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ARQUITETURA E DESIGN




01. Casa de Serralves (exterior), s/d [1930-1940]. Fotografia: © Fundação de Serralves, Porto.


02. Casa de Serralves (exterior), s/d [1930-1940]. Fotografia: © Fundação de Serralves, Porto.


03. Exposição “Casa de Serralves: O cliente como arquitectoâ€, Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Fotografia: Matilde Seabra.


04. Exposição “Casa de Serralves: O cliente como arquitectoâ€, Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Fotografia: Matilde Seabra.

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DOS FANTASMAS DE SERRALVES AO CLIENTE COMO ARQUITECTO

MATILDE SEABRA


14/09/2015 

 

 

O projecto da Casa de Serralves (ou a Casa Cor-de-Rosa, como também é conhecida) foi durante muito tempo atribuído ao arquitecto José Marques da Silva. Aos documentos oficiais, como os que se podem encontrar no Arquivo Histórico Municipal do Porto, juntam-se cerca de 500 desenhos reunidos ao longo de um processo de quinze anos, onde terão participado cinco autores.

André Tavares escreveu o livro Os fantasmas de Serralves (Dafne, 2007) em torno deste projecto, como parte do seu doutoramento, desmontando e redireccionando o foco do autor na prática da arquitectura para o papel fundamental do "encomendador" nos desígnios do projecto. Passada quase uma década da sua publicação, André Tavares “abriu o livro” enquanto comissário da exposição Casa de Serralves. O cliente como arquitecto e ofereceu ao público a fruição dos documentos e desenhos que suportaram a sua investigação e que pertencem actualmente aos acervos da Fundação de Serralves e do Instituto Marques da Silva. A exposição esteve patente na Biblioteca do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves entre 22 de Maio e 6 de Setembro de 2015.


O arquitecto caça-fantasmas

André Tavares já nos habituou a dar títulos enigmáticos ao que escreve. Pela sua estranheza, estes títulos têm o condão de nos aguçar o apetite para decifrá-los com a sua leitura. É assim com a Arquitectura antituberculose, trocas e tráficos na construção terapêutica (Dafne, 2005), com a Novela Bufa do Ufanismo em Concreto (Dafne, 2009) ou com Os fantasmas de Serralves (Dafne, 2007). Espera-se que a leitura destes livros venha resolver equívocos que ficaram perdidos no tempo passado pelas obras de arquitectura e que os documentos apresentados venham cartografar os caminhos que levam do exercício da teoria à prática do desenho.

Desta trilogia, a investigação publicada em 2007 levou o autor a procurar documentos dispersos no Instituto Marques da Silva, no Arquivo Histórico Municipal do Porto e no Musée des Années 30, dados que permitiram escrever (ou reescrever) as “biografias científicas” de Jaques-Émile Rhulmann, de Jacques Gréber e de Charles Siclis, clarificando o seu papel no desenvolvimento do projecto de Serralves na década de 1930.

Não menos importante, clarifica-se a cumplicidade no desenho e na construção por parte de Carlos Alberto Cabral, 2º Conde de Vizela, e de José Marques da Silva. A construção desta propriedade terminou em 1944, três anos antes da sua morte. E dois dos outros autores, Rhulmann e Siclis, morreram durante o processo. O cliente, Carlos Alberto Cabral, viveu menos anos nesta casa do que aqueles que esperou para a construir. Com isto, adensou-se a neblina que turvou os factos acerca do projecto desta Casa e dos seus jardins.

Indagar o passado desta propriedade, que se tornou numa das fundações mais poderosas da cultura nacional e internacional, terá sido um verdadeiro trabalho de detective, vasculhando as "provas do crime". O livro Os fantasmas de Serralves permitiu assim arrumar ideias e, de facto, "espantar os fantasmas" e incertezas que pairavam sobre este edifício naqueles que estudam a obra de Marques da Silva, a arquitectura no movimento art-déco, ou também a história da sociedade e vida privada da Burguesia do século XX.


O cliente como arquitecto

Regressemos ao título da exposição: Casa de Serralves. O cliente como arquitecto. O subtítulo desperta num arquitecto os anticorpos destruidores da relação que se quer saudável com o cliente no exercício da prática em arquitectura: todo o arquitecto, em algum momento, estima ser o seu próprio cliente. Talvez nenhum deseje trabalhar numa situação em que seja o cliente a disputar o papel de arquitecto. Terá sido assim que Marques da Silva passou os últimos quinze anos da sua vida?

