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A CASA DA PORTA DO MAR
SÉRGIO FAZENDA RODRIGUES
Casa na Atalhada, São Miguel, Açores
Arq. Pedro MaurÃcio Borges
Situada num povoado de ocupação predominantemente linear que bordeja o mar e que dele, assim como da terra, retira a sua subsistência, a casa da Atalhada fica numa parcela de limite, no lado sul da Ilha de São Miguel, terminando directamente sobre a costa. [fig.01] Este é um terreno análogo àquele que referencia as memórias açorianas e os trabalhos da artista plástica Ana Vieira onde, por várias vezes, nos descreve uma sucessão de compartimentos exteriores que desembocam numa única porta, por onde se acede à água — “Absorvi esse espaço, a ambiguidade de ser simultaneamente aberto e fechado, e ainda o facto de haver passagens, de implicar tempo, cadências e percursos. A última porta dava para o mar.†[1] Se é essa relação especial de entrosamento com o meio que marca a memória de Ana Vieira, é essa mesma relação que, num encadeamento espacial, une esta casa e o local.
ConstruÃda com base numa afincada ginástica orçamental e recorrendo ao conhecimento aprofundado dos construtores, métodos e materiais da região, esta casa é fruto de uma atenção dirigida à cultura local e produto de um acompanhamento directo e constante. Assim, da proposta inicial à fase de obra, este foi um processo que se foi apurando com o envolvimento, a convicção e a vontade do seu autor em construir uma casa para a sua famÃlia, tendo o mesmo participado na própria edificação. À semelhança das casas vizinhas e aproveitando uma construção pré-existente, a abordagem ao projecto passou por consolidar a frente de rua, por onde se faz o acesso principal, mantendo o perfil constante e homogéneo do arruamento, onde a intervenção surge de forma anónima. [fig.02]
Ao aceder, somos encaminhados a uma escada que nos leva ao centro da casa e a um gradual processo de abertura aos restantes compartimentos, ao terreno e à paisagem. Trata-se assim de graduar uma transição entre algo escuro, contido, anónimo e linear, para algo luminoso, amplo, marcante e quase caleidoscópico. O graduar desta transição começa de forma subtil, com a supressão dos “espelhos†(os troços verticais) dos degraus, permitindo filtrar a transparência e reforçar a transversalidade dos vários nÃveis, introduzindo alguma claridade ao escuro piso térreo. [fig.03]
À medida que vamos subindo e a luz natural aumenta, desembocamos então num espaço que, simultaneamente, funciona como cozinha, sala, hall e zona de distribuição. [fig.04] É neste espaço, de contornos vagos e carácter vincado que se encadeiam as restantes cotas, que nos apercebemos da elasticidade do programa e da eficácia do seu comportamento. Isto é, sendo um recinto de forma irregular, que em termos programáticos não é claramente nomeável, este é contudo um local que detém a capacidade de albergar várias funções, funcionando como centro e arranque do desenvolvimento da restante casa e espaço exterior. E é daÃ, desse lugar do núcleo familiar que desembocamos, naturalmente, no primeiro terraço ou pátio, na sala de estar ligeiramente elevada, aberta ao segundo terraço, e que ainda acedemos a dois quartos, a um conjunto de espaços de apoio (instalação sanitária e lavandaria) e a um outro piso superior. [fig.05-07]
Nesse outro piso superior surge um espaço de trabalho que se abre sobre a paisagem, um quarto, uma outra instalação sanitária e um compartimento que funciona como extensão da sala do nÃvel intermédio e que com ela comunica através do recorte de um óculo de invocação tatiana. [2] Na verdade, se, nas palavras do autor, este óculo nasce da dimensão daqueles que reconhecemos em Mon Oncle, é na alteração do seu diâmetro que se cria uma passagem, permitindo alterar a proporção da sala e reforçar a profundidade da perspectiva, aproximando o fundo da casa ao terraço exterior e à paisagem. [fig.08] E tal como o anteriormente referido, este é um dos espaços mais marcantes da casa, precisamente pela igual ambiguidade do seu programa e pela igual elasticidade do seu uso. Será assim um outro ambiente em ligação com a sala, onde se pode estudar, brincar, arrumar utensÃlios, ou simplesmente contemplar o jardim. [fig.09]
Curiosamente, o tema da janela de Jacques Tati e do extrapolar da sua dimensão, enquanto óculo e passagem, volta a repetir-se numa das instalações sanitárias onde, numa dimensão mais pequena, se encara agora como um conjunto de focos estrategicamente posicionados e apontados a partes marcantes da paisagem próxima e distante. Ainda em relação a estes locais, é curioso notar que o grau de liberdade que surge no uso da cor, assumidamente escassa ou quase ausente no resto da construção, é aà deliberadamente acentuada. É assim notório que os lugares de maior individualidade, aqueles onde estamos tendencialmente sozinhos, se associam a uma expressividade que tende a afastar qualquer espécie de isolamento. Poder-se-á então dizer que, a par da gestão equilibrada entre o raciocÃnio e a intuição, há um igual grau de experimentação e divertimento, que é perceptÃvel no projecto e que é presente e ganha corpo na vivência da casa.
