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JOÃO PINHARANDA


Historiador de arte, crítico de arte e comissário, João Pinharanda é o Director artístico do Museu de Arte Contemporânea de Elvas. Nesta longa entrevista conversámos sobre o seu campo alargado de actividades, sobre o seu percurso e intensa actividade no campo artístico, desde os anos 80 até à actualidade. Falámos da sua trajectória na Fundação EDP, e sobre a sua experiência enquanto director artístico do Museu de Elvas, bem como das exposições e dos seus projectos futuros.

Por Sandra Vieira Jürgens
Lisboa, 1 de Fevereiro de 2008


P: Como é que se apresenta normalmente? Historiador de arte, crítico de arte, comissário?

R: Actualmente não me apresento como crítico de arte visto que deixei de escrever regularmente em jornais há quatro anos. Mas durante muito tempo apresentei-me como crítico, porque talvez achasse que isso me dizia muito respeito. Hoje em dia gostaria mais de ser conhecido como historiador de arte. Isso talvez na sequência de uma série de textos que escrevi para obras colectivas como a História da Arte Portuguesa, dirigida pelo Paulo Pereira, e para outras colectâneas como a que saiu nos Estados Unidos, em Espanha, e depois em Portugal, organizada pelo António Costa Pinto sobre Portugal Contemporâneo. Escrevi também um texto muito desenvolvido para uma obra que será editada pela Dalila Rodrigues, onde exponho o meu pensamento mais recente sobre o sentido da produção artística em Portugal no século XX. Enfim, disse que gostaria de ser conhecido como historiador de arte, mas não posso deixar de ser conhecido como comissário - que é uma palavra que as pessoas não gostam muito e está fora de moda, mas que prefiro utilizar por não me sentir muito bem com a designação de curator. Mas seja o que for que isso signifique, fazer exposições é inevitável e é uma actividade de que gosto muito.


P: Porque é que seguiu História da Arte?

R: A minha formação é em História e isso estará sempre muito implícito no meu trabalho e nas discussões que tenho com quem vem das áreas da Estética ou da Filosofia – e digo discussões no sentido de esgrimir argumentos. Fiz depois o mestrado em História da Arte, mas durante o curso de História na Faculdade de Letras, que era de cinco anos na altura, e mesmo antes disso, mantive desde novo relações com o mundo da arte. Frequentei cursos livres na Sociedade de Belas Artes, na Galeria Quadrum, onde havia muitos cursos de História da Arte … A minha orientação no curso de História foi sempre a de História Económica e Social dos Séculos XIX e XX e tive uma única cadeira de História da Arte. Era a disciplina de História da Arte Contemporânea, dada pelo Manuel Rui de Carvalho, e podíamos frequentá-la sem ter estudado História da Arte de períodos anteriores. Era um professor bestial que dava uma história cultural que incluía ópera, bailado, teatro, literatura, como gosto que seja. E na altura fiquei tão entusiasmado, que achei que de entre os mestrados que se me apresentavam seguir, o de História da Arte era o que mais me interessava. E comecei a fazê-lo com o sentido de ser historiador de arte. Isto aconteceu no princípio dos anos 80, e foram os movimentos sociais e culturais dos anos 80 que me fizeram começar a escrever sobre arte contemporânea.


P: Qual foi o período da arte que mais lhe interessou estudar durante os anos da faculdade?

R: Sempre me interessaram os séculos XIX e XX, aquela divisão tradicional da história contemporânea, que em geral começa com a Revolução Francesa. Hoje tenho a sensação que ainda somos contemporâneos desse período. Em relação ao passado, se me perguntassem que pintor eu escolheria, diria sempre que é o Piero Della Francesca (1416-1492), e isso resulta de uma viagem a Itália. O meu coração balança entre o expressionismo e o clássico, entre o maior equilíbrio e o maior desequilíbrio, mas o período que me interessa trabalhar é a actualidade. Não quer dizer que o Piero Della Francesca não tenha actualidade (risos), porque tem bastante.


P: Iniciou a sua actividade no meio artístico dos anos 80. Qual é a sua opinião acerca do modo como evoluiu o campo artístico. Quais foram as mudanças mais significativas?

