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ARQUITETURA E DESIGN




01. O almoço que reuniu à mesa os quatro arquitectos — Mariana, Diogo, Teresa e João — com José António Pinto e quatro dos seus utentes de Campanhã — Marta, Fernando, Nelinho e Constantino — que actualmente residem em soluções temporárias (e precárias) de habitação que se foram tornando permanentes. Fotografia: Dinis Sottomayor.


02. Quarto em hospedaria, habitado há onze anos. Aquela que deveria ser uma solução provisória transforma-se em condição permanente. Fotografia: Dinis Sottomayor.


03. Quarto em anexo no logradouro de uma hospedaria. Cerca de quatro metros quadrados de habitação, sem isolamento térmico ou ventilação. Ligação eléctrica ilegal. Fotografia: Dinis Sottomayor.

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ENTREVISTA A JOSÉ ANTÓNIO PINTO

MARIANA PESTANA E DIOGO AGUIAR


 

Esta entrevista a José António Pinto, também conhecido por Chalana, enquadra-se no contexto de um de seis projectos que integram a representação oficial portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza de 2014, comissariada pelo arquitecto Pedro Campos Costa.

O projecto (concebido e realizado por Mariana Pestana e pelo colectivo LIKEarchitects) incorporou a activação de um edifício devoluto no centro da cidade com o objectivo de reflectir sobre o sintoma da transitoriedade, tendo indagado como poderá a cidade contemporânea, em que fluem estes trânsitos habitacionais, oferecer novos léxicos de hospitalidade. O trabalho foi desenvolvido em colaboração com a Câmara Municipal do Porto, tendo contado com o apoio dos pelouros da Cultura, do Urbanismo, da Habitação e da Acção Social, bem como da Domus Social.

Durante trinta dias, habitámos uma casa no centro do Porto: número 66-68 da Avenida dos Aliados. Ao invés de observar à distância e de teorizar sobre as formas como a cidade pode acolher habitantes em trânsito, escolhemos tornarmo-nos nós próprios habitantes transitórios da cidade: experimentar a cidade a partir de dentro, encenando e incorporando a própria condição a ser investigada.

Constatámos que as formas de habitar têm vindo a alterar-se ao longo dos anos em Portugal, em parte devido às transformações sociológicas das famílias, mas também à flexibilidade crescente das condições de trabalho e ao ‘encurtamento’ de distâncias. Estudantes, investigadores e emigrantes são apenas alguns exemplos de um padrão crescente de habitantes temporários da cidade. E no entanto, face a esta transformação radical dos modos de habitar, as políticas e tipologias de habitação têm permanecido relativamente inactivas e inertes, perpetuando um sistema que talvez já não se ajuste à sociedade contemporânea.

Ao longo dos trinta dias, fizemos um programa intensivo de eventos abertos ao público em que convidámos residentes, proprietários, arquitectos, políticos, sociólogos e técnicos de várias áreas disciplinares, para debaterem connosco esta problemática. Entre eles, destacámos a importante contribuição de José António Pinto.

 

Porto, Julho de 2014
Mariana Pestana e Diogo Aguiar


::::

 

Entrevista a José António Pinto


MP: O seu trabalho na freguesia de Campanhã, no Porto, permite-lhe conhecer realidades que por vezes se escondem, por uma razão ou por outra, daquilo que é a percepção generalizada da nossa sociedade e da cidade em que vivemos. Nessas realidades, que são de certa forma invisíveis, a habitação ainda não é um direito. Porquê?

JAP: A habitação ainda não é um direito porque a consciencialização, a informação e o esclarecimento ainda não estão presentes nas pessoas que deviam beneficiar do direito à habitação. Os meus utentes, que estão instalados em quartos de pensão de forma muito precária, sem conforto, comodidade ou segurança, em sítios muito mal vistos, com má fama, com uma reputação péssima, não têm consciência de que a habitação é um direito. Porque se eles tivessem essa consciência, lutariam, organizar-se-iam, fariam pressão, tentariam influenciar os políticos para que esse direito fosse exercido. Essa é a primeira questão. As pessoas que precisam de habitação não são politizadas. Acham que a habitação que lhes é disponibilizada é um favor, é caridade. Acham que quando acontece é por sorte. E que quando não acontece é porque Deus não quer que eles tenham essa sorte.

