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OPINIÃO





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BI DA CULTURA. OU, QUE FAREI COM ESTA CULTURA?



PEDRO PORTUGAL

2008-08-04




A antropĂłloga Margaret Mead observou em 1930, enquanto estava ela prĂłpria ocupada em refazer a ideia de Cultura, que a noção de diversidade cultural sĂł se encontrava no vocabulĂĄrio de um pequeno grupo de antropĂłlogos profissionais. Desde que o planeta terra ficou globalmente interligado Ă© mostrada oficialmente uma enorme preocupação pelo facto da cultura ocidental estar a tomar conta do mundo e tudo o que esta deve fazer para compensar as culturas atingidas. Mas a maior exportação do Ocidente nĂŁo Ă© a Mona Lisa, Disney, Guggenheim ou Gucci. É a prĂłpria ideia de Cultura.

Todas a ilhas do PacĂ­fico, todas a tribos da AmazĂłnia, todas as comunidades dentro de uma grande cidade tĂȘm atribuĂ­do direitos Ă  sua prĂłpria cultura. Estas culturas devem ser subsequentemente defendidas da depredação provocada pela expansĂŁo cultural do Ocidente (o remorso colonialista nĂŁo deixa de estar presente). A ideia de cultura tornou-se volk. É usada como um prefixo ou pĂłs-fixo colado funcionalmente para designar tipos de actividade, territorialidade, movimentos ou rituais: cultura gay, cultura Dada, indĂșstria da cultura, cultura local, cultura de bairro, cultura urbana, cibercultura, cultura geral, cultura cientĂ­fica, ministĂ©rio da cultura, cultura da excelĂȘncia, cultura e desporto, polĂ­tica cultural, etc.

Mas a cultura Ă© o quĂȘ afinal? Como se marcam as fronteiras? Corresponde a uma identidade? Quais os parĂąmetros da autenticidade? É uma entidade fixa com um sistema de regulamentação internacional?

Apesar das dĂșvidas que levanta a sua definição, a ideia de cultura Ă© politicamente cativante e, sobretudo o ramo nomeado de multiculturalismo. Nas Ășltimas dĂ©cadas paĂ­ses como a AustrĂĄlia, CanadĂĄ, África do Sul, Brasil tĂȘm criado enquadramentos legais que institucionalizam a sua existĂȘncia como sociedades multiculturais. A Inglaterra nĂŁo faz um reconhecimento do seu status multicultural mas tem seguido polĂ­ticas pluralistas e pragmĂĄticas. A França com a sua tradição Republicana tambĂ©m tem acompanhado estas tendĂȘncias. O relatĂłrio “PrincĂ­pios Fundamentais para a Educação no Futuro” do College de France de 1986, refere no primeiro dos dez princĂ­pios que as escolas modernas devem subscrever “um sistema de educação cuidadosamente fabricado, capaz de integrar o universalismo inerente no pensamento cientĂ­fico com o relativismo das ciĂȘncias sociais, devendo as disciplinas atender ao significado das diferenças culturais entre povos e Ă  forma como as pessoas vivem, pensam e sentem.”

No ideal romĂąntico de Ruskin a autenticidade cultural continha a ideia de uma voz interior que expressa a verdadeira natureza do indivĂ­duo. Durante o sĂ©c. XX o conceito foi desenvolvido (E. Erikson, A. Gouldner) atĂ© uma noção moderna de identidade. A identidade nĂŁo Ă© sĂł um assunto privado mas emerge em diĂĄlogo com os outros. Cada indivĂ­duo apercebe-se do que Ă© verdadeiramente quando associado a categorias especiais: colectivos definidos pelo gĂ©nero, sexualidade, religiĂŁo, raça e, em particular, a cultura. No relatĂłrio “Declaration on Cultural Policies - World Conference on Cultural Policies” da UNESCO (1982) conclui-se que a identidade cultural estĂĄ no centro da personalidade individual e colectiva e um princĂ­pio vital que sustenta as mais autĂȘnticas decisĂ”es, comportamentos e acçÔes. No artigo 28 diz-se que: “Devem ser estabelecidas condiçÔes sociais e culturais que facilitem, estimulem e garantam a criação artĂ­stica e intelectual sem descriminação polĂ­tica, ideolĂłgica, econĂłmica ou social.”

O argumento dos multiculturalistas contemporĂąneos Ă© que os indivĂ­duos nĂŁo devem ser tratados com igualdade por causa das diferenças mas diferentemente por causa delas. O passado cultural define a identidade. Se os indivĂ­duos devem que ser tratados com dignidade e respeito entĂŁo os grupos que fornecem o sentido de pertença pessoal tambĂ©m devem ser tratados da mesma forma. Se a cultura estĂĄ gravada no humano Ă© imperioso o respeito pelas culturas e modos de vida (Bhikhu Parekh). Assim nĂŁo se podem tratar os indivĂ­duos com igualdade se os grupos nĂŁo sĂŁo tratados com igualdade e, portanto, a civilização deve proteger e fomentar as culturas e ainda assegurar o seu florescimento e sobrevivĂȘncia.

Com a defesa a argumentar que a ideia de cultura Ă© uma criação dos Ășltimos 100 anos, hĂĄ jurisprudĂȘncia na AustrĂĄlia a determinar que os AborĂ­genes devem ser tratados de acordo com os seus costumes e nĂŁo pela “whithefella law”. Os multiculturalistas profundos reclamam junto dos governos a produção de legislação que garanta a sobrevivĂȘncia indefinida de determinadas culturas para geraçÔes futuras (Charles Taylor). Nesta versĂŁo, uma prĂĄtica cultural que exista hĂĄ muito tempo deve ser preservada. Eu faço X entĂŁo os meus descendentes atravĂ©s de indefinidas geraçÔes futuras tambĂ©m devem fazer X.