Num conjunto coeso e homogéneo, destaca-se ainda um outro local, no ponto mais alto da construção, equilibrando o diálogo com a volumetria da chaminé da cozinha e, desde cedo, atenuando a preponderância da empena do lote vizinho. Este compartimento, que é acessÃvel apenas por uma escada metálica (inicialmente amovÃvel) invoca os mirantes de tradição local, assumindo-se como um espaço de retiro e observação, onde a marcação dos vãos, apontados ao topo da Montanha do Fogo e ao oceano, reforçam uma possÃvel especificidade. Especificidade porque se trata inequivocamente de um espaço de natureza contemplativa, embora, tal como os demais, passÃvel de diferentes usos. Assim, é este o local onde mais nos podemos afastar, sem nos isolarmos, por ainda pressentir a contÃnua respiração da casa.
É notável perceber que a arquitectura funciona aqui, em parte, como um dispositivo que fomenta um habitar muito próprio, onde a ocupação é espontânea, contÃnua e fluida, densificando a casa, ligando-a aos jardins, mas também ao mar, onde a intervenção verdadeiramente termina. Em paralelo ao mundo próprio que constrói, a casa surge assim como algo que nos potencia a experiência de um local, operando sobre a cultura em que se enraÃza e sobre uma dada maneira de a viver. Do permanente cheiro e barulho das ondas, do odor das plantas que forram as rochas e ocupam os terraços, ao reflexo da luz dramatizada do clima insular (onde chove constantemente e as nuvens são escuras), são estes os elementos que, directa ou indirectamente, de forma intensa, nos acompanham ao longo do espaço. É disso de que nos apercebemos quando, por exemplo, nos sentamos à mesa de refeições e retemos o odor dos cozinhados, mas também o perfume das flores e o cheiro do mar, ou o barulho das ondas, que entra por uma chaminé quase escultórica e pelo grande envidraçado que dá para o pátio semiafundado. [fig.10]
Uma outra particularidade significativa, reforçando o que já anteriormente foi dito, é a capacidade de manter, simultaneamente, a privacidade e a comunhão de cada indivÃduo. Permitindo a ocupação dos múltiplos nÃveis e a hipótese de neles nos podermos apartar, mas também, a capacidade de entre eles interagir, somos afastados pela distância, mas ligados pela percepção (a forma como vemos e ouvimos os outros). E esta é uma condição que se garante pela já dita flexibilidade do programa, mas também pelo criterioso encaminhamento do olhar. [fig.11] Olhar perceptÃvel nas intencionais relações visuais, no cuidado desenho e dimensionamento dos vãos (molduras), e na já referida posição estratégica que os mesmos assumem. E é assim que, por exemplo, uma simples janela na proximidade das escadas nos permite uma visão diagonal (não esforçada), que encontra quem está no pátio, na zona de refeições, ou no escritório do nÃvel superior.
De alguma forma, é essa natureza que induz a informalidade espontânea que atravessa o filme A Minha Casa nos Açores, de Alice Albergaria, produzida pela associação La Mipa — http://www.lamipa.com/a-minha-casa-nos-acores/ —, mostrando-nos a casa mas, sobretudo, uma forma de nela viver. A maneira como no filme a arquitectura se relega, naturalmente, para uma espécie de segundo plano, ou suporte de um quotidiano onde uma criança se interpõe à câmara, captura de forma simples e perspicaz aquilo que é a vivência da casa, ou, por outras palavras, aquilo que a arquitectura potencia e tem como mira. Diria assim que à intencionalidade das imagens, focando os alinhamentos ou um percurso que se desenvolve deliberadamente da rua para o mar, percorrendo a totalidade do lote, se sobrepõe a vivência de um dia comum e a forma de ocupar aquele lugar.