A segunda questão tem que ver com os políticos, que exercem cargos de poder, e que poderiam decidir a favor da vida destas pessoas, optarem por ficar subjugados a interesses que são económicos, nomeadamente a questão da especulação imobiliária. Nas questões do alojamento e da habitação, é exactamente em função desses interesses que governam. Se, de facto, é um sítio privilegiado, com uma grande valorização territorial, evidentemente não será destinado para pessoas socialmente desfavorecidas. Será sempre para os grandes grupos económicos fazerem negócio e lucro.

Por exemplo, na cidade do Porto, este fenómeno está a surgir no bairro Pinheiro Torres, junto ao Aleixo, que tem umas vistas espantosas e soberbas para o rio. O senhor vereador, Dr. Manuel Pizarro, vai fazer um pedido ao Laboratório Nacional de Engenharia Civil para perceber se há condições ou não de as pessoas se manterem lá. Se tiver condições, ok. Se não tiver, qual é o objectivo? Demolir para depois os grandes grupos económicos construírem naquela zona, à semelhança do que está a acontecer no Aleixo, com apartamentos de alto luxo e condomínios fechados. E estas populações são atiradas para os bairros problemáticos, como o do Cerco do Porto, ou para guetos como o de São João de Deus, que começam a surgir novamente na cidade.

Diria que estas são as duas grandes questões: por um lado, os utentes não terem consciência dos seus direitos; e por outro, os políticos não serem sérios, honestos e transparentes. Prometem uma coisa no período eleitoral e depois, quando começam a governar a cidade, ficam automaticamente subjugados a esses interesses económicos. Nas questões do território e do alojamento tal é fatal porque, de facto, é muito dinheiro que está em causa. E, quando há muito dinheiro, os políticos cedem. Dignificar, honrar os compromissos eleitorais [é fundamental] ou então escorregam por aí baixo. E é isso que temos visto. O sítio onde se deveria construir uma creche destina-se a uma multinacional. No sítio onde deveria ser uma boca de metro constrói-se um grande supermercado.


MP: Uma vez que é um interlocutor privilegiado, uma pessoa que trabalha no terreno, e que conhece muito bem a realidade daquilo que é viver no limiar da pobreza, quais são hoje as opções actualmente disponíveis para habitação e quem as fornece?

JAP: Existem dois equipamentos sociais públicos na cidade do Porto: a Associação dos Albergues Nocturnos do Porto, que é uma IPSS, e o abrigo da AMI, que é também de uma IPSS. E agora a Santa Casa da Misericórdia também criou um equipamento. Numa perspectiva de emergência social, se acontecer uma emergência, uma tragédia, temos aqui algumas camas disponíveis. De facto, é um equipamento. Mas não é um equipamento cujo funcionamento, a filosofia, ou a forma como está apetrechado, corresponda ao modelo que nós defendíamos. O modelo que defendíamos era que [esses equipamentos] fossem uma situação transitória: que pudessem capacitar as pessoas mas nunca as estigmatizando. Deveria ser uma situação transitória, de dois a três meses, em que equipas técnicas multidisciplinares trabalhariam com os utentes no sentido de criarem emancipação, autonomia, preparando os utentes para saírem dali, reconstruírem a sua vida e iniciarem um processo de ressocialização, independente e autónomo. O que é que nós temos percebido? Que as pessoas chegam lá e permanecem nove, dez, onze anos consecutivos. O que é muito mau.

