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OPINIÃO


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A AUTONOMIA IMPRÓPRIA DA ARTE EM JACQUES RANCIÈRE



SOFIA NUNES

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Jacques Rancière é actualmente um fenómeno de popularidade consensual e indiscutível em todo o mundo ocidental e em Portugal também. As duas últimas conferências proferidas em Lisboa de sala cheia, a primeira na Fundação Calouste Gulbenkian, em Novembro de 2010 no âmbito do ciclo A República por vir e a segunda na Culturgest, intitulada a Autonomia das imagens, realizada em Março passado e sob a organização da editora Dafne, são disso aliás indícios claros, a par das recentes traduções portuguesas de alguns dos seus livros, entre eles O Ódio à Democracia (ed. Mariantes, 2006), O Espectador Emancipado (ed. Orfeu Negro, 2010) e Estética e Política. A Partilha do Sensível (ed. Dafne, 2010).

Este não deixa de ser um dado curioso, sobretudo se atendermos ao facto do seu pensamento se inscrever num quadro de profunda dissensão e ruptura. Porém não se trata aqui de o questionarmos, sob pena de nos determos em problemas menores quando comparados com a complexidade e riqueza da sua reflexão, imprescindível para pensarmos hoje os domínios do político e da arte e suas afinidades.

Não sendo Rancière um historiador de arte, como o próprio aliás faz questão de salientar, é porventura um dos filósofos contemporâneos mais atentos e conhecedores da produção artística do seu tempo, pelo que as problematizações desenvolvidas por si, sobretudo a partir de 2000, ano em que publica a primeira edição de Le Partage du Sensible, Esthétique et Politique (La fabrique ed.), têm respondido criticamente a muitas questões da história da arte, devolvendo-lhes novas possibilidades. Uma delas, que deu título à conferência da Culturgest, é a noção de autonomia da arte que o autor reabilita contra a própria ideia de autonomia celebrada pela visão modernista de Clement Greenberg e alargada por Michael Fried, ao mesmo tempo que recusa as leituras do pós-modernismo.

Para então entendermos o sentido conferido por Jacques Rancière a esta noção tão familiar aos discursos da arte é necessário inscrevê-la num regime específico de arte a que o autor chamou de regime estético, por oposição a dois outros grandes regimes de pensamento das práticas artísticas que marcaram a tradição ocidental – o regime ético e o poético/representativo – e que se configuraram de forma profundamente prescritiva. Vejamos.

O regime ético apenas diz respeito às imagens e às artes que se constituem numa relação formadora com o ethos, com a comunidade e o modo de ser dos seus elementos, pelo que não devolve à arte uma esfera individualizada. As imagens são portanto aqui tomadas em função da sua verdade intrínseca, por um lado e, por outro, em função dos seus usos e dos efeitos que produzem sobre a maneira de ser dos indivíduos e da colectividade, cumprindo assim um destino social e político. A este regime ético, o autor associa, por exemplo, as imagens da divindade ou da lei, mas também a distinção platónica entre as artes verdadeiras, entenda-se maneiras de fazer ou saberes organizados pela imitação de modelos com fins determinados, e os simulacros que imitam as aparências e instalam a desorganização na polis.

Contrariamente, no regime poético/representativo as artes individualizam-se num campo próprio – as belas artes – dependendo de uma classificação das maneiras de fazer, ver e julgar que, por sua vez, possibilita a sua identificação e apreciação através de um princípio representativo, a mimesis. Ora a função da mimesis é tão pragmática, na medida em que identifica quais as artes que em particular produzem as imitações, como simultaneamente normativa, pois faz corresponder as imitações a géneros específicos, enquanto promove a sua avaliação através das suas boas ou más qualidades, preservando sempre uma concordância aristotélica entre as regras da produção das artes (poiesis) e as leis da sensibilidade humana (aisthesis) (1). À semelhança do regime ético, também este define uma certa configuração do sensível, levando Rancière a introduzir uma analogia reversível entre o discurso representativo das artes e a visão hierárquica social, dando como exemplo a hierarquia dos géneros constituída em função da dignidade dos seus sujeitos (2).

A estes dois regimes de arte, o autor contrapõe então um terceiro – o regime estético – que identifica a arte ao singular, interrompendo quer a lógica ética da apropriação das formas de arte não autónomas pelas formas de ser de uma comunidade, quer a lógica representativa, garantida pelo par concordante poiesis/aisthesis. Este é portanto um regime que afasta a arte de qualquer sentido comunitário determinado e concomitantemente de qualquer pressuposição artística, “de toda a regra específica, de toda a hierarquia dos sujeitos, dos géneros e das artes” (3), não deixando porém de lhe reconhecer uma esfera específica de experiência. Com este regime, a arte liberta-se assim da sua condição de artes e de belas-artes para se definir por si própria.

