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INTERESPECIES. POR UMA ARQUITECTURA MAIS-QUE-HUMANA
JOÃO ALMEIDA E SILVA
26/06/2025
Interespécies é uma exposição desafiante, que convida a um olhar atento — não só pela beleza das obras, mas sobretudo pela subtileza das relações que entre elas se constroem. Organizada em três momentos — aproximar, coabitar e conspirar — propõe, ao longo da sequência das seis salas que compõem a exposição, uma jornada sensível pelas formas possíveis de habitar com outras espécies.
Ainda antes de entrar fisicamente na exposição, um som já nos interpela: o chamamento de um pastor às suas cabras. Trata-se de A Fala das Cabras e dos Pastores (2025), de Alexandre Delmar. Este projecto, em desenvolvimento desde 2015, investiga e mapeia a linguagem sonora usada entre pastores e os seus animais em várias regiões de Portugal. A edição aqui exposta inclui todos os pastores até agora registados (de Trás-os-Montes, da Serra da Estrela, de Lamego e da Madeira). Identificam-se trejeitos, vocalizações, uma protolinguagem entre diferentes espécies. Por vezes, os sons dos pastores assemelham-se a cantos de aves, sugerindo uma triangulação de línguas.
Esta invocação ressoa como um convite a entrar em outra realidade — uma em que humanos e animais coabitam segundo códigos próprios de comunicação, cuidado e reciprocidade. Este som, persistente e envolvente, parece desde logo colocar a pergunta que atravessa toda a exposição: e se os nossos modos contemporâneos de ver e habitar o mundo não fossem os únicos — nem os mais justos?
Entre os exemplos mais significativos da sala — que incluem A Cidade e as Serras (1901), de Eça de Queiroz, e a secção geológica Ideal Section of a Portion of the Earth’s Crust (1837), de William Buckland — destaca-se o Dymaxion Map (1943), de Richard Buckminster Fuller. Também conhecido como “projecção de Fuller”, esta é a única projecção cartográfica plana que representa a totalidade da superfície terrestre como uma ilha no meio de um oceano, evitando as distorções visuais significativas das áreas terrestres que ocorrem em projecções como a de Mercator. Enquanto os mapas tradicionais reforçam fronteiras e divisões, a projecção de Fuller elimina distorções eurocêntricas e apresenta o planeta como uma ilha interligada. A sua perspectiva — sem um ‘lado certo’ — antecipa uma ecologia profunda e desfaz preconceitos políticos e culturais. A cartografia deixa de ser instrumento de domínio e torna-se ferramenta de ligação.
Na segunda sala, sob o signo de Aproximar, destaca-se, além da obra já referida de Delmar, o videojogo Everything (2017), de David O’Reilly. Esta experiência artística e filosófica propõe uma reflexão sobre a vida no universo. Trata-se de um jogo open-world de exploração em que nos podemos transformar em tudo: desde partículas subatómicas a animais, plantas, objetos criados pelo ser humano e corpos celestes. A experiência é acompanhada por um filme narrado por Alan Watts.
De seguida, na terceira sala — pequena, mas intensa — o canto das aves preenche o espaço, como se desse continuidade ao som do pastor, chamando pelas suas cabras. O som, em vez da imagem, propõe outro regime de presença: não a representação, mas a imersão. Como propõem Donna Haraway ou Anna Tsing, a atenção ao ruído do mundo pode tornar-se uma forma de escuta radical — e talvez de reparação.