O permanecer é efectivamente o estigma, o rótulo, a imagem que está associada a esses equipamentos. O funcionamento é péssimo, a alimentação é péssima, as condições de conforto são péssimas, as equipas técnicas não funcionam. Mas, mais grave do que isso, é de facto dizer que, se estás num albergue, se estás no abrigo da AMI, se estás num equipamento da Santa da Casa da Misericórdia, é sinal que fracassaste, é sinal que não prestas, é sinal que a culpa é tua, que és um desgraçado, um falhado, que não vales nada, que vais morrer ali, que não prestas mesmo. E as pessoas interiorizam esse sentimento, essa percepção. E a partir daí é muito difícil lutarem para mudarem a sua vida, porque acreditam que a culpa da sua situação é delas. Isto, de facto, é muito doloroso. Depois, quando nós as contactamos, elas têm vergonha de dizerem onde vivem, têm muita vergonha de dizerem que a única saída é de facto aquela. E dizem: Quando é que a minha vida vai mudar? Não, a minha vida não vai mudar nunca. Se eu vivo num albergue, se eu vivo num abrigo da AMI, se estou no equipamento da Santa Casa — até lhe chamam hotel social, e não tem nada de hotel —, a minha vida nunca vai mudar.

Depois também existe a questão da família, que é estruturante. Restabelecer os laços que foram estilhaçados por causa do seu percurso, muitos deles marcados pelas drogas, muitos deles pela dependência do álcool, muito deles por terem estado detidos. E um equipamento social não permite reconstruir isso. Os meus utentes querem reconstituir a família, ter um espaço onde possam viver, conviver, conhecer pessoas para serem olhados de outra forma. Porque estas pessoas são sempre olhadas de uma forma muito sectária, muito discriminada. Se vão a entrevistas de emprego e lhes perguntam: Onde é que vive? Quando respondem: Vivo no albergue..., perdem logo a oportunidade.

Muitos acabam por desistir de procurar emprego, de lutar e de mudar a vida. Só o facto de estarem ali, de permanecerem naqueles espaços, corta-lhes as pernas, como eles dizem: Não estou numa cadeira de rodas, mas é como se estivesse. Perdi o ânimo, perdi a motivação, perdi o brilho no olhos, perdi o entusiasmo de viver. Pronto, deixe-me estar aqui, não presto, sou lixo. Fracassei. Olhe onde vivo. Se precisar de guardar alguma coisa no frigorífico do quarto, não tenho como. Se precisar de trazer aqui um amigo, tenho vergonha. Se precisar de trazer aqui uma amiga, não posso, porque não me permitem, e é um sofrimento muito grande.

A expectativa que temos é que a própria Câmara Municipal possa ter algum tipo de atitude. Precisamos de encontrar algum tipo de saída para estas pessoas. Reabilitando edifícios que pertencem à Câmara, fornecendo mais habitação social para estas pessoas. No que diz respeito à intervenção do Estado, logicamente que se levanta a questão da austeridade, da troika e da despesa pública: sempre que eu estou a proteger uma pessoa, isso é encarado como uma despesa pública. E, portanto, está completamente fora de questão.

Relativamente aos sem-abrigo, a própria Comissão Europeia dá orientações a Portugal: Tem aqui algum dinheiro para combater este fenómeno que é cada vez mais preocupante. E os governos locais implementam uma estratégia de proibição e de interdição de sítios para os sem-abrigo permanecerem. E isto é que é doloroso. Em vez de estarem a discutir formas de libertar essas pessoas da rua, estão a proibi-las de estar na rua. O que é uma coisa assustadora. Isto significa um retrocesso civilizacional.


MP: Tivemos cá em casa, na Avenida dos Aliados, quatro convidados seus, entre seus utentes e ex-utentes. Pode descrever-nos em que condições é que estas pessoas vivem na cidade do Porto? E qual é a entidade que lhes presta esse apoio? Como é que eles pagam a renda?

