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ALEXANDRE POMAR


Na entrevista que publicamos este mês, Alexandre Pomar, importante crítico de arte, fala-nos sobre si e sobre o contexto que o rodeia: a actividade jornalística, a imprensa, a política cultural, o contexto museológico, os seus artistas de referência e a actual conjectura nacional. Quando questionado sobre a intervenção dos agentes do meio artístico, Pomar acedeu ainda a expressar comentários às assumidas compatibilidades e incompatibilidades que pautam as suas relações.

Por Sandra Vieira Jürgens
Lisboa, 25 de Março de 2008


P: Durante muitos anos foi crítico de arte do semanário Expresso. Que balanço faz desse período de actividade?

R: Comecei por escrever alguma crítica de arte no Diário de Notícias e foi a partir daí que fui convidado a ir para o Expresso. Lembro-me sempre que o que desencadeou a passagem foi uma sequência de quatro artigos sobre a exposição “Anos 40” dirigida pelo José-Augusto França, onde tomei uma posição de grande divergência quanto a diversos aspectos históricos, e o Cesariny, num inquérito, declarou que eram um bom ponto de partida para um esclarecimento. Além de achar que tive razão, a aposta no debate compensou, porque foi por isso que me convidaram a ir para o Expresso. Continuei a pensar que era assim que valia a pena escrever, com independência e frontalidade de opinião. Fui para o Expresso como coordenador da área da cultura e restava-me pouco tempo para escrever mais do que notas do roteiro. Durante cerca de dez anos fui tentando acumular as duas tarefas, mas depois nunca deixei de ser jornalista além de ser crítico de arte. Acho que essa situação me permitiu ter uma posição particular e às vezes mais confortável.


P: Em que sentido?

R: Permitiu-me manter uma maior independência profissional e pessoal face ao chamado meio da arte, e, de vez em quando, afastar-me do comentário crítico sobre as exposições, que pode ser uma rotina penosa, para me ocupar mais de questões de política cultural ou de acontecimentos culturais em geral. Por vezes, o panorama era ou é tão medíocre que se torna vantajoso não ter a obrigação de escrever sobre tudo e assim poder escapar a demasiadas zangas e cumplicidades. Como a minha posição era a de coordenador, e como havia vários colaboradores, tinha a hipótese de passar algum tempo a escrever menos sobre exposições e mais sobre política cultural. Essa alternância era vantajosa ao equilíbrio pessoal e evitava um desgaste demasiado rápido.


P: Como definiria a actividade de um crítico de arte?

R: Há diferentes itinerários e as definições variam. Penso que fiz um trabalho atípico e provavelmente fui o último que na área das artes plásticas trabalhou num jornal como crítico e como jornalista com contrato. Hoje isso terminou. Passou a existir um regime só de colaboradores, certamente com uma rotação mais rápida de pessoas, e nesse sentido a minha actividade não é exemplar nem típica. Aliás, fui parar à cultura e à crítica por acidente, a minha área de trabalho era a política e as minhas intenções eram políticas. Não foi uma escolha deliberada. Fui para esta área de castigo, e depois não me senti mal. Quando fiz tentativas de regressar à política foi já na proximidade da acção partidária, porque a independência do jornalista não significa neutralidade ou perda de direitos. É algo que se constrói e é reconhecida, ou não é.
Penso que a crítica na imprensa é um género jornalístico e existem apenas diferenças de dimensão, de fôlego, conforme os suportes e as ambições. Quando se escreve para um diário, um semanário, uma revista, mesmo para uma publicação especializada, é evidente que a certa altura se pode entrar no domínio do ensaio, eventualmente do ensaio dito universitário. As fronteiras são fluidas, não há esferas estanques e sempre foi possível circular entre elas, mas as exigências de legibilidade e rigor são as mesmas das outras áreas do jornalismo. A especialização não quer dizer obscuridade ou autismo, e escreve-se para o público que lê e não só para a bibliografia dos artistas. Aquilo que dá hoje uma razoável ilegibilidade aos textos críticos publicados na imprensa é que eles são directamente transportados de outras instâncias, sem atenção ao lugar onde se escreve: são textos próprios do trabalho universitário, à maneira do pequeno paper, ou seguem o modelo do texto para catálogo, não fazendo diferenças entre as várias funções. A crítica jornalística, incluindo a das revistas tidas por especializadas, e uma revista de arte continua a ser uma publicação jornalística, tem a responsabilidade de dirigir-se a um público, deve comunicar. Mas é difícil gerir hoje esse papel porque também é muito difícil definir o lugar profissional a partir do qual se escreve: tem de se responder a múltiplas encomendas e de satisfazer diversos clientes que têm naturalmente exigências diferentes. Há dificuldades na compatibilização dos papéis.