Na quarta sala, sob o signo de Coabitar, um trabalho em progresso explora as possibilidades de deformação de um cubo. Um gesto aparentemente formal, mas que convida a repensar as geometrias normativas da arquitectura — como se também elas pudessem ceder e adaptar-se a outras formas de vida. Fish Cube (2024), de SUPERFLEX & KWY Studio, responde a essa ideia. O aumento do nível do mar exige que repensemos como as infraestruturas humanas poderão servir outras espécies marinhas. Nos últimos anos, SUPERFLEX tem-se dedicado a escutar a vida marinha, num esforço para determinar as suas necessidades. A arquitectura humana baseia-se em ângulos de 90 graus — mas para os peixes, o ângulo recto é o ângulo errado. Fish Cube maximiza a área de superfície de um cubo — arquétipo da arquitectura humana — sem produzir resíduos. Utilizando corte por fio EDM, o cubo é dividido em quatro partes iguais que oferecem uma maior área de superfície habitável à vida marinha. Estes módulos podem ser dispostos em diferentes configurações, criando uma infraestrutura que funciona como arte para os humanos e habitat para os peixes. A obra sugere que o ser humano pode começar a construir com outras espécies em mente, afastando-se do antropocentrismo em favor de uma forma de vida interespécies. [1]
A terceira secção da exposição — Conspirar — contém momentos especialmente significativos. Destaca-se, desde logo, o projecto do Centro de Pesquisa Mar de Cortez (2023), de Tatiana Bilbao Estudio. Recordando o mural O Homem Controlador do Universo, de Diego Rivera [2], o atelier de arquitectura mexicano propõe o oposto: que o humano é apenas uma minúscula parte do cosmos. Para conceber o edifício, o atelier criou um exercício especulativo de ficção arquitectónica e inventou a história de que, no ano 2289, seria descoberta uma estrutura construída em 2023 sem propósito claro. Sabendo que teria sido inundada em 2100 e reemergido em 2227, os arquitectos abordariam a ruína a partir do futuro, considerando a vida entretanto desenvolvida no seu interior. É uma casa especulativa, próxima no tempo mas moldada por um futuro climático longínquo. A arquitectura já não responde apenas a necessidades humanas, mas acomoda, adapta e negoceia — com o clima, com outras formas de vida, com as ruínas do presente.
No centro da sala, destaque para três propostas distintas. A primeira, Rreeef (2020), da associação rrreefs, constitui um sistema modular de tijolos de barro, impressos em 3D, que ajudam a reconstruir recifes de coral. Desenvolvido por uma start-up suíça fundada por mulheres, o sistema cria habitats complexos que atraem corais, peixes, crustáceos e moluscos em várias regiões do planeta. A segunda é uma maquete do jardim portátil do atelier TAKK: uma estrutura leve e móvel que combina arquitectura, botânica e cuidado, propondo uma coabitação intermitente e nómada entre espécies. A leveza do gesto contrasta com a sua profundidade política: não se trata de projectar um objecto, mas de coreografar relações. Por fim, a terceira é o Conjunto de Telhas com Acessos para Morcegos (2025), da NHBS. Estas telhas, concebidas para proteger contra o calor, incluem pontos de acesso específicos para morcegos. Em Inglaterra, onde estes animais são legalmente protegidos, as telhas podem integrar planos de mitigação ou criar novos acessos. Um exemplo de como a política pode impulsionar o design com base noutras espécies.
Destaca-se, ainda, (Synanthro) Love Shack (2020), de Husos Arquitecturas: uma cabana sociobioclimática concebida para um casal de migrantes e a sua família alargada — mas também para pequenos habitats destinados a animais. O projecto é centrado num insecto-chave: a lagarta-do-pinheiro. Em vez de ser eliminada por fumigação, esta micropaisagem oferece refúgios para aves e morcegos que dela se alimentam. As estruturas expostas serão posteriormente instaladas na mata do Mosteiro de Tibães, adaptadas ao contexto local pelo biólogo Paulo Rodrigues Barros.
Na sexta e última sala, encontramos The Field Table (em curso), do Studio Ossidiana. Construída para a casa-atelier dos arquitectos nos Países Baixos — partilhada com Coco, um papagaio-de-cabeça-amarela, e Cornelio, uma gralha-preta — esta plataforma modular evoca uma paisagem mineralizada, rica em possibilidades: inserções comestíveis, nichos para água e comida, jogos e encostos. Um pombal moldado surge na periferia — o esconderijo de Cornelio — enquanto um poleiro alto projeta sombra sobre a peça — o miradouro de Coco.
