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LUÍS CRISTINO DA SILVA, UM PERCURSO ATÉ NOVA OEIRAS
JOÃO ALMEIDA E SILVA
Poucos arquitectos portugueses do século XX traduzem, com tanta clareza, as tensões entre modernidade, tradição e poder como Luís Cristino da Silva (1896-1976). Visionário, controverso e inovador, a sua obra atravessa as diversas fases do regime político de então, a Ditadura/Estado Novo (1926-1974), dialogando com estilos e linguagens arquitectónicas distintas e deixando um legado que permanece relevante para os debates contemporâneos sobre cidade, espaço público e habitação. A actual exposição do Círculo da Arquitectura, em Oeiras, está montada numa antiga sala de espectáculos [1] e expõe as três principais fases da sua carreira - Modernismo/Regionalismo (Anos 1920 e 1930), no lado direito da plateia; A Arquitectura do Estado Novo (Anos 1940), no lado esquerdo; e Pós Guerra e Ressurgimento da Arquitectura Moderna (1948-1974), no palco -, propõe uma reflexão sobre a trajetória do arquiteto Luís Cristino da Silva, com especial enfoque no seu contributo para o urbanismo de Nova Oeiras, e convida a revisitar esse percurso e a descobrir um arquitecto inquieto, que nunca se limitou a seguir cânones, mas que, entre constrangimentos políticos e experimentação estética, propôs caminhos que ainda hoje ressoam na arquitectura portuguesa.
Nascido em Lisboa em 1896, Luís Cristino da Silva pertenceu a uma geração de transigentes. [2] Terminou o curso em 1918 e obteve o diploma em Arquitectura pela EBAL em 1919, ano em que iniciou estágio no Ministério da Instrução Pública enquanto auxiliar na Repartição de Construções Escolares, organismo no qual permaneceu até 1920. Nesse mesmo ano partiu para Paris onde, na sequência de uma bolsa de estudos atribuída pelo Conselho de Arte e Arqueologia, estudou, primeiro, na École des Beaux-Arts com Victor Laloux (1850-1937) e, posteriormente, estudou e trabalhou, enquanto aluno livre, com Laloux e Charles Lemarresquier (1870?1972), realizando, durante este período, algumas viagens pela Europa (actividade que manteria ao longo de toda a vida). Em 1923, concluído o estágio, prosseguiu o seu trabalho de bolseiro em Roma durante seis meses, realizando investigação relacionada com estudos arqueológicos, tendo regressado, ainda nesse ano, a Paris, onde trabalhou, com Léon Azéma (1888-1978), até ao seu regresso a Lisboa, em 1924, ano a partir do qual desenvolveu, entre um conjunto de moradias de linguagem tradicionalista (que publicou regularmente na recém-criada Arquitectura), vários projectos cuja linguagem, reflectindo a combinação de Art Déco com um estilo purista e funcional, os posiciona como exemplos verdadeiramente modernistas.
Primeiros Anos: A Modernidade Como Experiência (1920-1938)
Na primeira fase da carreira de Cristino da Silva, entre 1920 e 1930, é marcada por pura experimentação e afirmação do modernismo português. Ao regressar a Portugal, destacou-se tanto pelo modernismo quanto pelo regionalismo, quando necessário, como no Edifício das Companhias Reunidas de Gás e Electricidade. Este período inclui obras emblemáticas, entre as quais se destaca o Cine-Teatro Capitólio (1925-1931) [3], considerado a primeira obra modernista construída em Portugal. O edifício, inovador no uso do betão armado, unia teatro, cinema e cervejaria, refletindo influências internacionais do Movimento Moderno e do Art Déco.
