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DO OURO AOS DEUSES, DA MATÉRIA À ARTELIZ VAHIA2023-08-04
No capítulo 32 do livro do Êxodo, conta-se como o povo de Israel, preocupado com a ausência prolongada de Moisés na montanha, foi ter com o seu irmão Aarão para que lhes fizesse “deuses” que fossem “adiante” deles e os guiassem. Aarão pediu então que entregassem os pendentes de ouro que tinham trazido do Egipto e com eles fez um “bezerro de fundição”. Depois edificou um altar e celebraram-se festas. Mas Deus na montanha viu tudo e ordenou a Moisés que descesse e castigasse o povo por ter desobedecido ao segundo mandamento (não fazer imagens nem as adorar). Na sua fúria, Moisés queimou o bezerro, reduziu-o a pó e lançou-o sobre as águas que depois deu a beber ao povo. Quando interrogado por Moisés sobre a sua acção, Aarão primeiro atribuiu a culpa ao povo, “inclinado ao mal”, mas depois afirmou que a imagem se fez a ela própria: ele apenas lançou o ouro no fogo e “saiu este bezerro”. Confrontados com a ausência da divindade e de um mediador, e na procura por uma presença e visibilidade divina, ou uma imagem que lhe servisse de acesso, Aarão e o povo constroem o bezerro através de um processo de “conversão de valores”, a partir do ouro ganho no Egipto. Na falta de uma imagem para o Deus de Moisés, o povo recorreu a uma representação tradicional de uma das divindades dos seus vizinhos cananeus, Baal (cuja palavra significa Senhor, Dono), que era representado como um bezerro. O “frenesim do visível” mostra como é impossível obedecer ao segundo mandamento. Sem imagem, como chegar à verdade? Espinosa, no seu Tratado Teológico-Político (1670), vai debruçar-se no capítulo II precisamente sobre esta mesma questão da “forma” das revelações de Deus aos profetas. Para Espinosa, Deus revela-se aos profetas segundo a “disposição da imaginação” destes. Havia uma adequação entre o tipo de imagens reveladas e a aptidão do profeta para as receber: “se o profeta era um rústico, apareciam-lhe bois e vacas; se era soldado, apareciam-lhe chefes e exércitos; se era, enfim, um homem da corte, o que lhe aparecia era o trono real e coisas semelhantes.” [1] No caso de Moisés, como não tinha qualquer imagem de Deus formada no seu cérebro, este não lhe apareceu sob nenhuma forma quando Moisés lhe pediu que se deixasse ver. E porque acreditava que Deus estava no céu, Deus revelava-se-lhe a descer do céu sobre a montanha. Portanto, e porque era um pouco limitado na sua imagética, Moisés tinha que subir à montanha para falar com Deus, “coisa que seria desnecessária se ele pudesse imaginar com igual facilidade que Deus está em toda a parte” [2]. Daqui conclui Espinosa que os profetas não sabiam mais que as outras pessoas a quem Deus não se revelou, e que a forma que as revelações adquiriam eram de certo modo “irrelevantes”, pois eram apenas modos de adequar, através da imaginação daqueles, uma mensagem simples de Deus. As palavras e as imagens dos profetas não revelam então uma verdade de Deus, revelam-se a si próprias como uma construção. Apesar de terem a pretensão da explicação final, estas imagens eram carregadas de incerteza e por isso os profetas pediam muitas vezes um “sinal” que lhes garantisse que estavam a falar com o “verdadeiro” Deus. Esta é uma das faces da “aporia da representação”, que Fernando Gil tão bem vai circundar em Mimesis e Negação (1984): a objectividade e verdade da representação estão ameaçadas pela actividade construtiva do sujeito. O bezerro de ouro é um episódio clássico onde se manifesta a tensão entre poder, representação e matéria – ou sujeito, imagem e medium – e a coexistência de extremos num mesmo objecto: a criação de imagens e a sua destruição, o visível e o invisível, o material e o imaterial, o animado e o inerte. O que é inaceitável aos olhos de Deus e Moisés (e sedutor para os restantes) é que a imagem do bezerro não só representa a divindade, mas é ela mesma “carne divina” [3] – “faze-nos deuses”, disse o povo