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2006-06-30
BIO-MUSEU: UMA CONDIÇÃO, NO MÍNIMO, TRIPLOMÓRFICA

COLECTIVO*

2006-06-14
NEM TUDO SÃO ROSEIRAS

LÍGIA AFONSO

2006-05-17
VICTOR PALLA (1922 - 2006)

JOÃO SILVÉRIO

2006-04-12
VIENA, 22 a 26 de Março de 2006


PAISAGENS CRÍTICAS



UM LIVRO DE NELSON BRISSAC

2011-01-12




A relação do artista Robert Smithson com a ciência e a indústria é tema de novo livro do filósofo e pesquisador Nelson Brissac. Em “Paisagens Críticas: Robert Smithson: Arte, Ciência e Indústria” o autor segue três vectores, paralelos e entrelaçados: analisa a obra de Robert Smithson na sua relação com a geofísica e a indústria mineira; o desenvolvimento, a partir dos anos 60, das investigações científicas dos sistemas dinâmicos e dos processos de auto-organização da matéria; e a geofilosofia de Deleuze, que articula uma reconstituição desses processos morfogénicos a uma interpretação da ciência, do trabalho industrial e da criação artística.

Para Brissac, analisar a obra de Smithson através da filosofia e da teoria da complexidade permite perceber as questões e abordagens antecipatórias do artista, assim como compreender a radicalidade inovadora dos seus projectos.

Leia a seguir alguns trechos do livro, que foi publicado pela Educ e a editora do Senac.

As relações da arte com a ciência ganharam, nos últimos anos, novas e instigantes variáveis. Embora a arte, com a modernidade, sempre tenha interagido com o conhecimento científico, eventos recentes acrescentaram outras dimensões a esse quadro.

Uma verdadeira revolução científica ocorreu, a partir dos anos 70, com o desenvolvimento das teorias dos sistemas dinâmicos e complexos. Iniciada na física -na termodinâmica-, ela implicou uma radical alteração no modo como compreendemos a matéria, agora reconhecida como capaz de auto-organização, de gerar suas próprias formas e configurações. Descobriu-se que é nos estados distantes do equilíbrio que os sistemas materiais se constituem e evoluem.

A instauração dos processos em desequilíbrio, antes relegados à categoria de desvios desprezíveis, no centro das preocupações científicas teria profundo impacto cultural, inclusive na produção artística. Fenômenos físicos críticos -como a turbulência, as avalanches e os terremotos- passaram a ser intensamente estudados, originando diferentes modelos para explicar o comportamento instável desses sistemas.

O recurso a procedimentos inovadores na matemática e na geometria, além da utilização da então nascente tecnologia de computação, permitiu reconstituir a estrutura invisível desses fenômenos turbulentos. Os atratores estranhos são o princípio organizador de sistemas em desequilíbrio crítico, à beira do caos. O atrator de Lorenz não é apenas uma das mais potentes imagens jamais produzidas pela ciência: depois da descoberta da complexidade, da introdução da topologia e da geometria variável, a criação artística se faria a partir de novas bases.

De que modo esses processos impactam a arte contemporânea? Como os novos princípios científicos e os fenômenos materiais por eles analisados foram absorvidos pela prática artística? Como, inversamente, as questões e os procedimentos desenvolvidos pela arte se revelaram sintonizados com as novas abordagens que se faziam no campo da ciência?

Diferentes frentes de criação artística têm se aberto, recentemente, na interface com a investigação científica, como a bio-arte, a realidade virtual, a inteligência artificial (projetos de robótica) e arte generativa (a partir de sistemas autorreguláveis e autômatos celulares). Mas é na física que o desenvolvimento recente de novas abordagens teóricas e experimentais tem relação direta com as práticas artísticas que queremos destacar aqui.

A reflexão sobre as relações da arte com a ciência tem, historicamente, referencias paradigmáticas. Dentre elas, a obra de Robert Smithson. A teoria da complexidade, em particular a noção de auto-organização da matéria, que engendra intrinsecamente novas configurações, se estabeleceu no exato momento em que Smithson realizava suas obras mais importantes -as “earthworks” (como “Spiral Jetty”), mas sobretudo seus projetos de recuperação de áreas mineradas.