Paralelamente, Cristino desenvolveu projetos que consolidaram a sua posição como um dos nomes centrais do modernismo nacional. Assim, em termos de equipamentos, Cristino da Silva, à data de conclusão do Capitólio, trabalho na sequência do qual desenharia, ainda, a Entrada do Parque Mayer, em 1935, já havia concluído o Casino de Monte Gordo (1932-1933), “com a notável consola em betão suspensa, sem apoios intermédios, que o autor gabava como sendo das mais arrojadas existentes” (Fernandes, 1998:21) e, igualmente dentro dos pressupostos estilísticos anteriormente explicitados, desenvolvia o Liceu Nacional de Diogo de Gouveia, Liceu de Beja (1930-1934), que fora o resultado do primeiro lugar atribuído no concurso para os novos liceus, competições para as quais foi convidado em consequência do trabalho desenvolvido no Capitólio.
Relativamente a edifícios residenciais, a Casa Bellard da Fonseca (1930-1931), que foi publicada enquanto exemplo de arquitectura moderna na “Eva do Natal” de 1932, é igualmente incontornável. No ano de conclusão desta casa, 1931, Cristino da Silva já havia concluído o edifício da Rua Alexandre Braga, em Lisboa (1928-1932), onde esteve sediada a Sociedade de Construções Amadeu Gaudêncio e onde, até 1941, Cristino da Silva mantivera residência (Fernandes, 1998 [Cristino da Silva]: 163); e, nos anos subsequentes, desenvolveria, ainda, projectos como as “Casas da Eva” (1933-1935) [4], ou a Casa Vale Florido (duas casas geminadas, uma das quais a sua segunda habitação), no Estoril (concluída em 1935), são projectos nos quais, como ocorrera no Capitólio, nos Liceus ou no Casino, foram aproveitadas as oportunidades aportadas pelas novas técnicas em proveito de uma arquitectura claramente modernista.
Este conjunto evidencia a ousadia e a experimentação estética de Cristino, que desde cedo procurou romper com os cânones estabelecidos. Obras que sintetizam o uso inovador do betão aliado a novos programas arquitectónicos, como salas de espectáculos e espaços de lazer, mostrando um arquitecto atento às novas técnicas e às exigências de um público de hábitos modernizados.
A Arquitectura Sob o Estado Novo (1938-1948)
Mas os ventos mudam. A viragem ocorre na transição da década de 1940, quando a consolidação do Estado Novo altera profundamente o panorama arquitectónico nacional. Foi em 1938 [5], com a conclusão, em Lisboa, da Loja do Diário de Notícias e do Café Portugal (1937-38), obra de capa da revista Arquitectos de Abril desse ano, e o início do projecto, igualmente em Lisboa, para a Praça do Areeiro (1938-1949) [6], que se verificaria, simbolicamente, um momento?charneira na obra de Cristino da Silva (e dos restantes arquitectos em geral [7]), a partir do qual seria dado maior destaque a uma linguagem historicista, simbólica e tradicionalista, em detrimento da anterior, racional, geométrica e abstracta [8]. Para isso muito contribuiu o impacto que a exposição do mundo português, realizada em Lisboa em 1940 sob a coordenação de Cottinelli Telmo e na qual Cristino realizaria o Pavilhão de Honra. Esta foi um marco que o regime utilizou para restringir as recentes experiências modernistas tendo como consequência o arrefecimento do modernismo e a consolidação de uma arquitectura do Estado Novo nessa década, commumente designada Português Suave [9]. Deste modo, o segundo núcleo concentra-se na arquitetura do Estado Novo, nos anos 1940, em edifícios como os já referidos Pavilhão de Honra e Praça do Areeiro, assim como nas Delegações da Caixa Geral de Depósitos, na Moradia Alvares Cabral e na Estação de Caminhos de Ferro de Nacala, sendo que esta abordagem surge em detrimento do formas geométricas e composição racional que o caracterizava anteriormente.