P: Quais são essas dificuldades e em que medida se pode falar de uma mudança na evolução do trabalho do crítico nas últimas décadas?

R: Está-se sempre em mudança e o contexto é hoje completamente diferente do que era há vinte, trinta anos, sobretudo porque se tornou muito significativo no plano económico. É um sector que teve um crescimento exponencial associado a uma grande visibilidade e competitividade em termos económicos, de política cultural, de afirmação das cidades e fluxos turísticos, etc. Factores que inevitavelmente determinam aquilo que se escreve, e por isso as informações sobre as preços dos leilões ocupam muito mais espaço que o debate, ou a análise das obras. O espaço da crítica reduziu-se, também por culpa dos críticos, por nossa culpa, e o que agora se lhes pede é que promovam acontecimentos e vedetas, em conformidade com aquela mudança de contexto. De qualquer modo, é também um contexto em que a competição entre os que escrevem sobre arte é muito grande. Há um crescimento exponencial dos candidatos ao exercício da crítica, mas as possibilidades de profissionalização são diminutas, o que leva a que tenham de se movimentar simultaneamente nos vários lados desta área e percam uma das condições necessárias ao exercício da crítica enquanto género jornalístico: a independência, ou seja, um olhar de certo modo distanciado, a partir do qual é possível criticar de uma forma sempre subjectiva mas não arbitrária, porque se trata de escolher e avaliar, e depois de partilhar e confrontar opiniões, gostos, ideias. Se alguém escreve simultaneamente textos críticos para jornal, prefácios para catálogos, press-releases, eventualmente anónimos, se é consultor de galerias, às claras ou ocultamente, se é comissário ou candidato a tal, se orienta colecções privadas, não pode construir sobre a gestão desses múltiplos interesses um perfil profissional assente numa imagem de autonomia, isenção ou independência crítica.
Decorre daí, segundo parece, a fuga para uma definição de crítica enquanto mediação neutral entre os artistas e o público, repetindo o que o artista ou alguém por ele diz das intenções das obras, para as explicar aos leitores, o que não penso ser o que se exige da crítica jornalística. O exercício público do comentário situa-se no plano da interpretação mas também da avaliação de importância e de qualidade - há depois uma exigência de coerência das opiniões ao longo do tempo. O comentário é crítico, no sentido mais corrente, como é o do analista político, de economia ou de desporto. Ninguém remete a escrita sobre economia apenas para um papel de mediação pedagógica, justificando os impostos decididos por sucessivos ministros, para atender às limitações de conhecimento dos cidadãos. Ou seja, não é a lógica da explicação ou a intermediação escolar que consolida uma relação empenhada e forte com a escrita.


P: Depreendo das suas palavras que entende a crítica de arte como uma actividade singular, que não deverá extravasar nem para as áreas do comissariado, nem para a de programação…