Esta Ă© a inconsistĂȘncia multiculturalista. É tambĂ©m a falha na demanda contemporĂąnea pela autenticidade. Nos tipos de cultura que atĂ© ao fim do sĂ©c. XIX eram consignados Ă  historicização, nĂŁo se consideravam critĂ©rios de integridade ou autenticidade cultural. NĂŁo havia alternativas Ă  forma como as pessoas viviam. NĂŁo havia consciĂȘncia cultural. As culturas eram a tradição e nĂŁo existia consciĂȘncia cultural e nem a palavra cultura tinha o sentido actual (1). Quem viveu ou vive nessas culturas nĂŁo estĂĄ consciente da diferença de ponderação sobre a sua existĂȘncia nem sabe avaliar ou reclamar os direitos que tem no Ocidente. As pinturas corporais dos Ă­ndios Choco nĂŁo sĂŁo feitas sob o cĂąnone “Isto Ă© a minha cultura. Tenho que a preservar!”.

Na ausĂȘncia de uma razĂŁo irresistĂ­vel/sexy para fazer as coisas de um modo diferente a humanidade continuou a fazer da mesma forma que era feito anteriormente (Brain Barry). InĂ©rcia cultural Ă© o nome para justificar a preservação da tradição (2). Os padrĂ”es tradicionais foram mantidos porque eram a maneira mais fĂĄcil de organizar a vida colectiva. O “preservacionismo” cultural embate no entanto num fenĂłmeno inesperado: um “double bind” cultural. Manter a integridade de uma cultura serve para agregar as sociedades, atenuar o stress social e permite aos indivĂ­duos de sociedades alien conservarem a sua cultura. Mas estes indivĂ­duos sĂł podem evoluir e ser felizes se se mantiverem conservados na sua cultura. Isto Ă©: sĂł se ambos, o indivĂ­duo e a cultura permanecerem autĂȘnticos. Isto conduz a uma regulamentação parecida com a de um clube privado. É necessĂĄrio obedecer a determinados “life-scripts”. Se a identidade Ă© a expressĂŁo da individualidade como Ă© que convive com a autenticidade cultural normalizada pelo ocidente?

As culturas sĂł evoluem e as sociedades progridem porque hĂĄ muitos indivĂ­duos que resistem activamente a serem totalmente integrados num grupo. Integração soa a regulação e a restrição. As polĂ­ticas diferenciadoras acabam por desconsiderar a autonomia individual, reduzir a liberdade e conduzir Ă  conformidade (Kwame Appiah). A fĂłrmula multiculturalista assenta na ideia de que a cultura Ă© essencial Ă  vida e como os humanos sĂŁo criaturas culturais devem pertencer a uma determinada cultura. Se a sobrevivĂȘncia de uma cultura nĂŁo estĂĄ garantida, por ter entrado em decadĂȘncia ou por invasĂŁo de culturas exteriores, devem ser tomadas medidas protectoras. Uma cultura Ă© uma “forma” que deve ser mantida no seu estado original. Se a “forma” se modifica a cultura entrou em degeneração.

Ora, nĂŁo Ă© obrigatĂłrio viver dentro de uma determinada cultura e as culturas nĂŁo sĂŁo necessariamente estĂĄveis ou eternas. O equĂ­voco multiculturalista Ă© a fundamentação de uma ideia de cultura do ponto de vista do Ocidente — o homem que para compreender a cultura de uma tribo canibal participa em prĂĄticas canibais terĂĄ ido demasiado longe? PoderĂĄ ele voltar de novo para a sua cultura? O que Ă© que se perdeu?

O Louvre em Abu Dhabi Ă© uma operação de globalização da cultura francesa, disse o Ministro francĂȘs da cultura Renaud Donnedieu de Vabres (3). O Louvre do deserto (4) nĂŁo Ă© uma aberração para a cultura muçulmana. Representa o sentido inverso Ă  hegemonia cultural do ocidente que durou atĂ© ao fim do sĂ©c. XX.

SĂŁo os novos museus de etnologia.
O conteĂșdo Ă©: arte ocidental (5).


Pedro Portugal
Artista, Professor UniversitĂĄrio e Assessor para a Cultura da CĂąmara Municipal de Lisboa



NOTAS
Este texto Ă© uma citação moderna do livro de Kenan Malik “Strange Fruit: Why both sides of the race debate are wrong” (Oneworld, 2008)

(1) O mesmo se passa com o facto de no Grego nĂŁo existir a palavra arte – a palavra mais aproximada Ă© thechnĂ©.
(2) O avanço do pé esquerdo nos Kouros hå 2.600 anos (estiveram outros 2.500
com os pés juntos) é uma revolução formal que rompe com a tradição. Não estå determinada a origem da inovação. As pinturas feitas nas cavernas durante 25.000 anos até à invenção da escrita são também um exemplo de manutenção de inércia cultural.
(3) Em 1948, T. S. Eliot sublinha, nas suas “Notas para uma Definição de Cultura”, que hoje em dia observa-se que a “cultura” atrai os polĂ­ticos. NĂŁo que os polĂ­ticos sejam “homens de cultura”, mas a “cultura” Ă© reconhecida como um instrumento de polĂ­tica e como coisa socialmente desejĂĄvel sendo um dever do estado a sua promoção.
(4) A maior parte dos Rubens e Boucher nĂŁo serĂŁo expostos neste novo museu. HĂĄ uma clĂĄusula no contrato que nĂŁo permite nus.
(5) Na administração da TATE a facção desfavoråvel ao franchising não vai resistir por muitos anos às propostas milionårias que chegam precisamente dos países da cultura do petróleo.