JAP: São quatro utentes diferentes, mas que têm exactamente esta característica comum, a de estarem instalados em alojamentos temporários. Temporários, provisórios, quartos de pensões que a Segurança Social subsidia. Quartos nas chamadas pensões manhosas... manhosas porque são utilizadas pela prostituição durante o dia, porque têm o colchão encharcado de urina, porque não mudam a roupa de cama, porque não têm uma casa de banho com água quente, ou porque é utilizada por quase todos os utentes, sem um mínimo de higiene. A mim custa-me, honestamente, descrever as condições em que esses utentes estão instalados. A forma mais correcta de explicar e descrever essas condições de alojamento é dizer que, quando sai a resposta da Segurança Social, alguns utentes optam por dormir na rua, porque dizem: Eu tenho mais conforto, tenho mais dignidade, tenho mais segurança a viver na rua, dependendo dos sítios, do que ir propriamente vivendo nessas pensões. O que é uma coisa horrível.

Não são todas iguais. Umas têm mais qualidade do que outras, mas a grande maioria são péssimas. Agora, a Segurança Social exige que o próprio utente, a receber 178 euros de Rendimento Social de Inserção [RSI], possa ele próprio dispor de 100 euros para comparticipar esse quarto. Ou seja, se antes os beneficiários do RSI ficariam com 178 euros para sobreviver, agora, a orientação que a Segurança Social tem é dizer: Se estão a receber 178 euros, vão fazer o favor de retirar desse valor 100 para pagar o quarto. Se o quarto custar até 200 nós pagamos o restante. Mais não podemos pagar. É um belíssimo negócio para as pensões. A maioria das pensões são frequentadas durante o dia por prostitutas que ocupam os quartos dos utentes. Se não fosse a Segurança Social enviar para lá algum dinheiro, já teriam fechado. Não há qualquer tipo de fiscalização, não há qualquer tipo de acompanhamento. Eu tenho o hábito de visitar os meus utentes e de os acompanhar. E quando os visitamos, eles dizem-me: Pois é, Dr. Pinto, se eu sair daqui, vou para onde? Qual é a alternativa que eu tenho?

A Câmara Municipal do Porto, anteriormente, não tinha critério. A partir de agora sim, porque houve eleições e o novo executivo municipal tem outra sensibilidade para estas tipo de questões. Mas posso dizer que no tempo do Dr. Rui Rio, em que a vereadora do pelouro da Habitação era a Dra. Matilde Alves, um utente instalado num quarto de pensão não era prioritário. Agora existe uma nova sensibilidade. Por exemplo, o Nelinho já beneficia deste novo executivo e recebeu uma carta a dizer que tem casa. Mas o que vai acontecer é que vai disparar o número de pedidos, e o senhor vereador, independentemente de ter vontade política, não vai ter casa. É preciso construir mais, reabilitar mais, dar apoio às cooperativas de habitação. É preciso estabelecer parcerias com as empresas de imobiliário para encontrar esta resposta.

O problema é que este tema não é uma prioridade para a cidade do Porto. Esta gente não tem sindicato, esta gente não tem partido, esta gente não tem movimento. Não há nenhum estrondo, esta gente não se organiza. Portanto, não há problema nenhum. É um sofrimento invisível e que eleitoralmente não tem muito peso porque os visados nem sequer vão votar. Muitos deles nem têm documentos pessoais, nem estão recenseados. Como tal, não decidem nada politicamente. Por isso, não vamos cuidar deles politicamente. Mas são pessoas, não são mercadoria. Têm sentimentos, têm dignidade, têm sonhos, projectos. E mereciam ver outra atitude por parte dos políticos.

