituais e totalitárias das identidades distintas.
Fernando Aguiar. Ensaio para uma nova expressão da escrita Nº 453. Letter press s/aparite folheado.1984. 70x100 cm. © Rodrigo Magalhães
Robert Walser explica: eu quero falar, mas todas as palavras que me ocorrem, não me são suficientes, por isso devo calar-me [2]. Este silencio de Walser é eloquente, aliás, é extremamente profícuo na condução espacial da sua construção do Mikrogramme, uma autêntica travessia/errância do lápis na folha de papel (bleistiftspaziergang), inscrevendo, reinscrevendo e sobrescrevendo, as tessituras palimpsésticas do texto pictórico (o que não anda muito longe da obra em exposição de Miguel D’Alte, explorando as ténues micro-escritas desenhadas na liberdade espacial, tanto prezando a habitual horizontalidade da escrita, como prorrompendo por vertiginosas linhas verticais, proporcionando ao observador a confusão primigénia de uma automatização estética da escrita iterativa). O silêncio do texto palimpséstico é introduzido na obra plástica por intermédio de António Sena, dispondo do desacerto burilado do gesto, para explorar a plasticidade da superfície, numa intensificação da primordial e desenfreada canalização do gesto inábil, que na marcação por extravasamento de inscrições, de linhas, aproveita a aleatoriedade do dripping, numa anulação do logos a favor da caotização da escrita desautomatizada de sentido. Tudo na sua obra nos demonstra a polivalência volitiva do preenchimento, da saturação por incremento de texturas sobre texturas, aproveitando as zonas prévias de demarcação construtiva do plano (a existência de uma espécie de grelha preparatória) para fazer implodir as categoriais depurações estratégicas de uma respeitável formatação plástica. Tudo se dimensiona na aparência hipertrofiada da saturação como se estabiliza na destituição de claridade sígnica.
António Sena. S/título. Acrílico e pastel de óleo s/tela.1993. 125x185,7 cm. © Rodrigo Magalhães
A obra Que horas são que horas de Álvaro Lapa representa os processos de escrita petrificada numa sequencialidade não linear, revelando no seu texto, cortes, cesuras abruptas, em complicações sintáxicas de enorme dificuldade de processo de leitura, inscritas numa demarcação central, que ao romper a preservação cromática do fundo, tende a abrir um espaço de intensificação da visualidade da escrita. Esta escrita alucinada, alude no plano provocatório da sua inscrição plástica, a uma formatação de insinuação de legibilidade e de clarificação processual, para a depois as trair, num sentido que soçobra na aporia do significado. O que nos leva a intuir que o texto inerente à imagem plástica não corresponde a um sentido reflexivo, a algo que se possa atribuir a um equilíbrio semiótico de significante/significado, mas a um sentido pré-reflexivo, puramente lúdico, ou seja, a um puro acto imaginativo que irrompe da tessitura visual, e por ela é comandado, desdobrando-se na imagem totalizante da pintura. Neste sentido, Lapa é escritor de pintura.
Joaquim Rodrigo. Lisboa-Burgos. Vinílico s/platex.1970. 99x148 cm. © Rodrigo Magalhães
Já a obra de Joaquim Rodrigo revela uma extrema economia de meios expressivos e técnicos utilizando cores naturais da terra como amarelo-escuro, vermelho acastanhado, branco e preto. Em Lisboa – Burgos as imagens flutuam em espaços indeterminados, pois ao rebater o espaço topológico, o artista desintegra as próprias leis da narrativa, espalhando signos, indefinindo a mediação ou a relação entre figuração e expressividade, numa impropriedade pictórica, devedora da transgressão ou subversão dos moldes representacionais. Parece existir uma substituição da imagem pelo ícone linguístico, representando fragmentos de memória, nomes de cidades ou regiões (Burgos e Oropeza), nomes de artistas (Costa Pinheiro) ou despojos cumulativos de inscrições ambivalentes gerando espaços de equivocidade sígnica, na apresentação do poder (des)comunicativo da revelação de sentidos impressos. Leem-se e reveem-se imagens e reconhecem-se (ou não) significados remotos e sentidos visionários, escreve Maria de Fátima Lambert. Em Vasos Comunicantes II, temos acesso a uma panóplia de inscrições escreventes, de aventuras escriturárias, de multiplicações de grafias e agenciamentos de anotações e registos de sinais, em aliança profícua com as concretizações plásticas de uma pintura, aberta o suficiente para despoletar torrentes infindas de percepções, na possibilidade de enfatizar esse corpo comunicante, que é por tradição, a expressão artística.
Rodrigo Magalhães
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[1] SOLLERS, Philippe. Le Parc. Éditions du Seuil, Paris. 1961, p.106. ![]()
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