A mesa propõe uma paisagem moldável, onde se podem negociar limites, recursos e desejos com outras espécies. Feita de terrazzo com conchas, argila e resíduos minerais, a sua tonalidade verde-azulada evoca o “azul de Patinir” — a paleta de cores aguadas e profundas do pintor flamengo do século XVI Joachim Patinir, que se inspirava nas paisagens e nas águas do Rio Maas, onde vivem e trabalham os elementos do Studio Ossidiana. [3] É uma grande mesa concebida para acolher, no quotidiano doméstico, habitantes de diferentes espécies — humanas, animais, talvez vegetais. Aqui, não há metáfora — há prática. Uma arquitectura de convivência radical. Como se o espaço doméstico pudesse ser reimaginado como ecossistema, e não como fortaleza.
Interespécies não impõe soluções nem oferece certezas. Mas convida-nos a desaprender, a reaprender, a imaginar — a aproximar, coabitar e conspirar com outras formas de vida. A redescobrir o habitar como gesto partilhado, sensível e profundamente político. E no fim, o que a exposição talvez nos diga é que o humano — esse projecto solitário — só encontrará futuro quando aceitar deixar de se pensar sozinho à mesa. Talvez seja esse som persistente — o chamamento de um pastor à sua cabra — que continua a ecoar, lembrando-nos, com humildade, que habitar é sempre partilhar.
A arquitectura do espaço expositivo, concebida com inteligência e sobriedade, reforça a ideia de ecossistema habitado, abrindo-se a múltiplas escalas de leitura e presença. O projecto arquitectónico do Centro de Arquitectura da autoria do atelier suíço-português BUREAU (Daniel Zamarbide, Carine Pimenta, Galliane Zamarbide) reconfigura a garagem para acolher exposições, mas também espaços de trabalho, programação e convívio. Na Garagem Sul, em Lisboa, convivem agora fragmentos de espaços históricos da arquitectura — de Serralves, do John Soane Museum, do Prado e dos Uffizi. E, claro, um piscar de olho à exposição Velvet and Silk Café (1927), de Lilly Reich e Mies van der Rohe — uma memória arquitectónica aqui reinterpretada com leveza, convidando a novas formas de estar, ver e imaginar. Uma arquitectura que, tal como a exposição, não impõe, mas acolhe.
“Interespécies” tem curadoria de Mariana Pestana e equipa de investigação composta por Anna Bertmark, Fernanda Costa, Valentina Demarchi, Bernardo Gaeiras, Mathilde Gouin, Katerina Iglezaki, Carlos Pastor, Mariana Simões (Bauhaus of the Seas Research Group). A mostra foi inaugurada a 2 de Abril de 2025 e estará patente no MAC/CCB, em Lisboa, até 31 de Agosto de 2025.
João Almeida e Silva
Arquitecto e Investigador no CEAU da FAUP, Visiting Scholar na Universidade de Princeton.
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Notas
[1] No âmbito da residência no Centro de Arquitectura MAC/CCB, SUPERFLEX e KWY Studio vão desenvolver esta investigação e construir, no Jardim das Oliveiras, uma instalação site-specific que inaugura no dia 28 de junho.
[2] Diego Rivera (8/12/1886 – 24/11/1957) foi um pintor mexicano, sendo que os seus enormes frescos ajudaram a estabelecer o Movimento Mural na Arte Mexicana e Internacional.
[3] No âmbito da sua residência no Centro de Arquitectura MAC/CCB, o Studio Ossidiana vai desenvolver esta investigação e criar, no Jardim da Água, uma instalação site-specific que inaugura no dia 28 de junho.