R: Não é isso. Acho que se podem acumular actividades, mas é preciso construir e manter um lugar de credibilidade pessoal. Aliás, comecei por dizer que hoje ninguém pode ser crítico de arte na imprensa a tempo inteiro. É-se simultaneamente professor, conservador de museu ou comissário de exposições, as pessoas têm de se multiplicar por várias actividades a par da colaboração nos jornais. Não há impedimentos neste tipo de actividade, mas há situações em que os compromissos se tornam demasiado visíveis, com efeitos na descredibilização do discurso. Mas, hoje, o que me parece mais grave, e não digo dramático nem fatal porque estas coisas vão mudando, e antes já eram dramáticas por outras razões, a situação nunca é pior hoje do que era antes - enfim, aquilo que hoje é flagrante é uma situação de descredibilização dos vários agentes, não apenas do discurso crítico em concreto mas da gestão de grande parte daquilo que se propõe sucessivamente como arte com importância, e que circula num ambiente muito marcado por outros discursos que rejeitam a relevância desse tipo de objectos. É uma ecologia com demasiados iniciados e desconfiados. Os discursos que põem em causa a arte contemporânea enquanto género específico, e não como arte do presente, têm hoje uma credibilidade intelectual, teórica, muito grande, e não podem ser de modo nenhum identificados com a direita nem com a esquerda, ou só com posições conservadores. Grande parte dos que se pronunciaram sobre arte contemporânea, desde um Castoriadis a um Baudrillard, de um Harold Rosenberg ao Robert Hughes ou ao Yves Michaux, são autores de primeiro plano, cujo discurso tem que ser enfrentado, e não é. As questões do descrédito do discurso crítico sobre arte e também de certas programações institucionais têm de ser discutida. Quando as pessoas não se revêem em opções argumentadas retiram-se. Claro que há muita gente a passear nos museus e nos centros comerciais, porque o tempo do lazer cresceu, mas o que importa é a qualidade da recepção.


P. Como é que definiria a ética do crítico no mundo da arte?

R: Não me interessam as generalizações. Não tentaria definir o que é arte, que é um debate interminável e não tem interesse em termos práticos, porque a arte e a crítica vão acontecendo sem definições, tal como não estou interessado em fazer qualquer regulamento sobre a ética do crítico. As situações são diferentes, os perfis são diversos, e enfrentam-se na praça pública.


P: Qual considera ser o papel da crítica de arte na conjectura contemporânea? A crítica de arte tem uma função social? Que visibilidade e impacto tem a sua actividade? A crítica gera debate, afecta o mercado, faz ruído?

R: Há duas respostas paralelas. Por um lado, nunca houve tanta gente a fazer crítica ou escrever sobre arte nas suas diversas modalidades, desde o texto jornalístico ao ensaio universitário, ou ao texto para as galerias, o prefácio e o press release, o manual escolar ou o roteiro turístico. Este sector profissional cresceu exponencialmente, tal como cresceu o número de artistas e o espaço público dedicado às artes. Simultaneamente, parece ser consensual que os textos críticos não são para ler e que as revistas de arte são só para se saber sobre quem se escreve, para ver as fotos e folhear a publicidade. Os textos críticos que se publicam hoje nos jornais são pouco legíveis e pouco respeitados. Não digo respeitáveis, disse pouco respeitados.


P: Há quem lamente a falta de critérios por parte dos críticos na avaliação das obras de arte. Está de acordo com essa opinião?

