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ENTREVISTA


Isabel Cordovil. © Vasco Marum


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ISABEL CORDOVIL


07/08/2023 

 

 

No site eumoceano.pt é colocada a pergunta “Que volume ocupa a vida?” como uma das várias perguntas que poderia ser formulada enquanto inquietação de Isabel Cordovil (Lisboa, 1994). Mais abaixo no mesmo texto, é dito que as suas peças são “curtos poemas épicos”. Trata-se, no meu entendimento, de uma poesia trágica, onde o sofrimento amoroso se alia a uma breve menção da morte, ou seja, a morte ainda não chega à poética da Isabel, mas está presente essa intenção de um cúmulo do sofrimento sensível que se alicia perante a ideia de suicídio. Não é negro, nem é um ponto final, apenas uma pequena vírgula sofrida. Talvez a força da festa, e de uma certa decadência que vem do seu continuar, dos afters sucessivos que corroem uma certa vivacidade, sirva como verso que vem depois desta vírgula.

Um círculo de intensidades que se parece seguir uma a seguir à outra, e que nas vivas palavras das suas inúmeras histórias, vibram novamente, e se vertem para objectos, pinturas, intenções.

Isabel procura no que já existe, com mais vontade de usar as mãos para apontar para o sem sentido cómico da realidade, numa chamada de atenção às falhas, ao meio desfeito, ao vício. Mas ainda belo. Ainda não o suficiente para abraçar a decadência. A sua biografia anda à deriva, nas histórias e no que Isabel faz delas, em tensão constante entre o sofrimento e a culpa católica, a veia boémia e a libertina.

Esta conversa que aqui se apresenta, foi realizada enquanto Isabel se encontrava em residência em Paris, na Cité des Arts, e tentei dirigi-la de forma a confirmar esse entendimento a que me refiro na introdução. Por via de défices de rede, acabamos por fazer da forma da conversa uma coincidência com os assuntos; uma espécie de conversa de divã, com uma série de análises imprevistas de ambas as partes.


Texto por Catarina Real

 

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Catarina Real: Comecemos por aquilo em que estás a trabalhar.

Isabel Cordovil: As coisas em que ando a trabalhar giram em torno da psicanálise, ou melhor, em torno do estudo de técnicas que se debruçam sobre métodos e graus da possibilidade da interpretação. Sobre a forma como se utilizam mitos para categorizar padrões. Técnicas de olhar e criar sentidos. Ou sobre a necessidade de as actualizar… Mas sim, técnicas de olhar e compreender. A necessidade delas em primeira instância.
Trabalho sobre o inconsciente colectivo. Talvez inocentemente sempre tenha trabalhado sobre isso, mas sem a literatura que me fazia falta e que tenho actualizado.
Desculpa, tenho de começar de novo que já me perdi. Retomando: É muito importante para mim estar em residência neste momento. Estou em Paris, e precisava imenso deste tempo de paragem, de me focar no desenvolvimento dos trabalhos e parar de estar em resposta contínua a estímulos.

O meu trabalho foi sempre emocional, estou sempre atenta ao amor, ao sexo, a respostas a antigas relações com a igreja... Trata-se de responder, crua e emocionalmente, às coisas que nos estão à flor da pele e de trabalhar as rejeições ou questionamentos sobre iconografias próprias.
A minha última exposição individual acabou por ser um sistema introdutório ao manifesto de onde começo. Materiais frios... Materiais mas também crenças, que só por si já é um material muito forte.

CR: Vou, desta vez eu, fazer-te retornar. Falavas da psicanálise e do inconsciente colectivo...

