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NáSTIO MOSQUITO
CARLA HENRIQUES
Apreciador da Bíblia como um recurso e uma ferramenta funcional “de valores filosóficos e sociais profundos”, Nástio Mosquito deixa-se influenciar por tudo o que o rodeia, desde a cultura pop, à biologia. Em constante produção e sem fronteiras nos formatos em que apresenta cada trabalho, TESTIFY é a mais recente performance que assina para a mostra ...all silent but for the buzzing... no Royal College of Art, em Londres. A 17 de Abril, Nástio Mosquito está no Lux, em Lisboa, onde dá início a uma turnê internacional, com o álbum Se Eu Fosse Angolano. Natural do Huambo, o artista vive e trabalha entre Luanda e no resto do mundo. Nos últimos anos, o avião, o comboio, o carro… transformaram-se em atelier. Foi a partir de Bélgica que esta conversa decorreu por Skype.
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CH: My European Mind é uma das tuas mais recentes obras de vídeo arte, que foi apresentada em Berlim, e que surge de uma outra mais antiga, o My African Mind, queria que me explicasses o que é este trabalho?
NM: É um projecto comissionado por um grupo baseado na Alemanha e que surge da colaboração entre investigadores do Centro de Estudos Orientais Modernos e artistas internacionais, que resultou numa exposição: In Search of Europe. Com o subtítulo Re-branding Europe, o vídeo parte da questão para onde é que a Europa vai. A perspectiva de reflexão da mudança que está a acontecer cultural, social e politicamente, é o ponto de partida do My European Mind. Como o mundo está a mudar, está também mais abrangente à mesa de negociação e a quem toma decisões. Este trabalho tenta estabelecer isso - a Europa não está no mesmo lugar no processo negocial. O posicionamento europeu teve que se tornar mais lato, perante os novos players do cenário global, que agora têm uma palavra a dizer, como alguns países africanos, sul-americanos e asiáticos. Dessa forma, coloca-se a pergunta: como é que a Europa se posiciona neste cenário? O My European Mind tenta estabelecer algumas possibilidades e uma visão do que se passa neste momento, perante o que os europeus se preparam para viver. No meu caso específico, sendo do continente africano, aprendi o que é estar na mesa de negociações com limitações. Aquilo que de facto se pode receber e oferecer é a premissa deste trabalho.
CH: Neste vídeo há um processo de desconstrução quando, por exemplo, dizes que “a Europa não é o que os europeus pensam que é”?
NM: De alguma forma uma provocação, mas ao mesmo tempo uma constatação, porque sabemos que há uma negação muito grande de políticos europeus. Essa procura da preservação daquilo que significa a Europa torna a Europa lenta. Se, de uma forma muito concreta, fizermos um paralelo do que difere o continente europeu dos Estados Unidos, e de alguma maneira da América do Norte, o que torna a Europa mais lenta é todo esse peso histórico e essa vontade visceral de se agarrar aquilo que foi e o que quer continuar a ser, seja isto num campo político, cultural, civilizacional. Há um shift e isso é para constatar. Acho que a vida dos europeus mudou drasticamente, o que quer dizer que as coisas estão em movimento. É preciso não deixar de nos apercebermos, enquanto cidadãos europeus, que está a acontecer uma mudança.
CH: Acaba por ser um beliscão às consciências?
NM: Sem dúvida, a melhor forma de mudarmos a nossa realidade é a de nos apercebermos de qual é que ela é. Se não temos noção do que está a acontecer de facto, do que nos rodeia, será muito difícil alterarmos e irmos ao encontro daquilo que queremos ser, com base de onde estamos. A Europa tem que olhar para si de uma forma mais objectiva. Por vezes a camada política atira areia aos olhos dos cidadãos, o que torna as coisas mais morosas e menos produtivas.
CH: No My European Mind referes também: “ninguém quer ser responsável por dizer o que ninguém quer ouvir”. No fundo, isto tem sido o que tens feito nos teus vários trabalho?
NM: Não sei se é isso tudo. Nos meus projectos tenho apresentado uma perspectiva, não me considero estar assim tão isolado. Acho que há muitas vozes, e a minha enquadra-se também nesse campo. Há aspectos que temos de colocar em cima da mesa.
CH: Mas dizes o que se pensa, quando muitas vezes não há coragem para o dizer.
NM: De alguma forma… Uma coisa é verdade, predisponho-me e posiciono-me de uma maneira que nem toda a gente está disponível para o fazer. Acho que é isso que posso, e que de alguma forma o meu trabalho pode oferecer, em qualquer sociedade em que esteja inserido. Estou preparado para fazer algumas coisas que muitos não estão.