Na antecâmara da Biblioteca estava uma única fotografia. O visitante era obrigado a aproximar-se para a desvendar. Nesta imagem evidenciavam-se três estratos de uma realidade construída que o tempo e o reboco pintado a rosa trataram de uniformizar numa só peça de arquitectura: uma capela do século XIX, uma casa do início do século XX e uma fachada de paredes em granito com grandes vãos encimados com ferros, como que à espera de cofragem para uma platibanda em betão armado.

Percorrer os restantes documentos expostos na mezzanine da Biblioteca era como retirar sucessivas camadas de papel, guardando até ao final o embrulho cor-de-rosa. Descobriam-se duas casas de proprietários diferentes, uma ampliação projectada por Marques da Silva que acabou por ser demolida sem que nunca ninguém lá tivesse vivido. As suas fundações viriam a ser o esboço para o projecto do arquitecto Siclis, tal como nos chegou até ao presente. Terão servido como uma arqueologia daquele breve instante.

Dispostas em vitrinas paralelas estava recontada uma história que só se percebia, de facto, como uma sucessão de histórias paralelas. À esquerda, os desenhos de construção, organizados cronologicamente; à direita, o cliente, Carlos Alberto Cabral. Compreendem-se os territórios culturais e geográficos onde se movimentava pelas suas fotografias de viagem, catálogos de exposições e troca de correspondência (escrita e desenhada) com os projectistas parisienses. Não foi indiferente, neste episódio, a construção de uma vasta propriedade que, em contracorrente, se fez pela junção de terrenos e demolição de construções do passado.

O “pequeno” universo que o 2º Conde de Vizela construiu para si é feito de peças singulares e diversas: a Casa, uma garagem, um jardim francês, um bosque e uma quinta rural encerrados por um só muro, num lugar da cidade isolado, entre o rio o mar. Nas paredes laterais estavam grandes desenhos ilustrativos, a diferentes escalas (do tamanho da sua ambição), que antecedem por simulação a imagem da sua Casa, o conjunto das propriedades ou o detalhe à escala real do pavimento em soalho. Tudo faz parte de um mesmo projecto.

Entre os documentos de época que predominavam na exposição, destacam-se duas maquetes à escala 1:100, feitas especialmente para esta ocasião, encontrando-se em confronto para sintetizar, como num jogo justamente apelidado de “descubra as diferenças”, o que poderia ter sido, e naquilo em que se tornou, a Casa de Serralves. As maquetes foram preciosas para o visitante menos treinado em ler desenhos de plantas e alçados, ou sem a disponibilidade de decifrar a correspondência (parte manuscrita) em francês.

Na parede do fundo, por trás das maquetes, expôs-se uma selecção das fotografias tiradas por Domingos Alvão em 1940 nas quais a Casa é retratada na sua forma acabada e mobilada, como testemunhos de uma enorme realização que lembram os catálogos das exposições internacionais de Paris. Mais um momento intrigante. Terá Carlos Alberto Cabral encomendado o álbum em jeito de despedida?

Como em outras exposições que aqui acontecem, esta requeria um tempo de leitura demorado, apropriado ao espaço da Biblioteca do Museu de Arte Contemporânea. Só assim se desvendariam as diferenças entre desenhos que compõem uma série de alternativas para um alçado, para uma torre da capela ou para uma escadaria.

Sem Marques da Silva, talvez a Casa de Serralves nunca fosse construída. Só ele conhecia bem os Condes de Vizela e os seus gostos cosmopolitas pela arquitectura industrial e urbana. Marques da Silva seria o único arquitecto a saber desmontar os pedidos de Carlos Alberto Cabral aos vários interlocutores de Paris para depois articular as várias soluções desenhadas. A maturidade da sua obra dava-lhe o saber construtivo que permitiu erguer um edifício moderno, ímpar no seu contexto cultural e geográfico. Por sua vez, nesta altura, a sua obra absorveu influências do estilo art-déco que se podem encontrar no Mercado Municipal e no Santuário da Penha em Guimarães.

Estando instalada numa biblioteca, esta exposição podia ser complementada pela leitura dos livros arrumados nas estantes do piso inferior onde vivem os fantasmas de uma história então incompleta. Estas publicações, levadas a cabo pelo historiador António Cardoso ou pela Fundação de Serralves para diferentes ocasiões e para diferentes tipos de leitores, são documentos importantes para o visitante mais curioso. Entre elas: O Arquitecto José Marques da Silva e a Arquitectura no Norte do País na primeira metade do século XX; Actas do Congresso Jacques Gréber, Urbanista e Arquitecto de Jardins; Retrato de uma época; Serralves 1940.


“Quantas mãos para (costurar) uma casa?”