R: Acho que foi a democratização, uma capacidade quase infinita, não de ter êxito ou de singrar, mas de mostrar trabalho e ter eco, de se ser discutido. Ainda assim, hoje há cada vez menos órgãos de informação tradicionais, e é necessário vir aqui à Artecapital falar do que está a fazer-se. Mas eu diria que há um grande aumento da população artística e isso é uma explosão que decorreu dos anos 80. Há também uma democratização dos locais de apresentação da produção artística e, ao mesmo tempo, uma excessiva condescendência. Se na altura havia um fechamento brutal e violentíssimo, agora há uma aceitação global de tudo o que se faz, é como se não houvesse um filtro, sendo talvez possível chegar à conclusão de que qualquer pessoa pode ser artista ou qualquer pessoa pode ser poeta, naquela lógica do Rimbaud ou dos surrealistas. É possível mostrar qualquer obra, e se eu considero isso muito positivo ao nível da produção, acho que há um problema, talvez até já existisse na altura, que é estrutural da condição portuguesa: não se discute e não se fala muito sobre o que se produz. Os anos 80 impuseram-se com contestação, mas não era uma contestação intelectual, com raciocínio, tal como veio a suceder com os anos 90, em que o peso foi tal que empurraram a outra parede que lá estava. É sempre um pouco assim, mas isso é falta de estruturação e aprofundamento das coisas.


P: O discurso da crítica de arte mudou?

R: A situação da crítica de arte portuguesa foi muito estável entre os anos 40 e 80. Durante esse período de tempo foi o mesmo grupo de pessoas que manteve o domínio do discurso histórico e crítico, bem como o domínio dos órgãos de informação escrita. Evidentemente, esse grupo de pessoas terá mudado de opinião e feito uma evolução ao logo do tempo, e não quer dizer que fossem unidos, podia haver até dois grupos e várias sensibilidades. Mas foi só a partir dos anos 60, depois de terem escrito durante 20 anos, que este grupo de pessoas ocupou os lugares de poder, que na altura não eram muitos. Eram menos do que agora, mas mais poderosos por isso mesmo. Nos anos 80 apareceu também um grupo muito restrito de pessoas ligadas à escrita, que também só mais tarde chegou a ocupar lugares de poder, mas que tinham um certo poder de opinião e de gestão no campo artístico. Nos anos 90, houve aquele choque com a geração a que pertenço, mas a partir daí houve uma pulverização e proliferação de autorias, mesmo ao nível da escrita e dos órgãos de informação, que trouxeram mais dinâmica, mais confronto, apesar desses confrontos se situarem um pouco na ordem do insulto, que obtinha ou não resposta. Não tenho a noção de ter havido uma polémica construtiva, as discussões ficaram fechadas em artigos de jornal e em alguns manifestos, que permanecerão curiosidades à semelhança do que aconteceu com os dos anos 20. Mas enquanto o meio artístico, mais propriamente criativo, continuou a proliferar, existindo cada vez mais espaços alternativos ou sem ser alternativos – ou alternativos que se institucionalizaram – com uma grande capacidade de mostrar o que se está a fazer a nível da escrita, houve uma espécie de regressão. Isto não quer dizer que não tivessem aparecido nomes e até pessoas interessantes e importantes, algumas começaram até a trabalhar com instituições, mas houve uns que desapareceram e de quem nunca mais se ouviu falar. Mas, para mim, o que é preocupante e estranho, é o facto de não haver uma plataforma onde se possa escrever com profundidade e não exista a possibilidade de editar uma revista sem estar dependente da publicidade, e do peso enorme das antiguidades e dos leilões. Porque neste aspecto há ainda uma terceira componente (há os artistas e a crítica), que é o mercado. Existem apenas pequenas mercearias (risos)... Há muito pequeno comércio mas depois não se consegue criar nada porque não existe mercado. A comparação mais engraçada e evidente é que há imensas revistas de arquitectura carregadas de anúncios pagos por empresas da construção civil. No nosso caso, a Casa Varela não chega para fazer anúncios. A minha ideia é que uma revista de artes só funciona quando se juntar com a arquitectura, sendo que os arquitectos percebem cada vez menos de arte.


P: Tem saudades de se dedicar exclusivamente à escrita?

R: Eu tenho. Gosto muito de escrever. Se tenho saudades de me dedicar à escrita?


P: Exclusivamente?