Na verdade, esta casa de pretensões muito simples — ser uma casa de famÃlia — revela simultaneamente uma complexidade espacial que a torna única, sediando-a na articulação de um espaço evolutivo e comunicante. A questão de fundo é que tudo isto se processa de uma forma natural, despretensiosa, adaptada ao terreno, ao local (geográfico, paisagÃstico e cultural) e à natureza solta dos seus habitantes. O encanto desta casa surge então da forma como esta complementaridade — entre algo que se ocupa de uma forma espontânea e algo que se apoia na sensÃvel, inteligente e complexa relação espacial —, se articula, quer pela generosidade programática, quer pela atenção à percepção do indivÃduo. E é essa capacidade de surpresa que a casa afirma, ao ser simultaneamente banal e marcadamente elaborada. É interessante perceber que uma e outra coisa, o apelo ao despretensiosismo do quotidiano e à vontade de uma espacialidade ambiciosa, estão intimamente ligadas, percebendo-se o mesmo na continuidade entre a casa e o espaço exterior. [fig.12]
Tal como nas memórias que Ana Vieira invoca, o espaço exterior encadeia uma sucessão de compartimentos delimitados por muros de pedra seca (a pedra vulcânica dos Açores sobreposta), abertos ao céu. A diferença notória é que a recuperação destes recintos, antigos curraletes de vinha e actividade agrÃcola, que medeiam a casa e a costa, são aqui trabalhados em função da construção, da vista e da paisagem, estabelecendo um diálogo entre as variações do terreno, os desnÃveis da casa e a presença do mar. Assim, à semelhança dos terrenos contÃguos, o resto do lote, de configuração irregular e longilÃnea, dividido em vários troços descentrados (evitando o atravessamento do vento marÃtimo), promove o acesso directo ao mar e estabelece uma forte ligação com a escala do território. [fig.13]
A intervenção no exterior, aparentemente invisÃvel, é de um igual extremo cuidado e delicadeza (e me não refiro aqui a qualquer tipo de “sobriedade revisteiraâ€), limitando-se, neste caso, a corrigir e/ou sublinhar algumas particularidades do existente. Demarca-se a inserção de um tanque enterrado, a recuperação das vinhas e dos apoios agrÃcolas mas, sobretudo, a maneira como, etapa a etapa, se controla a vista sobre a paisagem. O olhar distante que a casa alcança vai gradualmente diminuindo à medida que percorremos o lote e atravessamos os vários compartimentos, até, por fim, chegarmos ao último, onde a vista é negada por se ter subido uma fiada de pedra ao muro existente. E é aÃ, através da estreita porta que se abre sobre a encosta e nos emoldura o oceano [fig.14] que, potenciando o reencontro com as ondas, o horizonte, e a própria insularidade, a paisagem se entrega de forma intensamente romântica, próxima ao imaginário de Casper David Friedrich. [fig.15]
Digo assim, em tom de conclusão, que é interessante perceber como a intervenção (a casa e o espaço exterior) vive num curioso e delicado registo de fluidez. Não se trata pois de um elaborado virtuosismo formal, isolado, elegante e fotogénico, qual Villa Arpel de Jacques Tati, mas sim de um dispositivo que, com um ar humilde e natural, estimula a familiaridade e o entrusamento. Não se trata de uma casa que se opõe à natureza da envolvente, mas de uma articulação contÃnua de novos espaços informais que com ela se conjuga, interliga, e lhe dá um outro significado. Não se trata de uma construção em si, mas de uma maneira muito especial de se relacionar com o meio e a cultura da região, de forma simultaneamente enraizada e contemporânea. Ou em outras palavras, não se trata apenas de uma casa, mas de um lar muito próprio, intensa e carinhosamente enraizado no local.
(O presente texto suporta-se no filme A Minha Casa nos Açores — http://www.lamipa.com/a-minha-casa-nos-acores/ —, nas várias conversas mantidas com o autor e os moradores da casa, e na pontual vivência da mesma desde 2005.)
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Sérgio Fazenda Rodrigues
(Lisboa, 1973) Arquitecto, investigador e curador. Entre 2005-11, foi docente de Arquitectura na Universidade dos Açores/ ISCTE e, entre 2011-12, no Departamento de Arquitectura e Paisagem – Parq, da EUVG. Trabalhou com a imprensa açoriana (2007 e 2009) e foi Consultor Cultural do Governo dos Açores (2010–2012). Membro da secção portuguesa da Associação Internacional dos CrÃticos de Arte – AICA. Autor do livro de crónicas de arquitectura A Casa dos Sentidos (Uzina Books, 2013). Actualmente, está a concluir Doutoramento no IST.
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NOTAS
[1] Memória de Ana Vieira em torno da prática do seu trabalho – Catálogo da exposição Ana Vieira Muros de Abrigo/Shelter Walls. Fundação Calouste Gulbenkian - Centro de Arte Moderna / Presidência do Governo Regional dos Açores - D.R.A.C. - Museu Carlos Machado, Lisboa, 2011, ISBN 978-972-635-219-8, p.23.
[2] Referência ao filme Mon Oncle (Jacques Tati, 1958), satirizando o modernismo e a tecnologia celebrados numa lógica pequeno-burguesa.
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[o autor escreve de acordo com a antiga ortografia]