IC: Já faço psicanálise há quatro ou cinco anos, mas só há cerca de dois anos é que aprendi a estar no divã, que é um objecto mesmo interessante. O meu maior interesse nele é fazer-nos perder o poder de olhar para o interlocutor. Estar em psicanálise é aceitar a performance da vulnerabilidade. Quando se está no divã, e não se consegue olhar para a reacção da pessoa, perde-se o poder... Não posso, no meu caso, tentar ser engraçada.... Ou usar outro dos muitos recursos de ornamentação do Eu… Começar a exagerar, tornar o humor mais acentuado, ou tornar-me demasiado obcecada com a procura de uma palavra que me falha. O seu encontro já é só um capricho… Depois aprendes a libertar-te destas coisas e começas mesmo a aceder ao inconsciente e falas com a liberdade... Com a liberdade da escrita quando vale por si só.
Gosto mais de Jung do que de Freud, porque ele debruça-se sobre o inconsciente colectivo; da mesma maneira que temos sonhos que são recorrentes, também eles são comuns. Como é que tantos sonham a mesma coisa quando cada um tem a sua própria fantasia privada? Sinto que quando comecei a pensar mais nisso, agora nesta fase de residência, comecei a pensar muito na forma como se ligava esta prática privada, de psicanálise, ao meu próprio trabalho.
Numa das vezes, ao contar um sonho em consulta, ao desembrulhá-lo e recordar que sensações continha, esqueci-me que este seria interpretado no final, e tive essa experiência de quase não esperar uma revelação, estar só a abstrair-me, a fazer uma abstracção por via das palavras. Quando a minha psicanalista apresentou uma resolução para aquelas palavras, eu estava no atelier (aqui já estávamos a realizar as consultas à distância), rodeada pelas pinturas que estava a fazer, e estava a ouvi-la falar sobre estas coisas, sobre o meu inconsciente, enquanto olhava para o resultado desse inconsciente. Foi um momento Eureka! Compreendi que penso em coisas comuns à existência colectiva e a partir delas faço gestos que acho que são inesperados, e que se podem tornar surpresas boas ou más. Na tentativa de aceder à origem de tudo, construo um loop. Em assuntos que achei estarem completamente longínquos, passei a ver as coisas que esta especialista me indicou que os sonhos tratam.

CR: Será demasiado privado dares exemplos? Compreendo a linha de raciocínio, mas tornou-se demasiado abstracta.

IC: Tive um sonho mais ou menos recente, na altura em que comecei a fazer experiências com tinta, misturar... Fiz aqui, em residência, o que costumo fazer em Lisboa: coleccionar coisas, comprar coisas, recolher objectos... Como se estivesse a construir o meu próprio gabinete de curiosidades a partir do qual passo a trabalhar. Primeiro recolho os objectos, e depois há a performance do encontro... Como na peça em que reuní o Xanax e a tacinha...
Nesse sonho estava em Paris e alugava a minha casa em Lisboa a uma outra pessoa. Quando retornei a casa, ela estava cheia de animais. Tinha um cavalo na sala, que tinha vivido lá o tempo todo em que estive ausente, pássaros nas gavetas, insectos no frigorífico... Toda uma panóplia de companhias muito esquisitas. Quando perguntei à rapariga que me tinha alugado a casa o que é que ela ia fazer, ou seja, se ia levar os animais com ela, ela respondeu-me que eles sempre lá estiveram e que tinha deixado a casa tal como a encontrou, que os animais não eram da sua responsabilidade. Eu não me lembrava de ter um cavalo na sala. Tornou-se tudo muito confuso.
Estava a fazer este relato à minha psicanalista, e a perguntar-me se seria eu que não dava pelas coisas a acontecerem? Ela acabou por me fazer ver que havia uma expressão que muito evidentemente se aplicava àquele sonho: o elefante na sala. Se a mente me desse um elefante seria demasiado óbvio, então foi arranjar outros bichos. O óbvio, o grande monstro com que teria de lidar, tornou-se claro a partir daí.
Eu arranjo elefantes na sala. Aliás, acho que o processo criativo com que me identifico mais é semelhante a escolher os elefantes com que quero viver. Trabalhar com assuntos que não posso resolver... Não posso resolver-me com a religião, por exemplo, porque é um monstro de mil cabeças.

CR: Escolhes os elefantes com que queres viver ou escolhes os elefantes com que queres deixar de viver? Parece-me uma distinção importante, para compreensão do que é que traz o processo de criação.

IC: Acho que não seria capaz, apesar da minha relação profundamente zangada com a religião, de conseguir deixar de pensar sobre ela. Tenho uma quantidade de informação bíblica absurda na minha cabeça. Ambos os meus pais eram catequistas e sei passagens bíblicas de cor, especialmente do antigo testamento. Este conhecimento dá-me muitas ferramentas, para olhar para a arte, por exemplo, para a arte antiga sobretudo. E também consigo, à medida que vou aprendendo a viver e a amadurecer, reinterpretar coisas que não me eram interpretáveis até aqui, consigo desafiar e até adulterar textos pondo-me na posição de cada uma das personagens... O Rei Salomão, David e Saúl, todo esse homoerotismo que dessas figuras surge... Não sei se consigo escolher os elefantes. Eles aparecem e entram pela casa adentro.