R: O panorama actual é extremamente diversificado, existem várias realidades ao mesmo tempo. Desde que a modernidade já não é uma sucessão rápida de movimentos, sobre a oposição entre vanguardas e gosto maioritário, o mainstream oficializado caracteriza-se por um pluralismo totalmente abrangente, que inclui quer as sobrevivências ou continuidades neovanguardistas, quer propostas que seriam antes vistas como o kitsch mais comercial. Uma exposição que está agora no MoMA de Nova Iorque, chamada “Multiplex”, é um bom exemplo de que vale tudo, de como tudo coexiste e se encontra no mesmo plano, numa banalização das diferenças que torna muito difícil a recepção crítica dos objectos e uma avaliação da sua qualidade. O próprio título sugere a lógica do supermercado. Ao mesmo tempo, acho que assistimos a uma revisão acelerada das histórias estabelecidas, valorizando episódios ou artistas ocultados, graças a novas investigações e também à necessidade de mais valores no mercado. Em termos pessoais interessa-me tanto a aparição de novos artistas e os novos fenómenos como a descoberta de acontecimentos anteriores que tínhamos esquecido ou que não tínhamos chegado a conhecer, que foram importantes no seu tempo e hoje continuam a ser.
O panorama actual não é de modo nenhum feito apenas de novidades, e da apresentação de obras facilmente mediatizáveis; está a decorrer simultaneamente uma revisão profunda do que foi a construção da memória da arte do século XX, e dos finais do XIX, desde o entendimento da modernidade como sucessão de vanguardas e do paradigma do modernismo como percurso formalista que depois se converteu num essencialismo fechado sobre si mesmo, a arte sobre arte, desde a rejeição do temas à indiferença Pop pelos conteúdos, ou ao chamado regresso ao real com o carácter inócuo da arte de museu. Essa é apenas uma interpretação do século XX, tão precária como foi o academismo oficial do século XIX, e que está a ser confrontada pela permanente reconsideração de artistas que contrariam esse percurso, que submeteu o moderno ao modernismo e depois o dissolveu no ecletismo pós-moderno.
Pessoalmente interessam-me tanto as aparições como as continuidades de carreira e interessa-me entender que a maneira como hoje valorizamos certos fenómenos não corresponde em nada à importância efectiva que tiveram no seu tempo. O Duchamp dos ready-mades é uma construção dos anos 50-60, já paralela ao “Étant Donnés” que é o seu contrário; antes era como se não tivessem existido porque não estavam nos livros que se estudavam e não eram uma referência influente. A primeira grande exposição de Picasso em Paris foi em 1919, já quando estava associado aos Ballets Russes, num contexto mundano que lhe deu imensa projecção, e que era também o do chamado regresso à ordem. Antes disso, os grandes espanhóis conhecidos em Paris, fora dos círculos da vanguarda e da boémia, eram o Anglada Camarasa, que foi professor do Amadeo, o Sorolla e o Zuloaga, antes o Dário de Regoyos. Eram grandes pintores modernos, não académicos, com obras melhores e piores, como sempre, e é extremamente interessante rever essa história. Isso importa-me tanto como o que é nosso contemporâneo.


P: Acha que a maneira de ler as obras de arte se modificou? Falou de paradigmas. Qual foi o paradigma com que mais se identificou em termos da sua actividade?

R: Eu tenho vindo a coleccionar paradigmas e exemplos de como se usou com extrema ligeireza as marcações de rupturas e mudanças de paradigmas. Para além de se tratar de discursos textuais, de interpretações e não de factos, grande parte dessa lógica é falsíssima. Assisto com distância, por exemplo, ao facto de se ter construído o Museu de Serralves sobre o modelo “Circa 68”, uma mudança de paradigma que teria ocorrido em torno de 1968 e cuja validade se prolongaria até hoje, passados quarenta anos. Aliás, a tal exposição “Multiplex” diz a mesma coisa com um sentido político oposto, querendo ser um panorama de continuidades desde 1970. Seria o mais longo dos paradigmas, apesar de tudo ter mudando profundamente.
Tinha já havido uma mudança decisiva nos anos 50, em parte por efeito da Guerra Fria, que provocou a quase ocultação dos realismos e a suposta vitória da abstracção e da pureza formalista - é uma batalha que durou toda a década de 50, também em Portugal. Dou um exemplo. Gosto de edições antigas, de época, e tenho um livrinho do Alfred Barr, do MoMA, chamado “What Is Modern Painting?”, que teve a primeira edição em 1943 e foi depois revisto em 46 e em 53, com uma última edição de 59. É muito curioso ver como a mudança da situação política, desde a aliança com Estaline contra o nazismo à divisão dos dois blocos pela Cortina de Ferro, se vai reflectir na invenção de uma oposição ideológica entre figuração e abstracção, trocando a defesa inicial dos anteriores realismos com intervenção social, vindos já do México e da Grande Depressão, pelas ideias de forma pura e de autonomia da arte, que se instala nessa década como diferença entre o “mundo livre” e os regimes totalitários. Há outros dois livros exemplares: o de Georges Bataille sobre Manet, de 1955, que continua a ser lido como uma bíblia, identificando o começo da modernidade com a suposta destruição do tema, com uma ideia de pureza importada da música, a pintura sobre a pintura, etc. Como se Manet não pintasse a vida moderna. No fim da década aparece a síntese do Herbert Read. Logo na introdução avisa os leitores que vão ficar admirados por não falar do Rousseau, do muralismo mexicano, do Balthus, do Spencer e do Hopper, decretando que não fazem parte da história do estilo da arte moderna. Por acaso nem chega a citar a Frida Kahlo, que os modernistas não levavam a sério, mas que chega ao fim do século no CCB e na Tate Modern. Essa luta contra o tema e contra a imagem trava-se nos anos 50, e logo com a Pop as coisas mudam. Não há um novo paradigma em 68, há diferentes lutas sociais que envolvem os artistas e que têm os seus ecos e vestígios. Por outro lado, acontece que quando chegamos ao final do século XX, os grandes artistas mais reconhecidos são aqueles que o Herbert Read citava apenas como antecedentes do expressionismo abstracto e os que ele se permitiria colocar de fora do moderno. Isto é, o Balthus, o Bacon, o Lucien Freud ou a Paula Rego, que já não é do tempo dele. Ou seja, considerando o que se afirmou nos anos 50, e depois o que se tentou destruir nos anos 60/70 - por exemplo, a tradição da pintura substituída pelos novos media -, pode ver-se que a herança do século é completamente outra. Posso falar das minhas escolhas de grandes artistas, onde incluo o Balthus, Freud, Hockney, o Kitaj e o Arikha, ou o Frank Stella maximalista, muitos outros, mas não funciono a partir de paradigmas. Cito percursos excepcionais que sobreviveram a uma segunda metade do século que tentou afirmar paradigmas que negavam a respectiva importância. O que é significativo é que Serralves precisa de expor a Paula Rego, embora seja uma absoluta demolição da lógica “Circa 68”, porque o museu precisa de público, de visibilidade e respeitabilidade social. A pintura recente de Paula Rego é o regresso à história, ao literário, à perspectiva, à figura no seu espaço social, ao desenho diante do modelo, o retorno ao sentido, à imagem crítica e ao significado da arte, tudo o que uma estranha aliança com o esquerdismo quis eliminar. Acho que para além do que hoje se vende mais ou menos caro, do que os museus expõem mais ou menos, há outras coisas que estão a acontecer, mais poderosas. Eventualmente algumas não são muito mediáticas, mas outras atraem com razão grandes públicos.