a Aarão. O bezerro é sagrado não porque representa Deus ou porque é feito de ouro, mas porque é uma imagem divina – o objecto material e a imagem que suporta. A imagem é tão poderosa que concorre com Deus como um seu rival. A sua materialidade consegue tornar visível o que supostamente seria invisível, consegue tornar presente a divindade. É esse paradoxo de concreto e abstracto que caracteriza também a arte. Uma intervenção Pizz Buiniana nesta história só podia provocar a intrusão de uma gargalhada, uma espécie de glitch na palavra Baal que transforma o Senhor em qualquer coisa mais próxima ao falar do animal. Pizz Buin pode cair nesta tentação idolátrica, mas fá-lo através de um “iconoclash” (se quisermos usar o termo de Bruno Latour), uma destruição construtiva, um lugar ambíguo de destruição/criação: a arte pode ter como origem a sua própria destruição, a imagem pode reinventar-se a si mesma e reproduzir-se como imagem tendo por base a destruição da própria imagem. Em Baahahal, exposição que esteve patente até 29 de Julho no CAPC - Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, funde-se o ouro de todos nós numa forma em permanente busca tangível por uma imagem. Tal como o bezerro, elas tanto se apresentam como criadas por mãos humanas como feitas por si mesmas. O disforme aqui não é uma negação da forma, se o for é da forma anterior. É antes uma afirmação da forma como processo a meio caminho de uma imagem por vir. É a matéria na sua potência autopoiética – é o excesso da matéria a transbordar para fora de si mesma, a constituir-se em imagem e suporte ao mesmo tempo. Em Baahahal, propõe-se a veneração de uma forma que vive do disforme, um totem de corpos irreconhecíveis. Aqui é a própria obra que instaura um espaço de procura de uma imagem em potência. Uma imagem-que-foi transformada agora numa imagem-ainda-a-ser, ou numa “arte ainda por vir” atingida já pela fúria do impacto da sua aparição. Só concedendo à matéria a liberdade e possibilidade de formas é que se autoriza a capacidade de ela passar para um “além” da matéria. O “para além” da matéria é um “aquém da forma”, ou uma forma em constante criação/destruição. Há como que uma reversão do processo alquímico, um devolver à matéria-prima o seu carácter de inacabado, de potência criadora visível nas suas propriedades de Matéria. O fogo criador gera neste caso um processo de desdiferenciação, uma regressão a um estádio anterior que permite à matéria transformar-se ela mesma numa outra coisa - um processo de devir-outro que está em permanente acontecimento. Estas peças parecem mostrar-nos também uma possibilidade de coexistência simultânea da multiplicidade de formas e da unidade da matéria, que encontra algum paralelismo nos vários “totems de conceitos” em forma de montanha que povoam a mais recente publicação Pizz Buiniana, intitulada Calhamaço (2023). Empilhados entre a base e o topo dessas montanhas de conceitos assentes uns nos outros estão, por exemplo, “ver”, “crer”, “aparecer”, “fé”, “tecnologia”, “coisas soltas”, “histórias colectivas”, “comunidade”... Nesta publicação encontramos também uma profusão de imagens de estátuas, entre Vénus, Nossas Senhoras, Colossos ou Porcas proto-históricas, com seus pedaços e membros esparsos pelas páginas, entre a quimera e o bibelot. As formas podem variar, mas os bezerros de ouro permanecem ainda hoje e as imagens irão sempre “adiante” de nós como guias. Podemos perguntar-nos, como no início do Calhamaço, “A que nível da montanha estamos? / Queremos subir / Ou queremos descer? Ou só andar às voltas / Ou levar um mapa / ou fazer um mapa?”, porque “Montanhas há muitas seu/sua palerma ” [4], mas nem todas têm deuses. A cada um a sua montanha.
Liz Vahia
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Notas [1] Baruch de Espinosa (2004). Tratado Teológico-Político, (trad., introd. e notas Diogo Pires Aurélio), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 152.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia. |