CR: Parece que estás a fazer vestidos para os elefantes.

IC: Parece-me que tenho grandes discussões com eles e que, no fundo, dividir casa é isso: fazer concessões. Ao dividir casa com os elefantes tens de encontrar a paz com as tuas partes bestas e com as tuas partes monstras. Pronto, também há coisas que não aceitas e que são permanentemente desconfortáveis...

CR: Estás a guiar-me pelos pontos que tinha apontado para conversarmos.
Gostava que me falasses da influência da tua história familiar na construção do teu trabalho, e na tua insurgência contra ela enquanto figura libertina. Podes-me dar um pouco mais de informação quanto a este elefante? Aliás, aumento o espectro desta pergunta; há uma outra característica que é tua, mas acho que pertence também ao teu trabalho e se cruza com o que falamos até aqui, com a tua compreensão e assimilação de todas estas narrativas bíblicas. Parece-me que te tornas uma contínua intérprete ou tradutora do que fazes, exactamente através das histórias que contas; usas como ferramenta as histórias que aprendes, altamente simbólicas, e usas também a capacidade de ligação simbólica com o mundo, para continuamente interpretares e partilhares o teu trabalho com outras pessoas a partir dessas narrativas.

IC: Nunca tinha percebido que era assim tão óbvio.

CR: É uma leitura que faço, mas aproveito também este espaço de divã para te dar estas leituras...

IC: Eu partilho com a bíblia o seu início; no início era o verbo. Tudo vir da palavra, ou tudo vir da história, da necessidade de deixar escrito e que haverá, depois, muitas maneiras de ser lido. Por sobrevivência, durante os primeiros anos, fui aprendendo a interpretar contra a maré. Essa capacidade ficou e é inerente ao próprio trabalho. E quase que peço que façam isso comigo.
Que boa leitura, por favor continuemos a consulta.

CR: [riso] Em certa medida é inevitável que nos impliquemos no que nos fazemos. Tudo isto de que falamos também foi o que te levou à procura, especificamente, da psicanálise, que tem por base a palavra.

IC: Exactamente. E foi por uma via inconsciente.
Há vários vícios que vêm da igreja. Uma coisa, uma coisa horrível, mas que eu adorava por ser uma performance interessante, era a merda da confissão. Havia uma parte minha, quase rebelde, que se aproveitava do facto de não ver a pessoa a quem contava coisas. Também por saber que ele não poderia fazer nada a não ser perdoar-me. O padre não tem poder nenhum. Apenas poderá comunicar às autoridades algo que está para acontecer, se já aconteceu, por muito terrível que seja, não pode fazer nada a não ser perdoar-te. Fascinava-me esta força da acção, ou do gesto, adorava a coisa performativa que estava implicada. Lembro-me de ser pequenina e mentir na confissão, para testar os limites. O que posso mais fazer para testar estas relações? Era o meu jogo.
Quando fui para a psicanálise procurava muito isto, de testar, mas desta vez testar com a verdade. E a verdade é ainda mais insana do que o que quer que eu possa inventar.
Portanto, está muito ligado ao meu trabalho, sendo que na arte há esta confiança ou uma relação de mútua confiança com o espectador. Espera-se que confiem que estou a dizer a verdade. Mas também, quiçá, seja tudo um truque... A história da humanidade é construída sobre truques e mentiras. Estamos tão habituados a ser confidentes como a ser aldrabados. A coisa de que gosto na prática continuada na psicanálise é que consegues mentir uma vez, mas não consegues mentir duas vezes ou três. Acabas por ter a teia muito exposta e inevitavelmente tornar-te transparente ao outro.
Aquilo em que estou a trabalhar agora - acho que posso contar sem retirar o efeito surpresa - é gravar as minhas sessões de análises de sonhos. O áudio total da conversa. É um exercício curioso, voltar a ouvir essas histórias, e depois pô-las em sobreposição com objectos. Estes objectos que compro ou encontro. Gosto da ideia de forçar uma interpretação, quando há infinitos sonhos, objectos e interpretações. Estamos tão sintonizados para causas e consecutivos efeitos, que não conseguimos olhar para uma coisa sem a influência da outra. Então quando é som e imagem, o pressuposto do cinema, é muito difícil dissociares os sentidos. E é nessa linha que estou a trabalhar, na escolha de relações entre histórias e objectos e no forçar interpretações.

