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LIZ VAHIA


 

 

Depois de “Vozes Interiores”, exposição que André Gomes apresentou em 2015 na Casa-Museu Medeiros e Almeida, e "Incandescência das Sombras", uma exposição quase antológica mostrada no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, em Bragança, em Setembro passado, o fotógrafo e actor prepara agora duas mostras no Porto, com trabalhos já desenvolvidos anteriormente. Deixemos que esta conversa nos leve pelo deambular do artista no seu "delírio", pela sua casa-torre-cidadela, pelas personagens quotidianas do bairro onde habita e pela literatura sempre presente como inspiração no seu trabalho. 

 


Por Liz Vahia

 


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LV: Procuras referências, literatura, coisas do dia a dia...?

AG: Alguns trabalhos são inspirados nitidamente por leituras. Um dos motivos porque me interessou o famoso poema de Mallarmé "A sesta de um fauno" foi por este ser habitado por uma personagem com que me cruzo na vida real. À minha porta passa regularmente o amolador tocando a sua flauta. O eco daquela melodia fazia-me sempre regressar ao poema. Foi o amolador que posou para mim fazendo de fauno, todo o ambiente intenso de erotismo do poema construí-o depois deste encontro com aquele fauno real e agora meu actor. De certa forma, o mesmo aconteceu com "O livro de Ângela", trabalho que concebi para o BES Photo 2008, resultado da leitura apaixonada que fiz do famoso livro de Collodi, "Pinóquio". Literatura e realidade tornavam a encontrar-se para me desafiarem. Ao meu lado vive um vizinho meu velhote que tem uma pequena carpintaria, estava encontrado o Geppetto. Como sou também actor, encontrei mais tarde numas filmagens uma assistente de realização, uma maria rapaz de narizinho empinado, aqui estava o Pinóquio. O desafio foi fazer encontrá-los e fotografá-los na pequena carpintaria. Todas as outras personagens da história me pareceram fáceis de inventar depois de os descobrir. "Édipo Rei", uma instalação que fiz no Hospital Miguel Bombarda, também se deveu em parte a um encontro de situações, de uma deambulação labiríntica pelo bairro. A leitura de Édipo Rei do Sófocles ajudou a que eu me transfigurasse em Édipo. Tomava café numa pastelaria chamada Tebas e passava por uma janela onde se espreguiçava uma gatinha chamada Esfinge... Assim vou ganhando histórias para os meus dias fantasiosos. Mas não é só a literatura que encontra a realidade, ou a realidade que ultrapassa a literatura. Nestes últimos trabalhos que fiz na Fundação Medeiros e Almeida, “Vozes Interiores”, vim para casa e olhei para mim. “Oh! regressar a mim profundamente / E ser o que já fui no meu delírio… —Vá, que se abra de novo o grande lírio. Que se abra o grande lírio”. É uma experiência de solidão radical com os objectos que me vêem e que eu vejo todos os dias, ouvindo as suas vozes no silêncio, para utilizar a expressão “vozes do silêncio” do Malraux, que tanto me agrada. São os objectos que me vêem, que me interrogam e com quem eu falo em silêncio. “Je rentre à la maison”, o filme do Oliveira deu-me o mote. Tive um desgosto e fiquei em casa. E fiquei a interrogar esse desgosto, perplexo a re-encontrar-me. À procura outra vez de mim. Como diz o Raúl Perez, estou sempre a trabalhar no mesmo quadro. Fazendo o mesmo quadro, como a aranha fazendo a mesma teia. A teia não é a mesma, é outra, mas é sempre a mesma teia, a mesma estratégia, o mesmo objectivo, a mesma procura, a mesma pergunta. “O que é que eu sei de mim?”, é isso que as minhas fotografias realmente perguntam: “O que é que tu sabes de ti? Investiga-te, procura-te!” Uso a fotografia como o “conhece-te a ti mesmo” de Sócrates. 

 


LV: E este trabalho que estás a desenvolver agora, um projecto de retratos?

AG: Fizeram-me uma encomenda e comecei a fazer retratos. Já tinha feito retratos, mas agora é de uma forma sistemática. Estes retratos sou eu. Como diz o Nerval, “moi l’autre”, o outro sou eu. Estou sempre procurando as mil faces de mim, a mil arestas deste poliedro estranho, deste cubo mágico, que é o meu “eu”. Compondo um estranho caleidoscópio.

 


LV: E o teu trabalho como actor interfere no teu trabalho como artista visual?

AG: O teatro acaba por interferir imenso. Sou mais cuidadoso como artista plástico desde que trabalho como actor. Se a fotografia é um palco, uma mise-en-scène de objectos, é preciso pensar o trabalho meticuloso que é a geometria dos actores em cena, o rigor, o cuidado. E também é verdade que como artista plástico, me tornei melhor actor. Mais atento a todos os pormenores da cena, a toda a verdade da cena. A toda aquela ficção que é verdade.

 


LV: Tens muito cuidado com o “visual” das tuas personagens?

AG: Tenho um cuidado com o vestuário. Não podem ser botões quando há abotoaduras, não podem ser laços rotos quando têm que ser laços de seda. Um actor tem que estar “verdadeiro”. Um bom disfarce é uma segunda natureza, como dizia o Sean Connery a propósito do James Bond. E a atenção à cena, aos objectos que entram em cena. Sou um olheiro, como se diz no futebol, estou sempre a olhar a cena e vou sugerindo pormenores ao encenador. Não estou só preocupado com a verdade do meu papel, estou preocupado com o ambiente onde o actor evolui.

 


LV: Por falar em ambiente, trabalhas sempre em tua casa?

AG: Trabalho sempre em minha casa, mas vivo e respiro tudo o que está à minha volta.

 


LV: A tua casa tem uns ambientes muito particulares...

AG: Esta exposição “Vozes Interiores” é toda feita com os objectos de minha casa. É um olhar sobre a minha casa, sobre mim - sobre o meu olhar solitário. O Sérgio Mah escreveu um texto [para o catálogo da exposição] chamado “Olhar em volta”. O que é que está à minha volta quando já não há mais nada? A casa é o primeiro e o meu último refúgio. É a torre do Montaigne, é de lá que tudo se pensa. É o mundo, é o Éden. É a casa, e a casa é o nosso atelier, a nossa oficina, a nossa mortalha, é a nossa cruz, é a nossa festa, a nossa fonte. Tenhamos uma casa maior ou menor, no campo ou na cidade, a casa é a nossa cidadela.

 


LV: Fala-me das encomendas.

AG: Adoro encomendas! Uma encomenda põe-me completamente noutro lugar, põe-me mais perto de mim sem ser através de mim. [Faz-me fazer coisas que] era impossível eu fazer. Este ano está a ser muito difícil, tenho trabalhado muito pouco, e esta encomenda do retrato foi realmente uma mola. Com uma encomenda há sempre uma porta que fica aberta para um caminho para uma exposição. Raramente acontece de outra forma.

 


LV: Depois da exposição “Vozes Interiores”, que era muito sobre o objecto, a natureza morta, passas aqui para o retrato. Foi uma questão de encomenda, mas aproveitaste e passaste para uma coisa completamente viva e subjectiva.

AG: Estava perdido caminhando pelos campos e por caminhos rurais onde procurava o exotismo de uma época, uma Palestina inventada (a minha viagem queiroziana à Palestina), "o Oriente que nunca conhecerei", onde a imaginação pudesse encontrar os "lugares do sagrado". 

 


LV: Com estes retratos saíste de casa ou convidaste pessoas para casa?

AG: Com estes retratos saio de casa, não fico rodeado de ídolos de metal e porcelana.