R: Exclusivamente não. Nunca me dediquei exclusivamente à escrita. No ano seguinte a ter escrito os primeiros textos, que foi em 84, tive logo um convite generoso para fazer uma exposição com o Alexandre Melo, no Festival da Figueira da Foz que se chamava “Cinco Artistas de Lisboa” ou “Cinco Artistas Contemporâneos”. Foi um convite ao qual respondi generosamente - não foi um projecto pago -, e se há pouco perguntava sobre as mudanças, também houve uma mudança nesse género de coisas, a nível do que nós aceitávamos e do que hoje é possível aceitar.
Comecei logo a escrever e a fazer exposições desde muito cedo, ou a ter projectos de exposições. Mas o que eu sinto é que o não escrever implica ver menos coisas, porque não tenho essa obrigação. Ainda assim, se continuasse a escrever, não na Artecapital ou numa outra revista, mas num jornal diário com uma secção cultural, não poderia escrever sobre praticamente nada. Foi o que aconteceu no final dos meus tempos de escrita – e sei que a situação ainda se mantém – em que não há espaço para publicar nas secções culturais dos jornais. Os tempos heróicos do Jornal de Letras em que todas as exposições eram vistas e eu escrevia três e quatro textos sobre a mesma exposição, ou havia três e quatro pessoas a escreverem sobre a mesma exposição, acabou lentamente ao longo dos anos 90. Passou a escrever-se uma única vez sobre uma exposição. Quer dizer, deixou de acontecer aquilo que ainda hoje acontece para a área do cinema – que é uma indústria – ou para a música, que também movimenta muita publicidade… É que a publicidade que falta nas revistas também é a que falta nos jornais, e é evidente que se houvesse muita publicidade nos jornais, se alguém pagasse uma viagem ao jornalista, não para ir ver um concerto dos U2, mas para ir ver a exposição do Courbet, sairia um artigo sobre essa exposição. Sinto essa falta de actualização permanente. Sinto isso, tenho memória sobre todos os nomes dos anos 80, tudo o que prestava e não prestava, os catálogos… mas também não quero ser eternamente paladino das novas gerações, alguém tem de aparecer para falar delas.


P: Quais são os seus critérios para decidir que artistas devem integrar uma exposição, uma colecção?

R: Por exemplo essa primeira exposição tinha uma unidade subgeracional aos três grupos com que eu me relacionei de início. Eram três grupos da escola de Belas-Artes, de anos sucessivos, e também um grupo próprio, um grupo de amizades. Falaria de uma questão de afinidades, que podem ser minhas com eles, mas também entre eles. O Pedro Casqueiro, a Ana Vidigal – espero não esquecer ninguém –, a Madalena Coelho, a Alda Nobre (não sei se teria o Jaime Lebre, mas suponho que não), e o Xana. Aqui, por acaso, havia um cruzamento que já pode indiciar outra coisa. Entre afinidades electivas, digamos, os quatro primeiros que eu disse – o Pedro, a Ana, a Alda e a Madalena – eram um grupo de escola, de amizade, que tinha a mesma lógica de trabalho, fragmentado, múltiplo e onde a cor tinha uma importância muito grande. O Xana estava fora desse grupo, porque já pertencia aos Homeoestéticos, mas havia uma ligação formal que fazia com que a exposição funcionasse muito bem. É um processo intuitivo, mas interessa-me uma situação de afinidades, afinidades internas das obras que estão em exposição, a minha afinidade com as coisas e afinidade com o lugar. O título também foi importante. Quem me convidou foi a Maria Nobre Franco, que ainda não tinha a galeria nessa altura.


P: Mas existe alguma tendência particular da prática artística contemporânea que lhe interesse especialmente e tente representar nas suas exposições?

R: Sinto que sou eclético, e por vezes sou acusado por isso, mas acho que isso tem a ver com o facto de ser historiador de arte. Não sou artista, nem sou um crítico de arte de tendência, sou um historiador e portanto, tendo muito a valorizar um grande leque de escolhas. Gosto também de arte grega, e durante vários anos dei aulas de arquitectura grega e romana, e não de arte contemporânea, mas isso por razões diferentes. Tenho um grande fascínio pelas obras clássicas. Quando estou a pensar numa situação de comissariado, ou de vários comissariados, ou de escrita, tenho uma grande tendência para tentar perceber o que é que as coisas significam no contexto cultural onde aparecem e onde se desenvolvem, sem a preocupação de as classificar como boas ou más a partir de uma norma que já nem sequer existe e que não quero ter. Essa situação de historiador que deseja alguma neutralidade – mas interventiva, apesar de tudo - é possível, e perante a realidade, faz-me não ter, evidentemente, uma tendência, se bem que fazendo uma média de tudo, percebe-se que serei um pouco conservador. Não é em relação aos media, porque eu trabalho com imensos artistas que fazem trabalhos com vídeo, portanto também não tem a ver com isso. Entre a linguagem e os media, o pecado da pintura e o pecado da subjectividade.