P: Fez uma extrapolação para a história da arte portuguesa e referiu a obra de Paula Rego. Que outros percursos destacaria entre os criadores portugueses?

R: Não queria destacar nomes, até porque tenho visto demasiados percursos que não se consolidam depois das promessas de partida. O meio é muito adverso, o país é pequeno e não há museus. Há um circuito contemporâneo mas muito pouca história e poucos modernos para ver. Não é por acaso que o Pompidou não se separa em duas instituições, com uma parte moderna e outra contemporânea. Não é por acaso que a Tate Modern não afastou o moderno do contemporâneo, optando pela existência de duas instituições paralelas. Só o confronto permanente com o museu, com o Manet, o Bonnard, o Picasso, e não apenas fotografias e fotocópias de capítulos, consolida uma aprendizagem e uma vitalidade que aqui não podemos ter. Acho que é muito difícil sobreviver como artista interessante em Portugal, e mais ainda porque há certas facilidades que dificultam a solidez do trabalho. A entrada maciça de artistas no ensino universitário é uma coisa que não consagra mas destrói carreiras, tal como a administração do presente pelos museus que existem, e também a dinâmica coleccionista que aposta em especial em jovens artistas, nas emergências a baixo preço, e que não favorece ou acompanha as maturidades, se a elas se pode chegar aqui. As características actuais do mercado de arte são muito gravosas para a consolidação das carreiras.


P: Falou do Museu de Serralves. Que ideia tem sobre o que deve ser um museu? Deverão ter uma linha de actuação e de programação muito definida ou deverão estar abertos a várias possibilidades?