Ainda estão para serem avaliadas as potenciais correlações -para além das óbvias associações iconográficas, como as provocadas pelas formas em espiral dos atratores estranhos- entre o trabalho de Smithson e os sistemas dinâmicos. Pois é evidente a sintonia entre as questões que se colocava o artista -a formação dos cristais e dos estratos geológicos, a erosão aluvial e as formações sedimentares, a função transformadora de fenômenos catastróficos como os vulcões e terremotos- e aquelas que, em meados da década de 70, em torno dos mecanismos da turbulência, se tornariam o foco principal da física, no que seriam conhecidas como as teorias do caos e da complexidade.

Smithson partiu da noção clássica de entropia, entendida como perda de energia, para evoluir no sentido da exploração de processos geomorfológicos (erosão, glaciares, movimentos tectônicos) em grande escala, no mesmo momento que Prigogine iniciava uma completa reformulação da termodinâmica, apontando o papel criativo da entropia nos sistemas dissipativos.

A mudança de perspectiva consistiu em mostrar que a leitura então corrente do segundo princípio da termodinâmica –a entropia de um sistema tende a aumentar com o tempo, aproximando-se de um valor máximo– só era válida para sistemas fechados, onde a quantidade total de energia é sempre conservada. Ao se observarem situações em que intensos fluxos de energia e matéria percorrem um sistema –quando este é levado para “distante do equilíbrio”–, surgirão formas complexas de estabilidade, resultantes precisamente do comportamento dinâmico, instável, do sistema.

Para a termodinâmica do século XIX –que Smithson chama de ciência do “universo supostamente estável da material”–, a única evolução possível era para o equilíbrio, a desorganização progressiva, a queda na imobilidade. Mas nos sistemas em que se produzem constantemente intercâmbios de energia e matéria com o meio, o equilíbrio não é possível, pois ocorrem processos dissipativos que continuamente produzem entropia (Prigogine, 1983, p. 88). O que demanda uma nova descrição da natureza, em que ordem é gerada a partir de condições de não equilíbrio. Abre-se um novo campo na física: o estudo da estabilidade dos sistemas distantes do equilíbrio.

Já nos primeiros trabalhos, Smithson incorporou o princípio do crescimento dos cristais -em particular, a “teoria da deslocação da rosca”, então desenvolvida pelas pesquisas científicas- e da dinâmica da formação dos estratos geológicos. Depois, a questão da contenção -de como circunscrever sítios geológicos desordenados, sem limites- implicaria a integração de elementos heterogêneos, a articulação do dentro com o fora. Uma problemática que seria central na ciência e na matemática daquele período, exigindo o desenvolvimento de uma ferramenta fundamental para a análise dos sistemas dinâmicos: a teoria dos sistemas dinâmicos e a topologia.

Da mesma maneira, a abordagem de Smithson dos sistemas dinâmicos fluviais, sobretudo os meandros, remete aos fractais. A geometria que descreve os padrões irregulares da natureza e a capacidade que têm essas formações de ocupar o espaço, redefinindo a questão do limite. Por fim, um dos mais instigantes desdobramentos, prenunciados por Smithson nos seus projetos para as lagoas e pilhas de rejeitos da mineração, seriam os estudos dos sistemas físicos que encontram seu estado de equilíbrio em pontos críticos de instabilidade -desenvolvidos pela teoria da criticalidade auto-organizada.

O ponto de partida de Smithson são os processos elementares de formação da matéria. Os cristais são elementos de concentração de matéria que sofrem transformações qualitativas, o espaço interior deles não permanecendo indefinidamente igual. A cristalização implica uma mutação estrutural da matéria. O cristal está constantemente mudando devido às rupturas e aos desenvolvimentos estruturais, mas externamente é mantido por um sistema ordenador. Essa questão – da estruturação, da consistência, dos limites– atravessaria toda a obra de Smithson.

O deslocamento é um fenômeno que se dá na superfície do cristal. É um processo de limite. É o que levou à teoria da deslocação em espiral (\"screw dislocations\"), que então começava a ser difundida. Existem dois tipos básicos de deslocações, em que as moléculas são adicionadas à superfície de um cristal de um modo que resulta na criação de bordas (saliências) ou hélices, fazendo com que o crescimento do cristal possa continuar.