P: Acha que essa questão da neutralidade dificulta o seu trabalho de produção crítica. Frequentemente espera-se que haja uma certa classificação e uma tomada de posição?

R: Acho que é possível classificar uma obra em cada uma das categorias, linguagens, tendências ou sensibilidades em que se situa. Pode existir um péssimo artista romântico e um óptimo artista clássico...


P: Prefere fazer exposições colectivas ou monográficas?

R: Não conseguirá que eu lhe dê uma resposta sobre um assunto, dou sempre duas respostas, pelo menos. Gostava de dar três (risos). Gosto de trabalhar em ambas as situações. A exposição monográfica dá-me o lado da história. Adoro fazer investigação. Agora gostava de estar nos arquivos da Vieira da Silva onde estava, a ver as papeladas, apesar de ficar com um pouco de alergia. Todo o meu curso de História teve a ver com investigação de arquivo, desde a Idade Média até ao século XX e gosto muito do trabalho maçador de estar a ver textos e textos, jornais na Hemeroteca. Tenho um fascínio enorme por fazer monografias, porque depois também tenho a sensação de que reposiciono na História determinados artistas que estavam, não esquecidos, mas que eram mal conhecidos, como foi o caso do António Areal, mas fundamentalmente esquecidos ou desentendidos, como foi o Jorge Pinheiro e todo aquele seu período geométrico. Mas gosto muito de fazer exposições colectivas onde tenho a sensação de continuar a fazer aquilo que poderia fazer nos jornais, se escrevesse, que era intervir na actualidade e por isso, não tenho escolha. Adorei fazer a exposição do Álvaro Lapa, se bem que a situação aí fosse um pouco diferente, mas toda aquela parte de investigação dos textos do Lapa – que não foi feita por mim, mas foi dirigida por mim, já que não tenho tempo para estar nos arquivos à procura de livros. Mas no caso do Jorge Pinheiro, estive com ele nos arquivos. Agora esta exposição do Mário Cesariny com a Vieira da Silva está a dar-me imenso prazer. Não é bem uma colectiva, mas... Gosto imenso de fazer exposições individuais monográficas, e as outras também. Agora vou fazer uma do Eduardo Batarda, também estou excitadíssimo.


P: Foi comissário independente e crítico de arte durante muito tempo, e passou a ser responsável por uma instituição com uma colecção permanente. Que desafios pressupôs essa mudança?

R: Esse processo foi muito lento. Deixei o jornal Público em 2000 quando me liguei à EDP, no pressuposto de ir fazer rapidamente uma colecção muito forte. Apesar de tudo, continuei a escrever, com alguma cautela, e só parei dois ou três anos depois, em 2003 ou 2004. Acontece que, quando entrei para a EDP, esse pressuposto de que a colecção ia avançar muito rapidamente ficou posto de lado por dificuldades financeiras. Não sei, a Fundação EDP, apesar de ter estatutos desde 1999, só foi instituída em 2006, e esteve sempre como comissão instaladora provisória, sem orçamento. Depois houve umas mudanças de administração que fizeram com que toda essa parte do trabalho parasse praticamente. Houve anos em que a actividade parou mesmo e a minha tarefa era a de fazer as exposições dos vários prémios EDP. Portanto, houve uma passagem entre uma situação e outra que eu não cheguei bem a perceber que estava a acontecer.


P: Qual é a sua situação actual na Fundação EDP?