R: Julgo que os museus têm de ser instituições abertas a vários discursos, o que não significa pluralismo sem princípios. Por exemplo, Serralves (e tenho admiração pelo João Fernandes) segue uma linha de programação muito definida que decorre da defesa do tal paradigma, com um esquerdismo já sem sentido e que por isso é sustentado por tantos mecenas. “Circa 68” representa as revoltas de uma época passada, corresponde a ilusões revolucionárias e a derrotas que tiveram um forte sentido social e político; a gestão desses restos pelo museu é, em termos artísticos, algo que importa discutir. O que me interessava ver nas instituições portuguesas eram artistas que considero importantes e que representam outras práticas. Só para dar alguns exemplos americanos: Fairfield Porter, que o John Ashbery dizia ser talvez o mais importante norte-americano do século XX, mas ninguém saberá quem é; a Alice Neel, que retratou inúmeras figuras da cultura da segunda metade do século e nunca aqui se viu certamente. A certa altura até cheguei a desafiar um museu para uma exposição só com artistas à margem da cartilha minimal-conceptual. O Wayne Thiebaud, um dos maiores paisagistas contemporâneos, de São Francisco; o Richard Diebenkorn que já foi possível ver em Madrid; o Robert Colescott, um velho negro figurativo que representou os Estados Unidos em Veneza em 1997, mas que ninguém conhece, e eu também não; o Leon Golub, que é mais reproduzido; o Rackstrom Downes, outro homem das paisagens. Em parte não são vistos porque é difícil reunir obras, que foram absorvidas pelo mercado privado, e os museus preferem organizar exposições rodando as suas colecções e descobrindo fundos de atelier de artistas mais ou menos marginais que pouco ou nunca chegaram ao mercado. Morre alguém que nunca ninguém soube quem era e faz-se uma gestão de espólios, que passa por Serralves e outros museus idênticos, desde o croata Dimitrije Mangelos à brasileira Lucia Nogueira, artistas que deixam obras baratas para o mercado museológico. Esse é um outro mercado muito activo hoje e com regras próprias. Acho que há uma política sistemática de ocultações e o que nos é mostrado são em muitos casos obras muito pouco relevantes.


P: Os artistas que referiu são maioritariamente americanos? Isso deve-se a alguma razão específica?

R: Não, e também posso dizer o nome de alguns grandes artistas dinamarqueses (risos). Em Copenhaga, por acaso, tive a oportunidade de ver o Hammershoi, uma das figuras mais notáveis da viragem do século XIX para o XX, que já conhecera em Paris e veio em 2007 a Barcelona. Mas também descobri o L. A. Ring, que foi um magnífico pintor local, e acrescento a muito jovem Kathrine Aertebjerg, que não deve ainda andar pelas revistas. Acho que em Portugal vivemos sob o domínio de um discurso sobre arte que é escolar e completamente provinciano, apesar da presunção cosmopolita das idas a Kassel e à Frieze. Noutros lugares o panorama é mais aberto e mais rico que a redução à lógica das vedetas das instituições e das notícias sobre leilões. Para lá do êxito de um Jeff Koons ou de um Damien Hirst, que hoje fazem a cúpula do sistema - a cúpula do mainstream na dupla vertente dos museus e do grande mercado -, é preciso e possível encontrar alternativas mais interessantes.


Que opinião tem sobre a crescente importância das casas leiloeiras e sobre a concorrência que fazem às galerias no plano da comercialização de obras de arte contemporânea?

R: As artes plásticas sempre estiveram associadas ao mercado. A ligação ao grande capital não é novidade, mas o facto deste sector ser recomendado como área de investimento mudou a mediatização dos objectos de arte, que tendem a ser vistos, em primeiro lugar, como aplicações de capital. Isso tem vindo a alterar o entendimento do coleccionismo, porque se até hoje, em geral, se comprou por gosto, agora é recomendável coleccionar como investimento e também para aceder a círculos de convívio elegante que se movem em torno da arte contemporânea. Quem colecciona por paixão não se identifica com esta espuma mundana e retira-se, ou passa a ter medo de ter opinião, ou de ser considerado pateta. Como as galerias são vistas como plataformas do mercado de investimento, têm hoje menos público realmente interessado em exposições. Mas existem também lados positivos desta situação. Este é um sector que em termos profissionais absorve muito mais gente, quando as actividades produtivas desertaram, as siderurgias e as minas fecharam. A engenharia social de Bruxelas encaminha um número crescente de estudantes para a área das artes, o que faz com que as escolas tenham de absorver imensa gente com incertas aptidões, que não serão artista mas se intitulam criadores. Daí decorre, aliás, a rejeição das ideias de talento e de qualidade, e o facto de haver novas regras para a crítica.


