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PEDRO VAZ

CONSTANÇA BABO


02/11/2019 

 


Pedro Vaz é um artista que tem vindo a provar, continuamente, a sua qualidade e valor artísticos, principalmente a partir do trabalho que concretiza com a Galeria 111, de Lisboa, e com a Kubikgallery do Porto. Foi, nesta última, que apresenta, de 21 de setembro a 9 de novembro do presente ano 2019, mais uma bela exposição. Ao contrário da sua anterior mostra na mesma galeria, intitulada Trilha do Falcão, em 2017, decorrente de uma investigação individual e autónoma, o mais recente trabalho foi conduzido pela obra de um outro artista, Luís Bernardo de Ataíde (1883-1955).
No texto que acompanha a última e mais recente exposição, Movimento Coaxial, Pedro Vaz conta ter-se cruzado com a obra desse pintor açoriano e nela ter identificado uma particular "disponibilidade para a exploração da paisagem". Essas vontade e valência são igualmente reconhecíveis no artista que revela, sempre, uma entrega absoluta, dedicada e diligente aos lugares que investiga e aos projetos que neles desenvolve.
O mais recente trabalho concretizou-se durante a residência artística Pico do Refúgio, em São Miguel, que decorreu ao longo do mês de novembro de 2018. O resultado reflete um sério trabalho de campo, levado a cabo a um nível quase antropológico. As obras que surgem destas incursões são produzidas já no seu atelier no Olho de Boi, em Almada, num antigo edifício da Companhia Portuguesa de Pesca, próximo do rio Tejo e dotado de uma ampla vista sob a cidade de Lisboa. O espaço é partilhado com outros artistas, nomeadamente alguns de distintas nacionalidades que aí chegam no contexto de residências artísticas de curta duração promovidas pela casa.
É, aí, nesse local que o artista tanto aprecia, que as experiências vividas se materializam, transfiguradas pelo artista, para ressurgirem sob formas estética e formalmente valiosas, que encantam o espaço em que se expõem e o espectador que com elas se confronta.


Por Constança Babo

 

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CB: Pedro, desde já muitos parabéns pela mais recente exposição na Kubikgallery. No texto da folha de sala explicaste que a pintura de Luís Bernardo de Ataíde te indicou lugares específicos da ilha, para os quais te dirigiste, ao mesmo tempo que te sugeriu preocupações concretas. Queres falar um pouco desse processo e de que modo ele se desenvolveu e resultou nas peças apresentadas?

PV: Quando estava a preparar a residência Pico do Refúgio, em São Miguel, fiquei a saber que um familiar dos responsáveis da residência, Luís Bernardo de Ataíde, que viveu entre 1883 e 1955, tinha desenvolvido um extenso trabalho de pintura, a par da sua atividade de etnólogo e historiador de arte.
Achei essencial conhecer melhor o seu trabalho e cruzei-me com um conjunto de pequenas pinturas naturalistas de paisagens de São Miguel.
O material que elas me forneceram foi a sua experiência de contacto com o terreno. Crio sempre uma metodologia de abordagem da natureza para cada sítio onde estou, e neste caso procurei encontrar os locais representados nos seus trabalhos. Procurei uma reconstrução ao nível do olhar, ou seja, incluindo a direção e o enquadramento que ele definiu. Com isso, sinalizei ajustes entre a realidade e o seu desenho, nos quais se inscreve a escolha que qualquer artista faz quando se relaciona com a paisagem. De seguida, prossegui o meu próprio trabalho.
O meu interesse, no caso específico deste projeto, foi o ato da escolha em si. Não a minha, a dele, de um determinado artista específico, mas esse evento quase mágico de surgimento de uma preferência por um lugar. Um evento de inclusão e de exclusão. Sobretudo, um processo no qual o que é representado está patente devido à extensão de terreno omissa. A exposição trabalha isso.


CB: Referiste, também, ter questionado a escolha dos pontos de vista de Luís Bernardo de Ataíde, algo que refletiste com uma amplitude mais abrangente, em relação à figura do artista e às suas decisões perante os contextos que representa. Pergunto-te, agora, se te mantiveste fiel aos percursos do pintor, se os compreendeste, ou se te permitiste desviar e relocalizar a partir de outras perspectivas.