R: A primeira administração - houve mais duas entretanto – deu-me carta branca para trabalhar os prémios e a colecção. Mas depois fui apenas fazendo comissariados ou organizando de raiz os prémios e umas exposições que inventei, porque me custa muito estar parado e parecia-me mal estar ali só a organizar um prémio por ano. Isso não fazia muito sentido e portanto fui organizando umas exposições a propósito desses prémios. Houve uma apresentação do espaço e depois fizeram-se outras exposições que se chamaram Continuações. Eu gostava que pudesse chamar-se à francesa À Suivre, mas não dava. Continuação em português não resulta, não é tão clara a ideia de episódios. Estas exposições eram feitas não tanto com a nossa colecção, que era muito fraquinha na altura, e muito escassa, mas com os artistas que nós tínhamos integrado nos prémios, tivessem eles ganho ou não. E assim fizemos umas nove Continuações em Lisboa, e depois, o que gostei muito de fazer, foi fora de Lisboa. Foi um desafio lançado pelo Centro Cultural de Sines (o antigo, o original) e que depois nós fomos sempre fazendo: fizemos em Tavira e em Castelo Branco, e agora o projecto está um pouco parado porque não temos equipa para isso. Nesse contexto, o meu interesse era sempre o de organizar os prémios e que eles tivessem visibilidade, qualidade e suporte, catálogos que pudessem transmitir o que se mostrava, e fossem sempre traduzidos, etc.
A instituição da Fundação, a recuperação do museu – do museu mesmo de electricidade, não do espaço original da apresentação – e, além disso, a dotação de novo dinheiro para a colecção, permitiram voltar a ter ambições diferentes. E isso permitiu, ou permite, ou permitirá, ainda que o projecto vá ser lançado em breve – suponhamos que estará pronto para o ano - a recuperação do tal espaço original. Gostava que a galeria se chamasse “Central Tejo”, mas é capaz de vir a chamar-se “Carpintaria”, porque ali era a antiga carpintaria. O que eu entretanto fui fazendo e programando foi o espaço cá de baixo, pequenino, que é um espaço laboratorial, para mostrar projectos experimentais de artistas. Isto permite também a possibilidade de, apesar de tudo, aumentar muito a colecção... Estou a fazê-la depender do que fomos expondo, ou seja, como nós produzimos as exposições todas, vamos negociando com os artistas. Concebi a lógica do espaço, que era um espaço onde só se apresentavam obras originais, que podiam ter sido já apresentadas, mas nunca em Portugal. Houve uma exposição da Joana Vasconcelos ainda em 2006, que era a Ilha dos Amores, que apresentava uma sequência daqueles crochés que ela andava a fazer. Era a primeira vez que era apresentada em Portugal e ela tinha sido o nosso primeiro prémio Novos Artistas, portanto fazia todo o sentido começar com ela. E depois houve uma interrupção muito grande, porque o espaço não tinha condições arquitectónicas adequadas. Com este director houve uma luta para se transformar o espaço e agora está impecável. A programação começou em Abril com o Daniel Barroca, depois com o Noé Sendas, o Xana, o Miguel Soares, e no Natal, fez-se uma colectiva – chamava-se “Uma Luz” – que era bastante triste para o Natal (risos). Foi uma coisa fora da lógica. Agora está a exposição da Rita e do Alexander, e a seguir virá a do Manuel Botelho, que vai mostrar fotografia, um meio novo que ele nunca usou. Portanto, neste caso há uma programação muito específica. Lá para cima, o público é diferente e temos de pensar em soluções mais abertas. Agora está lá a exposição “100 anos de Niemeyer”. A seguir estará o André Gomes. Depois há aquela exposição do João Silvério, que esteve em Nova Iorque, o “Stream”, ou então uma mostra comemorativa sobre os 50 anos da Traviatta em Portugal, que tem a ver com a parceria que temos com o Teatro de São Carlos. E depois o prémio EDP Novos Artistas, que este ano vai ser apresentado em Lisboa na Central Tejo.


P: O Museu de Arte Contemporânea de Elvas – MACE inaugurou em Julho de 2007. Como é que está a ser a experiência?