É possível ler-se o livro Os fantasmas de Serralves sem nunca se ter visitado a Casa. No entanto, com a particularidade da exposição se encontrar à distância de um pequeno passeio, esta visita é a sua natural e desejável extensão. Esta será a melhor forma de entender tantas incoerências que, a todo custo e em tanto tempo, fizeram da Casa de Serralves um exemplo acabado e característico da burguesia industrial do Norte da época.

Esta casa, na sua tridimensionalidade, tem um direito e um avesso, no bom sentido da linguagem têxtil. Quem a vestiu foi o elegante Carlos Alberto Cabral. Os moldes foram desenhados por Marques da Silva para um corpo em mudança e ansioso de modernidade. Esta peça de haute couture é assinada por Siclis, um autor promissor mas “desaparecido em combate”, responsável pela importação da cor rosa-velho que fazia furor em Paris. A façade rideau permite ver o forro rematado por um pesponto de cor bege que não é muito característico de Rhulmann. Já a escolha das aplicações em ferro e cobre no portão de Edgar Brandt ou em grandes espelhos fazem parte do seu estilo. Escondido nos bolsos secretos desta toilette, Porteneuve projectou, depois da morte do seu tio Rhulmann, as salas-de-banho com preciosos blocos de mármore rosa ou lioz.


Quando a Fundação foi morar na Casa

A história da Fundação de Serralves é inovadora a vários níveis. A Casa, adquirida vazia, não se transformou numa casa-museu repleta de mobiliário art-déco e, desde a sua abertura ao público nos anos 1980, a programação em arte contemporânea habitou e gerou obras de artistas que tiveram de partir de pressupostos como sociedade/vida privada, comunidade/habitação. São disso exemplo as obras feitas especialmente para este espaço: Boots de Tacita Dean, 40cm higher - Squatters de Massimo Bartolino ou Walls to the People de João Paulo Feliciano. A exposição Salon Marocain de Yto Barrada, actualmente patente até 20 de Setembro, quer retomar os diálogos de artistas com a Casa, que nos tempos recentes foi diminuta.

Num futuro próximo, a Fundação de Serralves tem uma nova missão: a de coordenar, de forma articulada com outras instituições, os arquivos do arquitecto Álvaro Siza e do cineasta Manoel de Oliveira no edifício anexo da Garagem. A exposição Casa de Serralves. O cliente como arquitecto apresenta parte dos documentos em acervo na colecção de Serralves. Existirá talvez mais documentação dispersa sobre a história de Carlos Alberto Cabral e dos projectos que encomendou para outras casas e para as suas fábricas. Valerá com certeza a pena contribuir para uma definição mais positiva do que foi o movimento art-déco, com forte influência em muitos arquitectos do Porto, e reunir mais desenhos de Jacques Gréber, sabendo que foi professor de Robert Auzelle, o autor do Plano da Cidade do Porto em 1962. No âmbito da performance e das artes visuais contemporâneas, será igualmente importante reunir e retomar o que se programou e se concebeu de acordo com as especificidades da Casa.

O sucesso deste centro de documentação não passará somente por ser o lugar congregador de investigadores, mas igualmente por permitir expor segundo o pensamento crítico de um curador ou através da revisitação e intervenção de um artista.

 

 

Matilde Seabra
(Porto, 1980) Arquitecta licenciada pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (2005). Fundou atelier de arquitectura com Ivo Poças Martins em 2007 (www.pocasmartins-seabra.com). Colabora, desde 2000, nos serviços educativos de diversas instituições culturais, como a Fundação de Serralves, o Centro Internacional das Artes José de Guimarães ou o Museu do Douro. Pertence ao colectivo Friendly Fire desde 2010 (www.friendlyfire.info). Fundou a Talkie-Walkie, empresa de Turismo Cultural e Arquitectónico, com Ana Neto Vieira em 2013 (www.talkie-walkie.eu).
 


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Bibliografia


— Andrade, S. C., Serralves: 20 anos e outras histórias, Porto: Fundação de Serralves, 2009.
— Andresen, T., Sá, M. F. & Almeida, J. (coord.), Jacques Gréber, Urbanista e Arquitecto de Jardins, Porto: Fundação de Serralves, 2011.
— Cardoso, A. (coord.), Casa de Serralves: Retrato de uma Época, Porto: Casa de Serralves e Secretaria de Estado da Cultura, 1988.
— Diniz, V. B., Siza, T. & Taborda, C., Serralves 1940 (cat. exp.), Porto: Fundação de Serralves, 2004.
— Tavares, A., Os fantasmas de Serralves, Porto: Dafne Editora, 2007.