P: Acha que os museus irão ter cada vez mais dificuldades financeiras nas suas políticas de aquisição pelo facto do coleccionismo privado ser mais forte?

R: Os museus têm-se defendido do crescimento dos custos das obras, pela entrada de imensos investidores no mercado, procurando áreas que ainda permanecem por algum tempo no exterior dessa atenção especulativa. Essa foi a fórmula que Vicente Todolí ofereceu a Serralves, com coisas que na altura eram baratas. Hoje já não são, e esse modelo já tinha sido o do IVAM de Valência, construído pelo Tomás Llorens e pelo Todolí com base na subvalorização dos documentos construtivistas e dadás, na linha da fotomontagem do Josep Renau, um valenciano. Serralves procurou um nicho para se afirmar como museu internacional, mas já não há artistas nem nichos de mercado desconhecidos… e, se o são, logo na semana seguinte deixam de ser. O número de museus também tem vindo a aumentar - não tanto em Portugal porque os recursos são menores -, dado que se lhes atribui um papel na recuperação do tecido urbano e na competição entre cidade. As opções estéticas de programação passam agora pela necessidade de preencher grandes espaços com obras menos apetecíveis no mercado de investimento, com instalações, projecções e obras efémeras, encomendadas para um espaço e um momento, e para desfazer depois. Correspondem às cenografias festivas que os artistas faziam nos palácios. Duvido é que essa dinâmica paralela ao grande mercado e mais acessível seja sustentável, porque o público não é tolo e percebe que as coisas interessantes não podem ser vistas porque estão nas colecções privadas.


P: Qual é a sua grande referência em termos de instituições museológicas?

R: A resposta é complicada porque os museus são interessantes durante algum tempo e depois vergam-se às regras do marketing financeiro ou político. A pressão é para que cumpram outro tipo de papéis, para serem menos o lugar onde se coleccionam e conservam obras, e mais espaços de animação, ou laboratórios de criação de novidades mais baratas... Os museus estão hoje a concorrer entre si segundo o papel que lhes é atribuído pela nova economia da cultura e pelas políticas urbanas, e imitam-se uns aos outros. Porque é que me pede o nome de um museu? Não viajo o suficiente para saber se as referências que conheci continuam a ser grandes. Posso dizer-lhe que em Bilbau me interessa menos o Guggenheim do que o Museu de Belas Artes, onde pude ver uma grande instalação do Anthony Caro, o “Juízo Final”, e o Orazio Gentileschi, em simultâneo, em 2000. Durante algum tempo, o IVAM também foi um museu muito interessante, para ficar pela península. Mas o que me dá mais gozo é ter visto o Guttuso em Bagheria, ao lado de Palermo, o Fahlstrom em Lucca, o Soutine em Ceret, o Regoyos em Santillana del Mar.


P: Acha que as instituições portuguesas estão a desenvolver um bom trabalho? Como é que o avalia? Acha que estamos a viver um bom momento em termos da oferta e da programação realizada pelas grandes instituições do país?

R: Não. Mas a situação tem mudado. Fui uma das pessoas que defendeu a instalação da Colecção Berardo no Centro Cultural de Belém. Aí parece haver condições para alterar a relação com a arte moderna e contemporânea, e gosto de ver o museu cheio de gente. Esse facto é por si só positivo, e o dinamismo de Serralves também tem qualidades. Mas, em geral, acho que se tem assistido ao enquistar de museus e instituições congéneres em situações que dependem só dos humores e dos interesses dos respectivos directores. Os museus não têm conselhos de patronos, nem tutelas políticas com vozes audíveis, nem administrações com energia - excepto em Serralves, de novo, e às vezes em excesso. Podemos assistir à transformação do Museu do Chiado e ao regresso ao nome antigo com diferentes propósitos só por vontade de um director, sem que nada fosse politicamente pensado e enunciado - foi-se escorregando entre vazios de poder. Ou podemos assistir a situações de penosa sobrevivência de outras instituições onde existe uma situação não de autonomia mas de autismo. Julgo que há uma situação frustrante, com várias instituições a concorrer no mesmo segmento da arte contemporânea. É como se este universo não fosse estrategicamente pensado; deixa-se correr, porque não há opiniões credíveis nesta área, e diminuem-se os recursos.