No entanto, a ideia de autonomia que organiza esta reflexão em nada se aproxima àquela que procurou associar a produção artística “a uma revolução anti-mimética e à conquista da forma pura” (...) em que “cada arte afirmaria então a pura potência da arte explorando os poderes próprios do seu medium específico” e a modernidade pictórica, se definiria pelo “pigmento de cor e superfície bidimensional” (4). Reconhecemos desde logo nestas suas palavras a referência implícita a Clement Greenberg e o modo como este definiu ontológica e disciplinarmente o objecto artístico, em particular a pintura abstracta, através das suas propriedades internas e da sua estrita separação face a outros media. Pois bem, para Rancière a autonomia da arte explica-se antes por uma desidentificação generalizada que desactiva os princípios de diferenciação entre as artes, mas também entre os domínios da arte e da não-arte.

Neste sentido, a sua crítica parece dirigir-se de igual modo à noção de teatralidade que Michael Fried introduziu, expandindo a ideia greenbergiana de autonomia das formas de arte. Em Art and Objecthood, 1967, um texto de resposta directa aos minimalistas ou “literalistas” como Fried lhes chamou, a qual acabou por se alargar às práticas da performance e da instalação (5), o autor argumentava que “a ligação literalista à materialidade nada mais acrescenta do que um novo género de teatro; e teatro é agora a negação da arte” (6). O termo teatro integra aqui, como sabemos, não apenas as qualidades fenomenológicas dos trabalhos minimalistas e sua recepção junto do espectador, mas tudo aquilo que “não sendo parte do objecto é parte da situação na qual a sua materialidade se estabelece e da qual a sua materialidade parcialmente depende” (7). Para Fried tratava-se pois de assegurar o essencialismo de Greenberg, separando a arte de toda e qualquer situação, ou seja, de contextos não-estéticos exteriores à arte.

A saída de Rancière a esta clausura rejeita contudo a leitura do pós-modernismo e a sua tentativa de ruptura histórica assente na colagem da modernidade aos discursos modernistas da arte. A sua saída faz-se então por outra via que recua à estética moderna de Friedrich Schiller, concretamente às noções de “livre aparência” e de “jogo livre”, reclamando para a arte um sentido de autonomia muito singular. Para Rancière ambas as noções schillerianas devolvem à obra de arte essa possibilidade de se afirmar através de um paradoxo constitutivo que suspende todas as separações e contrários: “a arte é arte desde que ela seja também não-arte, outra coisa que arte” (8). Ora o próprio da arte, ou aquilo que é específico seu, a sua autonomia traz também, de acordo com o autor, uma promessa de emancipação e essa promessa não é senão o seu impróprio, ou seja, a supressão da arte como realidade separada e sua implicação na constituição de formas de vida.

Se este sensível heterogéneo da arte coloca-a na sua estrita relação com a vida colectiva, esta mesma relação realiza-se porém sem tarefa ou destino definidos, de forma absolutamente indeterminada que resiste, para parafrasear Rancière, aos cálculos e tipificações do pensamento e da arte. Tal é o exemplo do filme O Homem da Câmara de Filmar, 1929, de Dziga Vertov, citado na conferência da Culturgest, onde o processo de montagem utilizado parece igualar a vida ao movimento mecânico da sociedade moderna russa, mas onde também esta equivalência é subitamente interrompida por um rosto, um sorriso ou um gesto de que não se espera e que instaura dentro da imagem conflitos de formas, temporalidades e espaços.



Sofia Nunes


NOTAS
(1) cf. Rancière, Jacques – “Politique de l’indétermination” in Politique de l’esthétique. Paris: éditions des archives contemporaines, 2009, p. 158.
(2) cf. Rancière, Jacques – Le partage du sensible: esthétique et politique. Paris: La fabrique éditions, 2000, p.31.
(3) idem, p.33.
(4) idem, p. 38.
(5) cf. de Duve, Thierry – Kant after Duchamp. Cambridge Massachusets: The MIT Press, 1997 (1996), p. 241.
(6) in Harrison, Charles; Wood, Paul (ed.) – Art in Theory 1900-2000. An Anthology of Changing Ideas. London: Blackwell Publishing, 2003 (1992), p. 838.
(7) idem, 839.
(8) Rancière, Jacques – Malaise dans l’esthétique. Paris: Éditions Galilée, 2004, p. 53.