CR: A minha leitura veio mesmo bater aí. Diria ainda outra coisa; esse teu prazer em mentir na confissão, é uma espécie de reivindicação do pequeno poder que tinhas. É o mesmo gesto, o que fazes agora?

IC: Talvez... É apesar de tudo diferente ter mais público. Gosto das batalhas privadas porque no final de contas nada muda. É apenas um pequeno jogo. Quando colocas algo numa sala, nesse cubo branco, é outra coisa.

CR: Estas sessões que estás a fazer, não estás apenas a fazer e a gravar. Estás a fazê-lo consciente de que as irás partilhar posteriormente.

IC: O truque é gravar tantas que me esqueço. Como se, gravando todas, fosse o mesmo que não gravar nenhuma.

CR: O que se segue não é bem uma provocação... Mas gostava de o discutir contigo.
Tens este contexto emocional e religioso, vindo da tua experiência e educação, mas há um outro lado... Não apenas pelas características formais, e talvez não o saiba explicar completamente, mas o teu trabalho parece-me seguir um certo cânone artístico instituído. Isto não é dizer bem nem mal. Se não soubesse, poderia dizer que o teu trabalho é autoria de um homem branco. Primeiro, não sei se concordarás com o que digo. E depois, parece-me que esta minha leitura está exactamente ligada a estes pequenos exercícios de poder.

IC: Concordo. Não só concordo como tenho essa noção, e até já tive alguns problemas com isso. A maneira de me perdoar de fazer uso dessa formalidade, é saber que sempre usei esses cavalos de Troia. Uma coisa é exposta de uma certa maneira e é apenas um envelope. O meu trabalho toma partido dessas peles... Há muitas coisas que apenas consigo fazer porque me consigo vestir com essas peles de carneiro para depois entrar...
Um exemplo, quanto a usar as peles. Quando trabalhei com os cilícios, comprei de facto aqueles objectos às freiras carmelitas. Apenas me venderam aqueles objectos porque consegui explicar que as minhas origens eram de uma família católica, que sabia o que era aquele objeto, qual era o seu propósito e como se usava. Utilizei esse conhecimento e tradição a meu favor.
Usar determinadas linguagens formais tem funcionado desta maneira. Tento tornar o veneno mais eficaz. Como um espião de fato e gravata. Percebes?

CR: Percebo bem e estou a gostar da tua consciência sobre isto. É como a história do confessionário, estás a mexer nos códigos para os subjugar.

IC: Esqueci-me do trabalho fotográfico. Essa parte do trabalho está muito ligada ao exercício do inconsciente, trazer coisas, comprar, encontrar, e olhar para elas mais tarde. Fotografo muito e depois olho para esse material já com uma outra sobriedade. Quando fotografo é in loco. Olhar para os meus arquivos é muito parecido com olhar para as mensagens que enviei às três da manhã com os copos... É um chapadão de realidade.
A fotografia que estou a expôr agora no Chiado 8, o BMW cheio de mosquitos mortos: o título liga-te a uma narrativa. David e Golias. Estas personagens já extravasaram a narrativa bíblica e pertencem ao universo pop. Consegues encontrá-los em todo o lado... São as mercearias contra o Continente. O pequeno é resiliente, e o grande não é ágil. O grande é pesado e mexe-se devagar.
Quanto a essa fotografia; tinha pedido o carro emprestado ao meu pai e andava a fazer viagens para ir buscar pedra para alguma coisa. A determinada altura vi aqueles mosquitos todos mortos e fotografei-os. É um registo-performance. E que, lá está, os homens brancos adoraram fazê-los nos anos 60. Ali encontrei um registo efémero, o sangue sobre uma superfície... É quase pintura. Quando olhei para a fotografia mais tarde foi apareceu esta coisa, meio infantil, do pecado. Vou explicar melhor; quando era pequena, adorei quando me explicaram que só de andar já estás a matar formigas. Só de te movimentares, mesmo que tentes não fazer mal, o mal está lá. Vais sempre aniquilando qualquer coisa. Quando lês os pecados mortais percebes que é totalmente impossível não pecar. Todo o prazer é pecado, mas o prazer é o que te impede de perder a cabeça.
Quando voltei a ver esta fotografia pensei que esse carro era um auto retrato do artista. Nós somos uns grandes monstros de consumo, não consegues ir a lado nenhum sem consumir, sem devorar. És inevitavelmente o ser devorador. E aqui também consigo ver os mosquitos como outros blood suckers, e torna-se a imagem de um julgamento cruzado. O que é pior? Ou... Se tudo é pecado... É perdido por cem ou perdido por mil. Mais vale matar logo o rei.