R: A minha ligação a Elvas também foi acontecendo. Em 1999, o António Franco, director do Museo Extremeño y Iberoamericano de Arte Contemporáneo – MEIAC (Badajoz) apresentou-me um coleccionador que queria fazer uma exposição no museu, mas que não tinha colecção. Isso tem a ver com aquele impulso fulgurante do António Cachola e com aquele desejo que ele tem de fazer coisas. É um empreendedor nato. E tinha algumas peças, mas o António Franco achava que nem em quantidade podiam ocupar o espaço do museu. Efectivamente, o António Cachola queria fazer uma colecção e tinha muito gosto nisso. Fomos apresentados e a partir daí fiz a colecção nuns prazos que eram completamente desvairados. Foi uma colecção feita à pressa, um início de colecção, a pensar no espaço que havia, que era preciso ocupar e desde o princípio foi muito falada com ele. Não entregou a chave, a carteira e disse “agora comprem”. Por um lado, controla toda essa parte, por outro, tinha um grande interesse em saber porque é que eu escolhia aquele artista e não o outro. Ele próprio já tinha visto muita coisa, desde os anos 80, inclusivamente na terra onde ele trabalha - é natural de Elvas, mas trabalha em Campo Maior. Tinha lá havido umas exposições, na última das quais eu participei, que era a EIAM (Exposição Ibérica de Arte Moderna), umas mostras organizadas pelo Fernando Azevedo, pela Sílvia Chicó, e a última fui eu que organizei. O Luís Serpa esteve também ligado a essa minha chegada a Campo Maior, mas depois afastou-se, porque estava na parte da produção e não havia dinheiro... Nessa exposição, que foi em 1989, apresentei os pintores que passaram a segunda metade, final dos anos 80, clandestinos – clandestinos ou que aparecem fora do tempo: Patrícia Garrido, o Gil Heitor Cortesão, a João Salema, e havia o João Louro, que fazia umas pinturas com carácter político, como o John Kennedy a ser assassinado... E eu fui a primeira pessoa que o apresentou. Tenho muitas coroas de glória dessas. Mas agora já vai sendo mais difícil fazer essas descobertas.

O António Cachola viu essa exposição, ficou muito entusiasmado e depois maturou a ideia. Dez anos depois, quando tinha dinheiro, lá resolveu começar uma colecção. E eu fiz essa colecção, mostrámo-la no MEIAC em Badajoz, houve um catálogo e foi só. Continuei evidentemente a falar com ele, de vez em quando telefonava-me a perguntar umas coisas, mas não mantivemos mais nenhuma relação de curadoria ou comissariado. Depois aprendeu rapidamente entre o que gostava, o que era bom, e foi reforçando a colecção sem eu nunca mais ter voltado a falar com ele, enfim... de nenhum assunto específico. Posteriormente, há uns quatro ou cinco anos falou comigo para me mostrar os sítios para a futura localização do museu. Mas foi ele que desencadeou toda aquela operação junto do Presidente da Câmara, junto da Raquel Henriques da Silva que na altura estava à frente do Instituto Português de Museus - IPM. E cerca de um ano antes do museu abrir, começou a insistir comigo – e ele é muito mais teimoso do que eu...


P: Mas eu queria perceber também como é a experiência de trabalhar num contexto institucional como aquele que enquadra o Museu de Elvas, uma instituição gerida pela Câmara Municipal?

R: Não sei se sabe, mas não há directores nos museus municipais, e por isso também me agrada a situação de ser considerado director de programação. Toda a parte administrativa, orçamental, é da Câmara, portanto, eu só digo, “ponham isto aqui, ponham ali”, “façam isto, façam aquilo”, e converso mais com o António Cachola sobre a colecção do que conversei nestes anos todos. No entanto, é vulgar ele dizer-me assim “fiz um grande disparate, comprei não sei o quê, achas que fiz um grande disparate?”. E eu digo se acho que é disparate ou não.


P: Implica negociação?

R: Pois, para já, nem faço isso. Faço o contrário. Antes do museu abrir aconselhei-o a reforçar as linhas da colecção, porque penso que qualquer colecção deve ser feita não com peças isoladas, mas com grupos de peças, que acompanhem os artistas. É escusado abrir muito o leque de artistas, porque o resultado são grandes exposições que só têm uma peça de cada artista. Se é só para dizer que temos peças de todos os artistas, não vale mesmo a pena. Mas as sensibilidades que a colecção pode ter, tem um pouco a ver com os gostos dele e eu tento orientar a composição em função das disponibilidades que existem.


P: Mas quais são as diferenças mais significativas para si entre organizar exposições na qualidade de comissário independente e ser comissário e director artístico do Museu de Elvas?

R: Imagine que chega a um sítio, que é nomeada directora de um museu de Arte Antiga e que a colecção é aquela que lá está. Tem de orientar-se com aquilo que existe. Eu acho isso engraçado, eu gosto.


P: É um desafio ou é um peso?

R: Não, eu acho que é sempre um desafio, eu sou positivo. Não é um peso, eu não vejo assim nada na minha vida que seja peso, mesmo as coisas muito chatas, acho sempre que se consegue ultrapassar. Não tenho essa noção de peso. Lidar com a colecção, isso não me custa nada. Depois, acho muito interessante lidar também com os espaços, quando o espaço é difícil.