CH: É um risco?
NM: Para mim é mais arriscado viver sem um sentido de propósito, ou sem estar de facto envolvido e engajado com aquilo que se acredita. Não tenho outra forma de viver, nem sequer é um acto de coragem, é um acto de honestidade, com a limitação que é a minha vida.
CH: O My European Mind surge na sequência do My African Mind (apresentado no Museu Coleccção Berardo), há uma linha de continuidade, mas ambos têm linguagens distintas.
NM: Era importante para nós, porque é um trabalho dos Bofa da Cara (um projecto meu e do Pere Ortín), que os dois vídeos tivessem uma linguagem totalmente diferente. O My African Mind não tem a minha presença física e usa como ferramenta o graphic motion, com recurso a uma série de imagens de filmes, banda desenhada ou plataformas noticiosas. No My European Mind há uma presença, em que assumo uma postura mais de performance como se fosse uma palestra. Além disso, o My African Mind é um vídeo que tenta, de certa maneira, através da cultura popular explicar porque é que o mundo ocidental, de uma forma geral, tem as ideias que tem sobre África: os estereótipos sobre o que é o africano, o que é o continente africano, e para alguns, o que é o “país” África. Porque é que as pessoas têm essa perspectiva sobre o continente africano, e sobre os africanos em geral? Fazendo um rasteio pela cultura popular ocidental, este trabalho tenta determinar porque é que esses estereótipos se consolidaram na óptica de um ocidental. Como é que se pensa que África é corrupta, é faminta e nua de qualquer possibilidade de pensamento? E como é que isso se instalou no Ocidente? O My African Mind tenta expor o poder de manipulação da cultura popular, quando está ao serviço da coisa errada.
CH: Porque é que achas que esse pensamento continua a acontecer no Século XXI?
NM: Acontecia no passado, permanece e há uma grande possibilidade de continuar a acontecer. Nós somos seres, sem dúvida, discriminatórios, no sentido em que utilizamos identidade para estabelecer relações. Não é algo novo e é muito difícil que não seja assim. Todo o mundo move-se…. A tua noção de nacionalidade, inclusive, nasce dessa aprovação de identidade. Acontece, de facto, porque achamos que identidade é algo para celebrar. Considero que a identidade é redutora. Identidade apenas dá contexto, não é sustentável, é a única coisa que com o mesmo tipo de força, com o mesmo tipo de atracção, nos aproxima e nos separa. E enquanto assim for, vamos sempre discriminar e obviamente, não quero entrar em teorias de conspiração, mas havia objectivos muito concretos financeira e economicamente falando. Havia políticas de supremacia, e a cultura popular foi utilizada em muitos governos, em muitos sistemas políticos no ocidente, para estabelecer exactamente isso.
CH: A questão da identidade é mais colocada pelo Ocidente em relação a África, do que por África em relação ao Ocidente?
NM: De alguma forma…acho que o Ocidente tem uma agenda maior nesse sentido, vê mais vantagens nesse traçar de linhas e nessas definições, do que é, e não é. Mas também acontece ao contrário. Não existe uma grande vontade de África conquistar a Europa. A postura de maior parte das nações no continente africano é uma postura de troca. Temos algumas culturas, obviamente no norte do continente, que foram grandes conquistadoras, de grande expansão cultural, mas na sua maioria e a África com a qual estou mais familiarizado, a subsariana, tem uma postura diferente. Como referiste, estamos no Século XXI, em movimento. Se olharmos para os últimos cinco séculos, parece que há uma troca. Neste momento, temos a oportunidade de ser testemunhas de uma alteração de poderes, de uma forma macro, que está a acontecer no mundo. Temos oportunidade de observar as coisas a acontecerem de uma forma diferente. O meu verdadeiro interesse está na nossa motivação, que é a única coisa, que considero que, de forma sustentável, faz as pessoas se aproximarem umas às outras.
CH: Em vários trabalhos exploras a questão dos estereótipos mas também questionas as noções de arte.
NM: Não me reconheço nisso, porque considero ferramentas contextuais. Eu tenho um grande interesse em dizer às pessoas que elas são poderosas, e que devem retirar, exactamente, essas camadas contextuais para chegar aonde importa. E o que importa é o que é que se quer fazer com a vida, independentemente do local de origem, das limitações que existam e do espaço que se ocupa. Se há alguma desconstrução no meu trabalho, é realmente essa. Nós temos que, primeiro, respeitar as pessoas e saber que o seu contexto tem uma importância, mas não é crucial. Esse é o meu objectivo concreto.