CR: Continuando esta espiral... Achas que este cavalo de Troia, depois de completamente conquistado o terreno, a um outro tipo de registo?

IC: Não sei se dará para conquistar completamente o terreno. Primeiro, sendo mulher. Ainda falta muito tempo. E depois nunca se sente que está conquistado. Pelo menos, acho que eu nunca irei ter essa sensação... Quando passas muito tempo a ler e a contar histórias, em parte deixas de acreditar nalguma coisa.

CR: O que é também uma falta de confiança.

IC: É a falta de confiança que me leva a trabalhar. Só faço os meus gestos mais corajosos quando a peça está a ponto de ser perdida. Sabes quando nos filmes alguém não consegue respirar e vem alguém espetar uma caneta bic na traqueia? Há muitas peças em que isso acontece; quando acho que vão morrer, faço um gesto bruto, que a pode salvar.

CR: Às vezes pode ser fatal.

IC: E novamente: perdido por cem perdido por mil.
Perdi-me em qual seria a pergunta.

CR: Talvez não importe, mas era o chegares ou não a outro registo, que não siga este cânone.

IC: Quando não uso formas mais austeras e já bastantes canonizadas, também uso palavras bastante canonizadas. Nunca me vou escapar a essa obediência. Ao mesmo tempo que odeio, só a certo ponto a consigo desafiar. É o mesmo que mentir ao padre. É muito bom, mas ainda tenho necessidade desse espectáculo, dessa performance que já tem o seu formato estabelecido e aceite.

CR: Por onde começamos; tudo é uma performance na vida. E o facto de apenas agora estares a superar a performance da performance, no caso da psicanálise.

IC: Verdade ou mentira é sempre performance. E mesmo isto, da verdade e mentira, está ligado a questões morais que não interessam para nada.

CR: Gosto de sincero. Passei a usar sincero a partir do momento em que me contaram que é uma palavra escultórica. Sincero era referente à escultura em pedra sem reparos, que não tinham erros. Sincero significava sem cera, que era o material utilizado para disfarçar erros e imperfeições ou quebras.

IC: Lindo! Não fazia ideia.

CR: Aproveito a introdução à palavra, para fazer um desvio para o que tinha pensado ser o início da nossa conversa, que acabou por começar por outro lado. Estava a ler sobre ti na preparação desta conversa e, no site eumoceano.pt, é colocada a pergunta “Que volume ocupa a vida” como sendo o cerne das tuas preocupações. É este o teu maior questionamento? E, passando pelo que já falamos, do início ser a palavra... Parece-me que a poesia no teu trabalho, não apenas quando toma a forma de palavra, aparece fruto de um certo sofrimento sensível. É este sofrimento que te leva a colocar questões como esta, do volume da vida? E: a poesia é metáfora ou é outra coisa?

IC: Quando me preocupo com o volume da vida, falo do volume em centímetros cúbicos. Em última instância perguntar qual é o espaço de insignificância que te compete. E o volume acaba por entrar em coisas que, mais do que poéticas, são românticas. Digo muito isto, que sou uma romântica não nostálgica. É a maior mentira que digo sobre mim, como a minha primeira mentira. É um mantra mentiroso. Basta olhar três vezes para o meu trabalho que se vê o quanto é mentira e acho até que esta é uma boa porta para o meu trabalho, desvendar a primeira mentira.
Como sou extremamente romântica, a prática da palavra transformada é a única possibilidade que tenho de sublimar a experiência. A possibilidade que resiste a todas as formas, parece-me que, como a palavra é imaterial, não a perdemos.
O que me ficou também de decorar orações. Estou sempre acompanhada pelas frases que ocupam um espaço repetitivo na cabeça. Há frases que ocupam imenso espaço, e que depois se têm de aconchegar para conseguirem entrarem novas frases. São líquidas. É o que é interessante no espaço da vida. A vida pode ser um oceano inteiro, mas depois apaixonas-te e percebes que dois é um, e dentro disso há milhares... Bataille diz que o animal está no mundo como a água na água, que é dizer que o animal não distingue o fim de si para o início da natureza, do resto das coisas. E as palavras parecem-me animais, ao entrar, sair, trespassar.
Acho que sou romântica porque acredito que a poesia tem passe livre, que a poesia tem imunidade diplomática.

