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RUI ALGARVIO

FáTIMA LOPES CARDOSO


 

 

Divide os seus dias entre Lisboa e o Alentejo, onde tem o seu atelier, num espaço que já foi escola primária, sede da associação de moradores com direito a projeção de cinema itinerante. Durante um ano, Rui Algarvio transferiu os pincéis e as telas para o Museu Municipal de Ferreira do Alentejo, a fim de criar, com o apoio da associação Inter. meada, 72 quadros que têm a cor como elemento dominante. Entre 29 de outubro de 2016 e 31 de janeiro deste ano, estes mesmos quadros interromperam a brancura das paredes do Espaço Adães Bermudes, no Centro Cultural Raul de Carvalho, no Alvito, com a exposição Tão grande como uma paisagem ao longe. Sem criar afetos com os lugares de trabalho, recolhe tudo e regressa agora ao seu atelier para continuar a transformar perceções da natureza em pintura, à medida que estes fragmentos parecem estar cada vez mais contaminados.


Por Fátima Lopes Cardoso


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FLC: Em vários textos que acompanham o seu trabalho, refere que tem uma atitude contemplativa para com a natureza e que é esse caminhar desinteressado que o ajuda no processo criativo. Que ligação existe entre a sua obra e o mundo natural?

RA: Neste momento, interessa-me essa relação com a natureza, a paisagem, a forma como manipulamos e nos apropriamos do território. As viagens, o caminhar, o andar de bicicleta pela natureza, as travessias são uma ferramenta de trabalho. Mas existe uma não preocupação, essa forma desinteressada com que percorro o território. Já atravessei Bragança-Sagres e a rota das Aldeias Históricas de bicicleta. Percorro o território e vou percecionando o que é a nossa forma de ocupar o mundo. Não me interessa transformar o caminhar numa experiência estética, como faziam os artistas da land art. Não sinto necessidade de registar essas viagens. Por exemplo, não utilizo a fotografia como documento. Na viagem que fiz, durante sete dias, a Santiago de Compostela, não tirei uma única fotografia. Depois, são livros que vou lendo, outras referências que convergem para a pintura, para o meu atelier. São as inquietações de um determinado momento. Quando iniciei, por exemplo, a minha tese de mestrado, na Universidade Nacional Autónoma do México, havia uma inquietação relacionada com as massas humanas e as multidões. Sentia uma inquietação muito forte. Depois, há um outro lado, em que não quero saber muito bem como as coisas acontecem.


FLC: Os espaços naturais estão a desaparecer, perto das grandes cidades. Existe algum saudosismo e consternação da parte do pintor Rui Algarvio ou apenas uma constatação?

RA: É uma constatação, mas também consternação. Depois, há um lado político. Uma inquietação minha por essa ocupação humana ser tão evidente, mas tento que interfira o menos possível nesse processo criativo. Na minha obra, tento que esse lado moral e político seja apenas uma subcamada.


FLC: A sua obra é, como a descreveu o crítico de arte Alexandre Pomar, “uma reflexão sobre a paisagem e não uma representação. Quer comentar?

RA: A preocupação não é tanto representar uma paisagem, mas sim uma reflexão do que poderá ser uma paisagem, embora culturalmente o ser humano tenha ferramentas para atribuir essa definição de paisagem. No momento em que estou a trabalhar, deixo de pensar em paisagem e só penso em pintura. Há uma conjugação que me interessa muito, a de desfrutar da pintura com esse assunto pictórico. Neste momento, nem me interessa muito a paisagem, mas outras coisas.


FLC: A certa altura na sua obra, existe uma presença muito forte de caminhos abertos, uma obsessão pelos caminhos? Que significados têm?

RA: O caminho que eu fazia pela natureza… A nível pictórico, interessava-me a perspetiva sobre qualquer coisa que se atravessa e, a pouco e pouco, vamos registando esse percurso. Sem o objetivo de encontrar algo mais além do caminho e desfrutar da experiência.


FLC: Qual é a importância do espaço de trabalho para um criador?

RA: Já tive tantos ateliers e em sítios diferentes. É um espaço onde nos sentimos relativamente bem, mas tento não criar muitas raízes com os ateliers. Este ano que terminou, estive numa residência em Ferreira do Alentejo, apropriei-me do espaço e rapidamente tiro de lá as minhas coisas.


FLC: Que ligação existe entre o pintor Rui Algarvio e o Alentejo?

RA: Passei todas as minhas férias escolares no Alentejo, na aldeia de Canhestros. Sinto-me mais alentejano do que de Lisboa. Quando era miúdo, fazia tudo aquilo que as crianças gostam de fazer: tomar banho na barragem, apanhar frutas, percorrer os caminhos de bicicleta, ainda mais porque a minha avó materna vivia numa ponta da aldeia e a avó paterna noutra. Essa obsessão que tive pelo caminho vem de um estradão que existe perto da aldeia e que tem uma série de ciprestes que vai dar à barragem onde tomava banho, quando era criança. Só hoje é que estabeleço esse tipo de associações. A paisagem também surge com a ideia que comecei das massas-multidões, que me criava urticária, tanta gente enfiada numa cidade, multidões a sair do metro e dos barcos. Depois, quando cheguei ao México, aquelas culturas pré-hispânicas, eles tinham uma relação com a natureza muito diferente da nossa. Havia respeito. Quando lá estive, aproveitei para viajar pelo México, conheci as províncias onde há mais presença dos povos astecas e maias. A determinado momento, a paisagem e a natureza passaram a ser uma inquietação mais presente, desde a saturação à ausência completa de gente.


FLC: Que elementos prefere evidenciar? Na sua pintura, há a hegemonia da cor…

RA: Nasci e cresci no Barreiro, que era uma cidade muito cinzenta. Fui para a Cidade do México e, curiosamente, era também uma cidade muito cinzenta. As pessoas associam muito a cor do meu trabalho por ter estado no México, mas não tem nada a ver. É apenas uma necessidade enquanto criador. Para mim, pintura é cor, é luz e depois é algo que acontece naturalmente. Faz-me sentido pintar daquela forma.


FLC: Somos sempre muito do tanto que nos inspira. Que correntes ou artistas da história da arte e do presente convivem ou habitam na sua pintura?

FLC: Estou sempre atento ao meio artístico e tento sempre perceber o que os outros criaram. Regresso frequentemente à História da Arte. O Cézanne e a sua obsessão pelo Mont Sainté Victoire, pelas montanhas. Se calhar, no caminho, existe esse paralelismo. Há uns anos, vi uma exposição do pintor austríaco Herbert Brandl, em Serralves, no Porto, que me tocou muito. Mas vou redescobrindo autores. Há pouco tempo, cruzei-me com uma pintura de Fragonard, na National Gallery, em Londres, que mexeu comigo; John Martin, John Constable, entre outros.


FLC: E o que o inspira e o leva ao seu atelier, neste momento?

RA: Estou neste jogo de utilizar o assunto paisagem, mas contaminando-a com muitas outras coisas. Essa desconstrução/construção, a saturação da paisagem e a forma como nos apropriamos do território. Ando muito pela zona saloia de Loures e aquilo nem é bem rural, nem é urbano. Tanto avistamos um rio e uma árvore belíssimos, como uma construção rosa gigantesca. A paisagem está muito contaminada. Existe um ensaio, Filosofia da Paisagem (1913), de Georg Simmel, e ele fala desse momento em que andamos pela natureza e, a determinado momento, selecionamos partes que percecionamos e sentimos como paisagem. Esses fragmentos são momentos que registo na memória. Depois, chego à tela e surgem várias paisagens na mesma paisagem.