P: E como encara a política estatal ao nível da área cultural?

R: Nesta área dos museus a política estatal tem feito parcerias com terceiros, que de algum modo se tornam exemplares, como Serralves ou o CCB, enquanto condena à quase paralisia a sua estrutura própria. É uma situação que não pode prolongar-se porque atingiu o limiar mais baixo, mas duvido que haja neste momento condições económicas e tempo para revisão imediata. Até há pouco tempo as prioridades eram uma delegação do Hermitage e a instalação do Museu da Língua onde era o Museu de Arte Popular, e não existia nenhuma reflexão conhecida dos poderes políticos sobre este sector. Há apenas uma gestão de interesses particulares. Pode-se ser conselheiro cultural do primeiro-ministro e comissário da Fundação Ellipse, que começou por ser um fundo de investimento e será uma colecção privada. Pode-se dirigir o Museu do Chiado e ser comprador para a mesma Ellipse, preenchendo o Museu do Chiado com exposições e obras que chegam por essa via, seguramente em condições mais favoráveis por passarem pelo museu. Tudo isso conta para a falta de credibilidade do sector, que é às vezes falta de dignidade e de respeito pelo chamado público.


P: Se fosse ministro da cultura qual era a medida mais urgente que tomava?

R: Estou optimista com a mensagem do actual ministro quando diz que é preciso fazer mais e melhor com menos. Antes dos meios importam as opções. Existem situações graves quanto à sobrevivência de museus e do património, e há questões concretas do funcionamento do aparelho público da cultura que importa considerar, mesmo se já se avançou com o emagrecimento dos institutos deixados pelo ministro Carrilho. Ao contrário do que as pessoas tendem a pensar, ainda há meios desperdiçados, e luxos ou inutilidades que ganharíamos em cortar. Corremos antes o risco de ter a maior estrutura do mundo dedicada à arte contemporânea, que seria o CCB sob a direcção de Delfim Sardo; temos ainda o maior edifício do mundo consagrado à fotografia, a Cadeia da Relação, confundindo o uso do património com o apoio aos fotógrafos. É um absurdo caríssimo e nada operacional com que é urgente acabar.


P: Que tipo de relações manteve com os agentes do meio artístico? Muitos não simpatizavam com o que escrevia?

R: Acho óptimo que haja alguns, ou mesmo muitos, que não simpatizem com o que defendo, e que se saiba porquê. Fui escrevendo aquilo que ia sendo possível escrever a partir de uma posição que associava o jornalismo profissional com a crítica, em função das minhas convicções, dos gostos e das leituras, que obviamente são diferentes dos de outros. As relações foram de independência face às encomendas. Devo ter escrito um ou dois textos para galerias, escrevi dois textos para retrospectivas institucionais, fui comissariando algumas coisas muito pequenas, em salões discretos, mas pude ter um hobby ou actividade paralela num espaço privado e familiar, às vezes com algum fôlego, já que fiz dois volumes de um catálogo raisonné e organizei ou apoiei algumas exposições. Mas efectivamente tive e tenho más relações com algumas pessoas… Já agora posso dizer um disparate: um dos factos de que me orgulho foi o Vicente Todolí apontar as duas coisas de que não tinha gostado em Portugal, a chuva do Porto e eu. Numa última entrevista de despedida, ao Óscar Faria, no Público, um dos mais influentes directores de museus do mundo... não é o ponto culminante da carreira, mas até podia ser (risos).


P: Sente isso como um elogio?

R: É um reconhecimento. Posso lamentar não me entender com mais gente, para ter mais companhia, mas acho que a diversidade de opiniões e a confrontação de ideias, e até de pessoas, são coisas que fazem falta num contexto demasiado morno, muito centralizado e imóvel. As pessoas não podem entender este universo de segredos, onde os mais anónimos vão trocando de posições, num campo que devia ser o da polémica argumentada. Usamos demasiadas meias tintas, toleramos situações inaceitáveis durante tempo de mais.



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