Agora, eu quero perceber quanto tempo vai demorar desde de que o Nelinho recebeu a carta até ao dia em que ele vai ser realojado. Depois, quero perceber em que sítio o Nelinho vai ser realojado. Ele disse aqui na mesa, quando estávamos a almoçar um peixinho muito bom: Calma Dr. Pinto, isso seria pôr uma botija de gás à beira de uma fogueira e o senhor sabe porquê. Se eu andei tantos anos a consumir droga, se eu estive tantos anos preso, não me mande, por favor, para o bairro do Cerco do Porto. Portanto, quero saber em que bairro é que ele vai ser realojado. Porque parece que está tudo bem. E eles até enviam uma carta ao utente a dizer: Você, meu querido, parabéns, vai ter direito a uma casa!Uau, Dr. Pinto, que alegria tão grande. — Mas será só daqui a 5 anos. É que vem a colega e diz-me: Olhe, eu não tenho tipos 1. Depois de sair deste almoço, eu liguei à minha colega da Câmara para saber se era verdade ou não. E perguntei-lhe: Olhe, e o Natal? Ele já vai fazer o Natal, comer o bacalhau todo feliz, no Natal, com a família? — Não sei, Chalana, não há tipos 1 na cidade, há muito poucos. Portanto, vamos ter que esperar que morra uma velhinha? Para que sítio é que vai ser realojado? E que tipo de acompanhamento é que vai ter? Nada está pensado em termos de política social. Não existe na cidade esta preocupação.


MP: Gostaria de clarificar aqui uma questão que foi um aspecto que a nós nos pareceu interessante, relativamente ao preço dos quartos das hospedarias ser igual ou superior ao preço que é praticado no preço de arrendamento e partilha da casa. Por que razão os seus utentes não podem recorrer a este mercado?

JAP: A Segurança Social acha que as pensões são mais baratas. Este é o primeiro ponto. Depois, acham que os utentes não têm capacidade para gerir uma casa. Mas o problema mais grave de todos tem que ver com os proprietários que não os querem nas suas casas e que também não se querem sujeitar aos atrasos no pagamento das rendas, por parte da Seguranca Social, que se atrasa vários meses. Portanto, sempre que um utente me diz: Dr. Pinto, pelo preço da pensão existe uma casinha na Rua de Azevedo que se aluga a 200 euros. —, a primeira pergunta que o proprietário me faz é: Mas, Sr. Pinto, desculpe lá, quem é o utente? — Olhe, é fulano tal. – Desculpe lá, não o quero.

Quem aceita estas pessoas são só mesmo as pensões manhosas. Quando eu lá vou reivindicar as condições, quando eu vou lá protestar a forma como são tratados, dizem-me: Ó Dr. Pinto, você não tem de fazer isso, sabe porquê? Porque ninguém aceitaria esta chularia. E é verdade. Estas pessoas tiveram percursos de vida duros, estão fragilizadas, e precisavam de um acompanhamento técnico permanente. Uma tutela muito presente. Vale a pena trabalhar estas pessoas? Claro que sim. Vale a pena emancipa-las? Claro que sim. É possível? É. Agora, tem que haver investimento. O problema que se coloca aqui é este: porque é que nós temos o Nelinho há 12 anos num quarto? Porque é que nós temos o Nelinho a consumir drogas? Porque é que nós temos o Nelinho preso? Porque é que nós temos o Nelinho com o filho na comissão de protecção? Porquê? Porque não houve nenhum trabalho de acompanhamento para prevenir esse comportamento. E, portanto, quando não trabalhas a prevenção, depois tens de andar a apanhar os cacos quando tudo rebenta. O que é mais caro, e também mais doloroso.


MP: Esta situação das pensões interessa-nos porque, no fundo, forma uma economia paralela, uma economia quase invisível e que vive à custa destas situações. E, portanto, estas pensões acabam por quase desresponsabilizar o Estado. Parece não haver uma política de protecção, de assumir responsabilidades relativamente àquilo que é um elemento estruturante da humanidade, como costuma dizer, que é a casa, a habitação. Parece-lhe que esse seria o papel do Estado, esse papel de proteger, controlar, legislar e acompanhar estas situações?

JAP: Sem dúvida. Agora, a intervenção do Estado é mínima, cada vez mais reduzida, por causa daquela ideia de que, de facto, sempre que eu estou a ajudar pessoas, sempre que eu estou a proteger pessoas, sempre que estou a assumir e a assegurar direitos, estou a contribuir para a despesa pública. Quando estás a investir na educação estás a ter uma despesa? Não, estás a criar investimento, o que é muito importante. Mas em Portugal isto não é interpretado desta forma. Então, o que acontece? O Estado intervém minimamente, na perspectiva de garantir a coesão social. O Estado retira-se mas depois entra através da repressão, através dos polícias. Ou seja, eu posso não ter psiquiatras nos Centros de Atendimento a Toxicodependentes, porque não há dinheiro. Mas há dinheiro para a polícia.