CH: O 3 Continents é um trabalho que nasce disso?
NM: Todo o meu trabalho nasce disso. O que me motiva é isso, dizer que as pessoas são poderosas se estiverem focadas nas coisas certas.
CH: Ou seja, trabalhas o presente.
NM: Isso é extremamente importante. Sou cristão e para mim é crucial definir: o que é o amor? Sendo cristão, há um posicionamento numa relação pessoal que tenho com Deus. E a definição mais concreta que tenho, para mim próprio, do que é o amor de Deus para comigo, é eu ter a noção clara e absoluta do momento. Se tiver essa noção objectiva do momento que estou a viver, não há razão para estar deprimido, confuso, perdido e acima de tudo, dá-me um posicionamento para tomar boas decisões, em relação à minha vida, ao meu espaço, aquilo que quero fazer. Ter noção do momento que se está a viver, é extremamente crucial a tudo o que nós queremos fazer na vida.
CH: Aida queria voltar ao 3 Continents, que foi, entre vários locais, apresentado na galeria Tate. Como é que surgiu a ideia da trilogia: Europa, África, América?
NM: A partir de um poema, já antigo, que escrevi, intitulado Fuck Africa, que fazia parte de um espectáculo de spoken word: Huambo Canções que Nunca Ouvi. As pessoas queriam muito que actuasse esse poema fora de África, mas eu não estava interessado, porque que há coisas que precisam de ser ditas no continente africano. Não estava a dizer “fuck Africa” nem para os europeus ou os americanos celebrarem, mas para nós próprios, do continente africano, pensarmos no que estava a acontecer. Quando estou na Alemanha digo “fuck Germany”, ou na China digo “fuck China”. As pessoas adoram um africano irritado a falar mal do seu próprio continente, mas eu não queria estar exactamente nessa posição. Decidi criar algo que fizesse sentido ser visto nesses locais, e é assim que o 3 Continents nasce, como uma alternativa de não querer actuar o Fuck Africa fora do continente africano.
CH: De uma forma geral, crias desconforto?
NM: Sim. É meio ridículo… Acho que somos todos um pouco ridículos, o que não é necessariamente uma coisa má, mas por vezes pode ser contra produtivo. Tu queres viver uma experiencia nova, mas ao mesmo tempo não queres viver nada de novo. A única forma que consegues viver algo novo é, se te colocares num posicionamento desconfortável, porque não estás habituado, não sabes o que é. Queremos ir ver um concerto ao vivo para viver uma experiência única, mas ao mesmo tempo estamos à espera de ouvir as músicas que já conhecemos, de sentir aquilo que já sabemos que vamos sentir. A primeira vez que alguém anda de ski vai estar desconfortável, vão haver uma serie de situações novas que tiram da zona de conforto. O desconforto para mim acaba por ser consequente, porque na verdade quero oferecer às pessoas a possibilidade de viverem uma nova experiência. Desconforto nesse aspecto de se sair da zona de conforto para possibilitar a oportunidade de pensar, de ver, de viver algo que não se tenha vivido ainda. E nesse aspecto, tenho em consequência o desconforto, como parte integrante do meu trabalho.
CH: Há uma personagem que já não trabalhas há muito tempo, o Nástia, um russo que remete para questões relacionadas com a Guerra Fria. Como foi o seu processo de criação?
NM: Nasce de alguma forma porque eu precisei de fazer uma separação entre as coisas que me incomodavam. É um pouco complicado… de forma física estou muito presente no trabalho que faço, e era preciso encontrar alguma divisão entre mim e os meus projetos. Havia essa necessidade pessoal, mas depois há o cenário da Guerra Fria e da importância contextual que teve no país onde nasci, e como influenciou a minha vida de imigrante. Nasce também dessa “relação” entre americanos e russos. O Nástia é alguém que tem às vezes mãe americana e pai russo, e outras, pai americano e mãe russa, dependendo de como lhe convém. É uma personagem frontal, que desenvolveu um manifesto e que está muito fatigado daquilo que as pessoas podem considerar uma guerra fria, porque a verdade é que a Guerra Fria para mim não teve nada de fria. O contexto do Nástia é o de guerra civil. Conversava muito com o Kiluanji Kia Henda (fotografo angolano) sobre esta questão, e como é que de uma forma muito subversiva, existe essa noção de que foi um jogo de “espiões e mísseis”…. Na realidade, houve muito sangue, muita destruição, muita dor. O Nástia é um personagem que dá espaço para expressar um pouco isso, então, tem como característica principal, retirar o sol da peneira, e olhar para ele de forma frontal. Mas é um personagem que surge numa altura em que estava extremamente zangado com uma série de situações, servindo também de veículo para exorcizar algumas coisas.