PV: Mais do que os próprios trabalhos, o meu foco é uma certa atitude na leitura da paisagem. Indiferentemente das convenções de produção de cada tempo. Eu não conheço os percursos de Luís Bernardo de Ataíde. Conheço trabalhos individuais relativos a uma ilha que eu mesmo desconhecia inicialmente.
Selecionei algumas das suas pinturas relativas a paisagens e procurei identificar os seus lugares, recorrendo a uma pesquisa que envolveu algumas pessoas. Ocorreu, de facto, uma sequência de reconhecimentos sucessivos. Contudo, apesar do seu papel de mapa, eu avancei, autonomamente, seguindo a forma do terreno. Não sei se uma intuição partilhada com ele esteve em curso provocando esses reconhecimentos. Mas posso afirmar não estar envolvida nenhuma intenção de reconstrução.


CB: Ora, o título da exposição, Movimento Coaxial, sugere que houve, efetivamente, um eixo onde dois polos se uniram. Serão esses o teu e o do pintor ou simplesmente os dois lados da ilha, a Lagoa do Fogo e a Serra da Devassa?

PV: O eixo é essa articulação entre dois polos ou pontos de vista, escolha e não escolha. Por exemplo, na vídeo-instalação Janela Coaxial, o que eu fiz foi prender uma segunda câmara àquela que eu estava a operar. Portanto, estava a gravar aleatoriamente sem que eu tivesse controlo sobre a natureza que a máquina fotográfica captava. Depois, na projeção da obra que daí resultou, as imagens confluem numa só.
Naturalmente, esta questão da escolha e não escolha decorre do conjunto de pesquisa na qual eu centro o meu trabalho. Procuro perceber que autonomia poderia eu conceder à natureza. Isto é, como poderia interferir menos entre a natureza e os trabalhos. Nesse âmbito, procedo à experimentação de várias soluções.
No ano passado, na Humus Interdisciplinary Residence, em Pádua, Itália, criei também um dispositivo que provocava igualmente um registo aleatório de imagem. Coloquei uma jangada com uma câmara a filmar à deriva no rio Livenza, que hoje é um canal, uma delimitação artificial do curso de água. Combinei essa gravação aleatória com uma captação da superfície da água operada por mim. Na peça dai resultante, que esteve em exposição no Museu da Paisagem de Torre di Mosto, viam-se duas projeções, nas quais ambas a imagem intervencionada e a “espontânea” estão presentes.
Retomando a peça Janela Coaxial, as duas direções são muito provavelmente, ao mesmo tempo, a minha e os dois lados da ilha, conforme dizes. Portanto, sim, são articulados todos esses elementos que referes.


CB: Recordo-me que, no projeto de 2017, fotografaste os caminhos percorridos no trilha do Facão para que funcionassem como fontes de documentação expostas, em conjunto com o restante trabalho. Desta vez apresentas um vídeo, Janela Coaxial (2018). Manténs a utilização da fotografia como parte integrante do teu processo criativo?

PV: Sim, nos meus projetos utilizo a captação fotográfica como elemento que, de alguma forma, medeia a minha relação com a natureza. A câmara fotográfica acaba por funcionar como um dispositivo de recolha de uma amostra. O processo de tratamento do material desenvolve-se não tanto em termos de uma transposição de imagens, mas mais de uma cultura. Ou seja, ao material são dadas, em estúdio, condições de crescimento, como acontece numa incubação laboratorial.
Contudo, o registo sob o qual apresentei fotografia na série Caminho do Ouro foi totalmente diferente e também único no meu percurso. Foi a primeira vez, e até à data, a única, que mostrei fotografia.
A maior parte dos locais onde me desloco são selvagens e sempre foram, outras vezes são raramente visitados por alguém. O que aconteceu no Caminho do Ouro, foi ter-me deparado com um percurso que fora, anteriormente, um movimentado corredor humano, portanto, que não foi sempre selvagem, e que agora se encontra apoderado pela natureza. À data da minha ida, asseguraram-me que tinham passado pelo menos quinze anos desde que pela última vez se soube de um visitante. Portanto, as marcas desse tempo longínquo, nomeadamente o empedrado do caminho do ouro, associadas ao vazio atual, agudiza essa noção de abandono humano e solidão da natureza.
Por esse motivo, queria transportar de uma forma mais segura o espectador à realidade daquele lugar nos dias de hoje. Na exposição, a pintura trazia a experiência de imersão num sítio específico, no qual a natureza estava entregue a si mesma. Mas interessava-me também trazer a história e a mão do Homem que, como disse, permitiam reforçar a leitura da natureza entregue a si.