Portanto, o Estado assegura o mínimo para que esta coesãozinha não estale. Agora, se de facto estas pessoas dissessem: Não, nós agora vamos fazer um boicote e vamos assaltar os supermercados. Todos os dias, um supermercado. E então, o que faria o Belmiro de Azevedo? Falaria logo com o Ministro da Solidariedade. E diria: Cuidado, porque desde que vocês retiraram o RSI, desde que vocês começaram a retirar os apoios sociais, não há dia em que um dos nossos supermercados não seja rebentado. E viria logo um programa chamado Programa Alimentar a Carenciados, um PAC para dizer calma, que a economia tem que funcionar. O problema é que estes utentes não fazem isto.

Eu estou ansioso por conseguir isto. O meu grande sonho é algum dia dizerem: O Chalana, no Porto, conseguiu reunir os utentes. Conseguiu politizá-los. — É uma espécie de movimento das favelas? — Não, é pior que isso. — E a Mariana até diz: Mas não é desta forma que se resolve este problema. E então, qual é a forma? Quem ouve esta gente? Quem defende esta gente? Quem protege esta gente? Quem acompanha esta gente a mudar de vida? Ninguém. Quem é que os ouve? Nós temos que nos indignar. Não tem outra forma, Mariana, não há outra ferramenta a não ser a indignação, honestamente.


MP: Apercebemo-nos, ao longo deste projecto, que não existe no Porto uma política de habitação de emergência. Pelo menos, ao nível autárquico, não existe. A habitação de emergência é deixada ao cuidado de instituições de caridade, a entidades privadas, como são as hospedarias. Parece que falta uma política pública de solução para esta situação. Concorda?

JAP: Concordo. Se a habitação é importante para a vida deles? Então não é? Em termos de imagem, em termos de ânimo, em termos de restruturação familiar, em termos de opinião da comunidade. Diz-me onde vives e dir-te-ei quem és. É estruturante. É muito importante a questão do tecto. Aliás, mesmo as pessoas que não estão em quartos de pensão, e que são meus utentes, falam da importância do alojamento: Dr. Pinto, o meu cunhado é picheleiro, e tem uma vida tão bonita. Devia ver a casa que ele construiu. O êxito, o sucesso, estão muito associados à casa. Não estou a falar só da questão da saúde. Estou a falar da questão do prestígio, da reputação, da imagem perante a comunidade.


MP: No fundo, a sua agilidade, e criatividade na maneira como lida com estes assuntos, muitas vezes contornando legalidades, modos de fazer convencionais, levam a resolver problemas que muita gente consideraria impossíveis de resolver. De que forma esta agilidade e criatividade pode ser expandida à cidade? Ou seja, em termos de modelos de habitação, que tipo de modelos acha que seria possível fazer na cidade?

JAP: Apesar de ter essa fama de dedicação e proximidade, de relação privilegiada com os utentes, o que é muito bom, eu fico muito frustrado porque é uma relação “à peça”. Já mudei a vida de muita gente, mas foi “à peça”. Os meus utentes, passado um tempo, procuram-me para ser padrinho dos filhos, para ir tocar aos casamentos deles... e isso emociona-me muito. Mas isto é “à peça”. Depois, o sumo é muito pouco, fico frustradíssimo. Logicamente, o que eu queria era outro modelo de desenvolvimento económico, era mais justiça na distribuição do rendimento, eram outras políticas sociais, era capacitar estas pessoas. Queria técnicos com outra consciência teórica, com outra sensibilidade social, com outra militância, queria instituições a funcionar melhor, queria outras políticas. E continuo sempre a tentar construir isso de forma colectiva. Quando o Nelinho tiver uma casa por causa da nossa insistência, queria que isto não fosse uma coisa “uau”, queria que fosse uma coisa normal. Então, se ele satisfaz todos os critérios, não é preciso andar ali a insistir. Agora, entre trabalhares “à peça” ou não fazeres nada...