CH: Estudaste em Portugal, mas a tua formação base não é as artes.
NM: Estudei Operações de Produção em Mídea. Na altura queria seguir nessa vertente, queria ser o melhor operador de câmara do mundo… uma coisa que gosto muito de fazer é filmar, o que já não faço há muito tempo. Também estudei no Hot Club em Lisboa, mas senti que a minha relação com a música não podia ser tão matemática, sabia que não era aquilo. Fui à procura de outras coisas, e ainda continuo à procura. Mas, tenho a convicção de que, só porque estamos à procura, não temos de deixar de ser produtivos.
CH: As artes surgem com o teu regresso a Angola?
NM: Quando regressei, comecei a trabalhar na TPA (Televisão Pública de Angola) como operador de câmara. Como tinha no currículo várias itens que eram úteis, comecei também a realizar as minhas peças, mas houve alguns trabalhos que não me permitiram fazer e eu era um bocado temperamental, por vezes ainda sou, e decidi tirar uma licença sem vencimento. Fiquei um ano quase desempregado, mas sempre a fazer coisas. De repente, surge o Fernando Alvim, com a primeira Trienal de Luanda e naquele ano tinha produzido muito em diferentes formatos: vídeo, fotografia, música. Na minha cabeça não estava a fazer arte contemporânea, estava sim a ser produtivo. Havia um grupo, os Nacionalistas, de que faziam parte o Yonamine, o Kiluanji Kia Henda, e outros artistas, que souberam que havia um “louco” na cidade a trabalhar com vídeo e eles queriam fazer algo nesse formato. Filmei uma peça para eles e na altura da Trienal perguntaram se tinha trabalhos para mostrar. Mostrei umas fotografias da Mulher Fósforo, um trabalho em que me debruçava sobre a mulher, e a dividia em três partes. Essa mulher era eu, e era um exercício de legitimidade, pelo facto de só se poder falar de assuntos de mulheres se for mulher, e também, porque a minha legitimidade enquanto angolano estava a ser questionada. Então, tinha umas fotos e de repente uma foi comprada por oito mil dólares, e tudo começou aí.
CH: De alguma forma, sempre estiveste ligado à música, o teu mais recente projecto é o Se Eu Fosse Angolano. Como é que surge este duplo álbum?
NM: É um trabalho que tive de fazer, de alguma forma, após regressar a Luanda, como uma base, em 2002. Todo esse tempo serviu para sentir, e redescobri, o que é que eu era em Angola, e o que era Angola em mim. Este trabalho nasce um pouco disso, e também da necessidade de desconstruir essa identidade e esse exercício de legitimidade que se tem, ou não, para se falar determinados assuntos. Tive a oportunidade de gravar um tema com o Paulo Flores no Brasil, e na altura, conversamos um pouco sobre o que é ser angolano. Senti, de imediato, vontade de fazer um trabalho que colocasse na balança o que é que é isso de ser angolano. Faço muitas coisas e sou angolano. Angolano é só uma das minhas vertentes. Sou angolano, sou amante de arroz, sou heterossexual. O álbum nasce dessa necessidade de desconstruir identidade, para estabelecer motivação, e esse é o cerne do trabalho. Decidi, dessa forma, trabalhar música com base angolana sem ninguém de Angola, para ver se isso iria fazer do álbum menos angolano. Trabalhei com americanos e cabo-verdianos, e dei ao álbum o que achei que seria uma essência de Angola, obviamente limitada pela minha percepção. Abrimos algumas possibilidades para aquilo que pode ser considerado música popular angolana, porque o angolano é do mundo, e nesse sentido será que sou menos ou mais angolano por ter influencias de todos os lugares, pelas circunstancias que ocorreram na minha vida? Depois, na prática, é um cd que gostei muito de fazer em que trabalhei com músicos extremamente competentes e generosos comigo.
CH: É quase um triplo álbum, porque é complementado pelos vídeos das músicas e também por um filme, que consideras de “falso documentário”.
NM: Eu sou obcecado por fazer produtos tridimensionais e há uma vontade muito grande, mesmo quando não há dinheiro, de o concretizar. Tenho algumas pessoas que entram na minha loucura, como é o caso do Vic Pereiró, fomos só os dois a trabalhar nos vídeos. O falso documentário é sobre um personagem o SEFA. É um produto que acho completo, e é de alguma forma, coloca um ponto final no meu estabelecer que identidade.