P: E como é que se afirma um museu e uma programação no seio de uma comunidade distanciada da arte contemporânea, numa cidade sem uma profunda história cultural no domínio da arte contemporânea?

R: Há uma coisa que eu acho sempre que é um falso êxito, mas que é preciso continuar a insistir nele – isto não é para fazer críticas ao serviços educativos, nem àquele nem a nenhuns, porque o que faz viver os museus hoje em dia, desde o Museu de Arte Antiga até ao Centro de Arte Moderna e Museu de Serralves (enfim, Serralves é um caso à parte), são os visitantes que lá vão. Será que aqueles visitantes devem ser contabilizados? Devem contabilizar-se agora ou daqui a dez anos se voltarem lá por iniciativa própria? Mas o serviço educativo é fundamental para fazer essa ligação e o de Elvas tem duas dimensões interessantes que talvez tenham a ver com a lógica autárquica de interior. Tem uma vertente infantil e juvenil e tem uma vertente sénior. E depois há as crianças que trabalham nos ateliers. Há ainda as visitas guiadas – que já devem ser contabilizadas na tal lógica diferente da das escolas. Mas o que eu acho que pode afirmar o museu na comunidade, mesmo que isso seja apenas um ícone, é o orgulho que dá às pessoas terem um museu em Elvas. Provavelmente até poderia ser outra coisa, mas faz com que se fale da terra, que venham referências nos jornais e se recebam prémios. Elvas recebeu agora um prémio da Bolsa de Turismo, acho que era na categoria “cidade”, e o prémio para o “empreendimento mais interessante” no ano passado, e as pessoas ficam muito contentes com isso. Há um orgulho da terra, como acontece no Porto em relação a Serralves. As pessoas podem ir lá e não percebem o que lá está, mas sabem que Serralves é um ponto de referência nacional e internacional.


P: Qual é o balanço destes primeiros seis, sete meses de actividade?

R: Em termos de visitantes foi muito bom, o período do Inverno foi um pouco mais baixo, mas não tanto assim. Os visitantes individuais, os visitantes em grupo sem serem esses do serviço educativo, também apareceram em grande número. Quando fizemos uns anúncios por ocasião da outra exposição já tínhamos tido cinco mil visitantes, eu não sei agora como é que estão as somas, mas acho que para um museu que está naquela circunstância, e isso era três meses depois de ter aberto, não é mau. Não faço nenhuma guerra de audiências como fazem Serralves, Gulbenkian e o CCB. A recepção empírica das pessoas que encontro também é muito boa, mas não tenho nenhuma guerra de audiências, se bem que isso seja importante para o poder local, mas não tanto para a comunidade. Para eles é muito interessante que tenha aparecido muitas referências ao museu feitas por “opinion makers”, pessoas que não têm nada a ver connosco, caso da Maria João Avillez ou do Carlos Magno, que fizeram recomendações. E isso é importantíssimo porque é sempre um instrumento de afirmação da cidade, tem sempre uma dimensão política inevitável.


P: E em que outros projectos está agora a trabalhar?

R: Em termos de investigação a curtíssimo prazo estou na Fundação Arpad-Szenes Vieira da Silva, a preparar uma exposição para Junho, no âmbito do centenário da Vieira da Silva. A ideia é partir do Castelo Surrealista, que é uma obra que o Cesariny escreveu nos anos 60 e publicou em 84, que fala da obra do Arpad e da Vieira dos anos 30 e dos anos 40 (se bem que tenha um quadro ou outro dos anos 50, anos 60). Ele fala daquele período, e esse livro será o guião para visitar a dupla Vieira-Arpad através do Cesariny. Vai ser uma exposição difícil, mas muito gira. Tem uma parte documental que é toda a investigação que ele fez para fazer o livro: os rascunhos, as idas à Biblioteca Nacional, os quadros que ele chegou a escolher, os recortes. Há assim uma espécie de “making of” do livro. O livro também será reeditado pela Assírio e Alvim a cores, porque o original é a preto e branco, e está esgotadíssimo. Nós vamos tentar depois reconstruir, fazer passar o livro para a parede. Por exemplo, vou ver se peço emprestado o Patinir ao Museu de Arte Antiga, e há toda a parte das fotografias do Cesariny com a Vieira da Silva. Vai ser publicado ao mesmo tempo, pelo António Soares e pela Sandra Santos, a bibliotecária da Fundação, o estudo das cartas que eles escreveram entre si e nós vamos fazer uma edição à parte da correspondência da Vieira da Silva com o Cesariny. Vai ser uma operação de reedição das cartas e o catálogo que reflecte a exposição dessa maneira.
A longo prazo, em 2009, será a investigação para a exposição do Eduardo Batarda, que ganhou o Grande Prémio EDP no ano passado. Nós fazemos sempre a exposição dois anos depois. A exposição da Gulbenkian era, como o próprio Batarda diz, um pouco confusa, e foi feita um pouco à pressa. O catálogo estava muito estranho e era necessário ordená-lo como deve de ser. Eu ainda nem discuti isso com ele, mas o Batarda foi um importantíssimo crítico de arte durante um ano ou dois, numa época em que ninguém escrevia sobre arte, e gostava de apresentar esses textos. Ele escrevia o triplo do que se escreve habitualmente, num jornal revolucionário, que era o Sempre Fixe, que era uma coisa que saía com o Diário de Notícias.