Todas as obras de Smithson que retomam a figura da espiral –todos os seus projetos que trabalham o princípio da deposição– remetem ao deslocamento de rosca. O artista usaria esse processo de formação da espiral em cristais, por ruptura do equilíbrio estrutural, para induzir a constituição das configurações em espiral de suas “earthworks”. O modo de crescimento dos cristais por deslocamento já permite formular, portanto, os princípios topológicos que configurariam suas futuras estratégias construtivas.

Esse processo de deslocamento, a criação de uma curva, pelo qual cresce o cristal, é entendido por Michel Serres como o próprio processo de constituição da matéria. Uma ligeira inclinação, um ângulo mínimo, provoca uma turbulência no escoamento laminar. Engendra um movimento rotacional, de que nasce a espiral (Serres, 1997, p. 17). As coisas constituem-se por essa diferença em relação ao equilíbrio. Passa-se da mecânica dos sólidos para a hidráulica, para a mecânica dos fluidos, para outra concepção dos processos de organização da matéria, baseada em estados distantes do equilíbrio. Toda a geofísica de Smithson está fundada nesse princípio do desvio, um desequilíbrio que gera a figura da espiral.

A série de obras iniciais com espelhos empilhados -como “Mirrored Ziggurat” (1966) e “Glass Stratum” (1967)- remete diretamente ao crescimento cristalino por deposição, além do processo de estratificação. Já “Gyrostasis” (1968), feita em aço, é composta por sólidos triangulares que progridem em série decrescente para formar uma espiral. Também remete ao ordenamento cristalino, em que o tempo é congelado numa estrutura regular de movimento ascendente em espiral. “Giroestática” refere-se a um ramo da física que trata de corpos rotativos e sua tendência a manter o equilíbrio. Essas primeiras formas espiraladas já são associadas a um modo de extensão dos cristais, o crescimento a partir de uma ruptura, a deslocação de rosca.

Na abordagem de Smithson, os processos geológicos de estratificação são contrapostos por acontecimentos que impedem a acomodação ordenada e estável da matéria. Para ele, os estratos são desordenados, desestruturados, feitos de afloramentos assimétricos. Diante desse tumulto, desmoronam as tentativas de estabelecer distinções. O geólogo, nas suas prospecções, só encontra um caos de matéria.

A estratégia de Smithson para abordar as formações geológicas é decisiva em sua obra. O ponto de partida, dada a noção da crosta terrestre como constituída por matéria em estado indiferenciado e fragmentado, são os estratos convulsionados. Ele visa configurações resultantes de movimentações geológicas ou da exploração industrial. Sítios, geralmente minas ou pedreiras abandonadas, que evidenciam grandes perturbações topográficas. Formações já profundamente afetadas por dinâmicas geomorfológicas de muito longo prazo e por escavações mais recentes. Movimentos –naturais ou industriais– de perturbação e desequilíbrio. Enchentes, deslizamentos, vulcões, glaciações, pedreiras, minas. Espaços heterogêneos e descontínuos.

Smithson escolhe sítios configurados por massificações geológicas na forma de acumulações provocadas por glaciares, fluxos vulcânicos ou espraiamentos. Processos geomorfológicos que ocorrem durante longos períodos de tempo: fluxos e inundações de erosão aluvial (provocados por água) e coluvial (provocados por gravidade). A referência a esses processos geomorfológicos instáveis determina os princípios e o modus operandi dos seus projetos. Ele fazia estudos da mineralogia dos locais, determinando sua composição e recolhendo amostras. Os levantamentos realizados nos lugares (sites) são então apresentados em exposições –feitas com material recolhido, desenhos, cartografia, fotos, textos–, o não-lugar (“nonsites”).

Aqui, o recipiente é um dispositivo para apresentar processos de contenção de materiais não consolidados. Como um corte num terreno sedimentar. Os caixotes são vazados, compostos por lâminas horizontais que se assemelham aos estratos sobrepostos nesse tipo de formação geológica. Eles escoram o material disperso, sem, no entanto, suprimir o caráter fragmentado da massa ali depositada. No “nonsite”, o recipiente assegura –de modo conceitual, estético– a estabilização do sítio, ele próprio transformado num caos de materiais revolvidos por operações industriais.