CR: E tem, de alguma maneira.

IC: E quando digo poesia, digo qualquer palavra. A palavra ultrapassa estratos de tempo, atravessa a sociedade, e mesmo assim sai imune. Para uns passa como manteiga, para outros como punhal, mas sai limpa.

CR: É como se estivesses sempre a escrever orações de uma religião amorosa...?

IC: Todas as religiões, quando são boas, são privadas. O problema das religiões é serem colectivas. Cultos de uma só pessoa é o melhor que pode haver.

CR: Explora mais esta concepção, do problema da colectividade das religiões.

IC: Quando tens uma crença, uma relação com uma razão, não tem de ser uma entidade mas com uma ordem, o grande problema é teres de concordar com definições. A minha definição dessa relação nunca vai funcionar bem. As religiões do colectivo é como se fossem relações poliamorosas que não foram conversadas. Ninguém se sentou a discutir os termos, assumiu-se que era assim. E por isso é que são sempre tóxicas. Há coisas que só conseguem ser construídas na intimidade. A hierarquia da religião acaba com isso. Se os poderes estiverem mortos ou ausentes, é mais fácil. Esta era uma frase da minha avó; se queres ser amado, morre ou ausenta-te. Tornas-te só palavra.

CR: Essa frase também é muito dura...
Antes desta deriva, ia perguntar-te se o espaço do amor - talvez coincidente com o espaço de uma quebra nas narrativas e numa certa pose performativa - é o teu espaço de vulnerabilidade?

IC: O amor, e sobretudo considerando a minha homossexualidade, aparece do perder por cem ou de perder por mil. Nunca achei que fosse possível estar com uma mulher. Nunca. Até aos dezoito anos, achei que não era possível. Ao crescer nunca soube, nunca pensei sequer, que havia lésbicas. Quando pude realmente experienciar isto, foi como um milagre. Uma coisa impossível realizou-se. Cada vez que estou apaixonada, é outra vez o milagre encarnado. Aqui também me refiro às minhas religiões privadas. Para mim o amor é o único milagre possível. O problema é quando o amor é aplicado a deuses para os quais o amor não basta. Aí é fanatismo. Quando é aplicado a alguém que te é horizontal, que morre como tu morres, que sofre como tu sofres, e que pode ir embora... Deus é garantido, as pessoas não. O amor é que é radical. O amor é o grande milagre.

CR: O milagre é a paixão? Não será o amor outra coisa?

IC: O amor é um grande milagre, é a permanência. O amor, na minha religião privada, nao deixou de estar ligado ao sacrifício e à anulação das tentações, lá está... Este sentido de desafio contra Deus, não o tenho quanto ao amor. Não desafio o meu amor porque sei que o meu amor não tem interesses de poder sobre mim. Fará sentido?

CR: Todo. É a horizontalidade, o pertencer ao mesmo plano, e estabelecer uma relação de confiança.
Esta travessia foi óptima, terminar no amor parece-me completamente justo a esta conversa.

IC: Uma coisa sincera, fiz esta entrevista toda num divã. Na posição divã. A posição de vulnerabilidade.

CR: Quererás fechar a espiral da conversa, dizendo se tens planos fixos para o trabalho de que falamos?

IC: Será para apresentar na Appleton, em Lisboa, no próximo ano. Como já tenho os limites do cavalo, e como já sei como o quero ornamentar, agora é uma criação de tripas. Tripas e fantasmas.

 

 

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Catarina Real
(Barcelos, 1992) Trabalha na intersecção entre a prática artística e a investigação teórica nos campos expandidos da pintura, escrita e coreografia; maioritariamente em projectos colaborativos de longa duração. É doutoranda do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho com uma investigação que cruza arte, amor e capital. Encontra-se em desenvolvimento da Terapia da Cor, prática aplicada entre teoria da cor, arte postal e intuição coreográfica.