E agora, em termos da EDP, há a exposição do André Gomes, que não requer muita investigação, mas vai ser um investimento, porque o espaço lá em cima é muito complicado e se é importante haver números para Elvas, para a EDP não é menos importante que muita gente visite o museu. Não é que ele não seja principalmente visitado por causa das iniciativas artísticas, mas é bom que seja. E o trabalho do André Gomes também entra numa lógica comemorativa, que foi um acaso, porque é sobre a Ode Marítima. Vamos fazer um espectáculo, o João Garcia Miguel vai dizer a Ode Marítima e vamos fazer algumas iniciativas à volta disso. Depois, é a exposição da Vieira. Eu tinha ideia de fazer uma coisa da Vieira na EDP, documental, mas convidando um artista a encenar essa parte documental, e seria lá em baixo no espaço, a seguir à exposição do Manuel Botelho. Ainda este ano tenho as exposições da Fernanda Fragateiro, do Pedro Gomes e entretanto virá o Prémio Novos Artistas, que vai ser em Lisboa.


P: Para terminar, o que é que pensa estar a fazer daqui a dez anos? Cinco, se quiser...

R: Eu nunca vou descansar, porque estou nestes sítios todos sempre como externo, free lancer, e sou muito desleixado com a minha segurança, apesar de ter três filhas.

Ganhei com o Ricardo Gordon a construção e o guião expositivo do Pavilhão de Saragoça, em que este ano a exposição universal ou internacional é dedicada à água. A água e a sustentabilidade, mas água potável, dos rios, não do mar. Houve um concurso e nós ganhámos. Fiquei muito satisfeito, porque é uma coisa que não é nada na minha área, no sentido em que tenho de falar sobre o Douro, o Tejo e o Guadiana e inventar um guião (que já inventei, mas que agora estamos a afinar). Isso inaugura a 14 de Junho e as imagens que nós vamos apresentar vão ser feitas por um artista, fotógrafo, evidentemente, que é o Nuno Cera, que eu acho que tem genica para isso. E está aí a chegar para começar a trabalhar, porque há pouquíssimo tempo. Aquelas fotografias funcionam simultaneamente como uma fotografia documental que depois tem autonomia artística.

Daqui a dez anos, tenho 60 anos. Gostava de estar em Itália a ver o Piero Della Francesca (risos). Não, não, isso é uma piada. Eu acho que vou estar a fazer, nos mesmos sítios ou noutros sítios, aquilo que faço agora. Não quer dizer que era o que eu gostava de poder fazer. Gostava muito de poder escrever sem ser sobre arte, ou sendo sobre arte... fazê-lo num timing que me pudesse satisfazer plenamente. E é isso que eu às vezes não consigo. Não quer dizer que eu não passe por cima disso e não esteja sempre bem-disposto, até a fazer coisas maçadoras, às vezes. Gostava de poder ter menos compromissos. Basicamente, se disser que gostava de estar a fazer o que estou a fazer hoje, é verdade, não quer dizer que seja no mesmo sítio...


P: O que é muito bom sinal.

R: Gostava de ter tempo para ler mais, não especialmente sobre arte, porque isso é o que me obrigo a ler, mas literatura, que eu gosto muito de literatura, é uma área da minha vida que eu não desenvolvi, que eu devia talvez... Era a minha primeira opção de vida. Não era literatura de ser escritor...


P: Talvez crítico literário?

R: Não sei, isso nunca teve desenvolvimento nenhum... Teria de ser qualquer coisa ligada à História.