CB: A par do vídeo, vejo que cada vez mais exploras novas formas de expor a pintura e sais da tela, recorrendo a outros suportes. Rosalind Krauss falou sobre a perda da autonomia da pintura e uma crescente necessidade de a relacionar com outros objetos e contextos.
Tendo em conta o atual panorama da arte contemporânea, cada vez mais multidisciplinar e dominado pelos média digitais, pergunto-te se sentes impulso em explorar outras formas de produção imagética ou se consideras que a pintura ainda mantém a sua capacidade de afirmação enquanto médium isolado?

PV: No meu trabalho ambas as possibilidades têm lugar. Sou um artista que pinta, sou pintor, sou artista. Mas não atribuo à pintura uma maior propensão para se capacitar ou incapacitar em função à maior ou menor autonomia que possa ter. Não acho que qualquer médium tenha que se provar, praticado em exclusividade ou combinado, e também não a pintura. Uma prática exclusiva ou combinada de qualquer médium convoca ao resultado questões com interesses e forças distintamente válidas.
No caso do meu trabalho, a pintura não está isolada. Está dentro das Caixas de Espaço, e recentemente tem assumido formas escultóricas.
A pintura que levo a cabo é um processo muito rápido entre recolher e recusar informação, através de um processo de lavagem que levo a cabo nas pinturas. A informação é o contacto com a natureza, a memória de ir ao lugar. Esta memória contagia a fotografia. Transporto-a nela.
Sempre procurei levar a pintura a um patamar diferente, ou um patamar meu, que me servisse, se preferires; procurei retirá-la, soltá-la, transpô-la dos sítios habituais. Estudei pintura, mas o pensamento plástico da pintura aplica-se em todos os meus trabalhos e sempre foi explorado.
Gostava de lembrar que a pintura tem uma gestualidade e indexação singulares e ancestrais ao corpo. Inscreve-se e confunde-se com a colocação do pensamento do homem no exterior, através do traço feito pela mão. Esta é uma das formas primordiais de transmissão de ideias entre humanos. Essa carga é presente e penso que não terminará.


CB: Relativamente à obra exposta no final do percurso expositivo na Kubik, Caixas de Espaço, poderás descrever mais detalhadamente o seu processo construtivo? Aproveito para destaca-la de entre as restantes, visto tratar-se de uma forma tridimensional particularmente bela, claramente produto da mão humana mas simultaneamente com uma essência orgânica.

PV: As Caixas de Espaço funcionam como uma tentativa de criar espaço, que é distinto do lugar, uma vez que o espaço não tem memória e é abstracto.
Quando olhamos para a natureza, para um lugar que não conhecemos, não conseguimos formar na nossa mente a ideia associada aos requisitos de um lugar, pensamos automaticamente que ali não é nada, ou que não existe lá nada. Existe espaço, e como não o conhecemos, é abstrato, não tem identidade, não é nada.
Nas caixas procurei uma criação sintética e até artificial de espaço, que evocam uma ideia de funil e cone que, por sua vez, se relaciona com as lagoas e com os vulcões. De alguma forma a explosão inerente a um vulcão é uma matriz, ou fonte, que eu quis aproveitar e que não está totalmente definida e que é também uma procura geométrica de algo mais áureo sempre em progresso.


CB: Por fim, agradeço-te esta conversa e, felicitando-te pelas obras de arte que nascem das tuas estadias em residências artísticas, pergunto-te se tens uma próxima agendada e se poderás revelar algum projeto futuro.

PV: Neste momento estou a preparar uma nova viagem ao Brasil, para o desenvolvimento de um novo projeto na Amazónia, mas ainda é cedo demais para adiantar.
Para além disso estou a trabalhar para uma exposição individual no CAB – Centro de Arte Contemporânea de Burgos, em Espanha, a inaugurar em Junho de 2021. O projeto inclui uma expedição ao GR11, uma rota ao longo dos Pirenéus, desde o Cabo de Higuer no mar Cantábrico, ao Cabo de Creus, no mar Mediterrâneo.