O Pós-Guerra e a Cidade do Futuro (1948-1974)
No pós-guerra, entre 1948 e 1974, ocorre o ressurgimento do modernismo na obra de Cristino da Silva. Inicia-se com o 1.º Congresso Nacional de Arquitectura, liderado por figuras como Keil do Amaral e assistido por uma nova geração de arquitectos, enquanto Cristino participa sobretudo como observador. Destaca-se, nesta fase a reabilitação da Sede do Banco Nacional Ultramarino (1951-1967), onde reafirma a clareza moderna mantendo a ligação à tradição construtiva portuguesa. A culminar esta fase está o Plano de Urbanização de Nova Oeiras (1953-1974), desenvolvido em colaboração com Pedro Falcão e Cunha e os arquitectos paisagistas Gonçalo Ribeiro Teles e Edgar Sampaio Fortes. Nova Oeiras é uma proposta pioneira de cidade-jardim moderna. Antecipou preocupações atuais sobre sustentabilidade, mobilidade e integração entre espaço construído e espaço público. O projeto articula habitação, paisagem e infraestruturas de forma coerente e funcional. Os edifícios em banda e torres elevam-se sobre pilotis, libertando o solo para espaços verdes, percursos pedonais e equipamentos colectivos, evocando, entre outras, ideias de Le Corbusier. O plano equilibra densidade habitacional e qualidade ambiental, permanecendo, ainda hoje, como um dos projectos urbanísticos mais bem-sucedidos e qualificados em Portugal.
Cristino Hoje: Entre Memória e Futuro
A exposição utiliza maquetes, desenhos originais e um vídeo para ilustrar de forma gráfica toda a trajetória de Cristino da Silva, oferecendo uma cronologia completa que contextualiza a evolução do arquitecto. Revisitar a sua obra é também refletir sobre os desafios contemporâneos da cidade, incluindo habitação, reabilitação e planeamento urbano. O destaque dado ao Plano de Nova Oeiras evidencia não apenas uma faceta menos conhecida da sua obra, mas também a pertinência das suas soluções para questões atuais, como sustentabilidade, mobilidade e integração entre espaço construído e público.
Associar Cristino exclusivamente ao Estado Novo e à estética do Português Suave é reduzir um percurso muito mais complexo. Da ousadia do Cine-Teatro Capitólio, ao rigor institucional da Praça do Areeiro e à visão aberta de Nova Oeiras, a sua obra mostra que a arquitetura pode ser simultaneamente experimental, adaptativa e visionária. Cristino da Silva foi, acima de tudo, um criador plural, e o seu legado convida-nos a refletir sobre a história recente das nossas cidades — uma história que continua a interpelar o presente.
“Luís Cristino da Silva, Um percurso até Nova Oeiras” foi comissariada pelos arquitetos Diana Moreira e António Faísca, com coordenação de António Abreu e Pedro Carrilho. A mostra foi inaugurada a 21 de Junho de 2025 e estará patente no Círculo da Arquitectura, em Oeiras, até 27 de Setembro de 2025.
João Almeida e Silva
Arquitecto e Investigador no CEAU da FAUP, Visiting Scholar na Universidade de Princeton.
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Notas
[1] A abertura da exposição ‘Luís Cristino da Silva: Um percurso até Nova Oeiras’ deu-se por ocasião da inauguração do novo espaço do Círculo da Arquitectura.
[2] Tal como a designaria, em 1951, Carlos Ramos (Cf.: Coutinho, s.d.), sublinhando a coexistência, no percurso dos autores desta geração, das obras modernistas com as tradicionalistas.
[3] Carlos S. Duarte refere que “o Modernismo, que dominou a construção das cidades portuguesas durante os anos vinte?trinta, veiculou uma concepção estilística de duas faces: uma puramente decorativa, ao gosto da ‘Artes Decorativas’ importadas de Paris, e outra designada na época de ‘cubista’ e que, no essencial, se traduzia pelo primado das formas geométricas puras no desenho dos edifícios.” Fernandes exemplifica com o Comércio do Porto, onde o “gosto ‘artes decorativas’ monumentalizado” da Sede se opôs à forte “expressão purista” da Garagem, de Rogério de Azevedo, comparando a força da linguagem da Garagem apenas àquela conseguida no Capitólio (Cf.: Fernandes, 2005: 117; S. Duarte, 1999: 357?358). Nuno Portas inclui, no lote das obras?primas, para além do Capitólio e da Garagem do Comércio do Porto, de Rogério de Azevedo, o Cineteatro Éden, de Cassiano Branco, edifício igualmente excepcional mas que, naturalmente, aqui não trataremos.
[4] A Casa Bellard das Fonseca foi publicada no exemplar especial da revista Eva do Natal, em 1932, originando posteriormente o convite para Cristino desenhar, sem cliente nem lugar, uma casa moderna em 1933 (que seja construída no Fundão), convite que se renovaria nos dois anos seguintes. Como tal, projectaria ainda, a convite da revista Eva, mais quatro “Casas da Eva”: duas em 1934 e duas em 1935, sendo que a de 1934 chegou mesmo a ser construída em Lisboa, no Bairro das Colónias, mas, infelizmente, foi entretanto demolida.
[5] A propósito da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, de Pardal Monteiro, concluída em 1938, em Lisboa (também Prémio Valmor desse ano), e das polémicas que a mesma gerou, Carlos S. Duarte refere que “Estávamos então em 1938. Pode dizer?se que começou aqui o fim da experiência modernista em Portugal” (S. Duarte, 1999: 361). De facto, nesse momento, estava já em preparação (a partir de nota oficiosa de Salazar, em 1938) a Exposição do Mundo Português, que ocorreria em 1940.
[6] Acompanhado de perto por Duarte Pacheco, a primeira fase terminou em 1943 e o conjunto foi concluído em 1948/1949.
[7] Ana Tostões, evocando J?A França (1984 [1974]), identifica três personagens?chave “Carlos Ramos (1897?1969), o culto, informado, aberto, homem do mundo; Pardal Monteiro (1897?1957), o grande construtor, capaz da eficácia do engenheiro e da ordem clássica do arquitecto; Cristino da Silva (1896?1976), o mais virtuoso e criativo, no bom sentido dos valores das belas?artes, e talvez por isso também o mais frágil” (Tostões, 1997: 159). Com Cassiano Branco (1897?1970) e Jorge Segurado (1898?1990) constituem o grupo dos “cinco grandes” do primeiro modernismo português, como designado por José Manuel Fernandes (2005: 116); Cottinelli Telmo (1897?1948), incluído por Carlos Duarte (1999: 357); e, a norte, os nomes de Rogério de Azevedo (1898?1983) e Manoel Marques (1890?1956) são adicionados por Nuno Portas (Cf.: Fernandes, 1998 [Portas]:175).
[8] Paralelamente às casas e demais edifícios de expressão tradicionalista que, entre 1927 e 1935, foi, com regularidade, publicando na então recente Revista Arquitectura, publicou igualmente na revista oficial do SNA, Arquitectos, entre 1938 e 1939, obras de cariz modernista como o Café Portugal ou a Casa Vale Florido, mostrando a convivência entre estilos.
[9] É também reconhecido o impacto que a exposição Moderna Arquitectura Alemã, organizada por Albert Speer em Lisboa, em 1941, terá exercido sobre Cristino da Silva, que a terá considerado, inclusivamente, a “arquitectura do Futuro” S. Duarte, 1999: 368). Por via da sua relação com o país germânico, dado ser casado com Frimeta Rosenfarb, de origem alemã, Cristino da Silva recebeu em Lisboa, por essa ocasião, o arquitecto do regime alemão.
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Bibliografia
Coutinho, Bárbara. Carlos Ramos. Camões - Instituto da Cooperação e da Língua.
Duarte, Carlos dos Santos. 1999. "Arquitectura em Portugal no século XX. Do modernismo ao tempo presente." In Panorama Arte Portuguesa no Século XX, 357-421. Lisboa: Fundação de Serralves; Campo das Letras.
Fernandes, José Manuel. 1998. Luís Cristino da Silva [Arquitecto]. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian - Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão.
Fernandes, José Manuel. 2005. Arquitectura modernista em Portugal [1890-1940]. [edição original: 1993] ed. Lisboa: Gradiva.
França, José-Augusto. 1984. A Arte em Portugal no século XX (1911-1961). [edição original: 1974] ed. Lisboa: Bertrand.
Tostões, Ana. 1997. Os verdes anos da arquitectura portuguesa dos anos 50. Porto: FAUP Publicações.