Sei que, sem conhecimento, ando aqui às escuras. A questão da produção de conhecimento e da investigação é para mim fundamental. Quanto mais capacitado eu for a esse nível, mais eu vou ajudar os meus pobres. Não é ser sociólogo, sociologicamente escuteiro. Claro que é preciso ter bom coração, claro que é preciso ter energia, mas depois é preciso ter ciência: capacidade teórica para entender os problemas. E como eu sou tão apaixonado pela vida, queria que todos tivessem vida, e vida em abundância. E que não andem aqui uns, assim cheios de privilégios, de regalias e benefícios, e cheios de poder, que ocuparam um lugar na estrutura social... Agora, como é que eu resolvo isto? Tendo militância num partido revolucionário. Tento estudar como um cão para mudar a vida destas pessoas. E, sempre que consigo resolver uma coisa, fico cheio de pica. Mas é pouco.


DA: Penso que a questão anterior frisava uma coisa que nos interessa e que tem que ver com a sua criatividade e essa maneira inventiva de resolver os problemas, presente nos modelos que aplica no seu dia-a-dia de trabalho. Que solução antevê como possível para os problemas da habitação com que se depara todos os dias?

JAP: Isso é uma pergunta difícil. Eu acho que é um trabalho super demorado. Acho que o trabalho mais eficaz é exactamente o de criar relação. A partir do momento em que tu crias relação, consciencialização, informação, politização e organização dos utentes, isso sim, mais tarde vai dar fruto. Tu vais deitar esta semente à terra e, daqui a algum tempo, vais ter alguma coisa a crescer. Eu ainda acredito muito nisto: não ter medo do afecto no trabalho. O afecto é uma ferramenta, o afecto é extraordinário como a arte: é uma ferramenta de intervenção importantíssima. Portanto, eu acredito que depois de tu criares uma relação com as pessoas, tu vais ter condições para elas te ouvirem e te respeitarem.

Vamos então lutar. Vamos à Assembleia Municipal lutar por uma habitação social. Vamos então pedir à Câmara para ter outra política de habitação. Isso sim. Mas este trabalho vai ser um trabalho demorado. Porque, em termos concretos, seria necessário termos um fundo de maneio rápido, uma emergência social. Seria necessário fazer um diagnóstico sério e perguntarmos: Quem são as pessoas que estão nestes quartos? Quantas são? Que perfil têm? Vamos envolvê-las e fazer monitorização até, caso a caso. Um estudo sério sobre isto. Um por um. Mas a Segurança Social não me dá esta lista: O quê? Era o que faltava. Para tu armares um estrondo e ires já para os jornais e para as televisões? Não, não te dou nada. — Quanto é que a Segurança Social gasta por mês com esta rubrica do alojamento? — Não te digo. — Não me dizem, ponto.

Visitar os locais, caracterizar muito bem o local com fotografias, com vídeos, com entrevistas em profundidade aos utentes. Em que situação é que estão? Porque não estão todos iguais. Agora, há recursos? Sim, há recursos para dizermos à Remax: Quantos apartamentos vocês têm encalhados? Aos bancos: Quantas casas vocês hipotecaram? Venham cá falar connosco, eu sou o vereador da Habitação. — Banco Espírito Santo: Quantas casas vocês recolheram de casais que não conseguiram pagar? — Dêem-me essas casas, uma bolsa de alojamento digno. Queridos senhores das pensões, lamentamos, fechem. Vai aí uma inspecção bloquear a porta. — Porque é que foi fechada a pensão Ferreirinha? — Eh pá, não tinha condições. — Ou então: Se os senhores fizerem obras, tenho aqui um fundo, uma linha de crédito para pôr estas pensões um brinquinho. E eu destaco para lá equipas técnicas para acompanhar estes utentes na perspectiva de dizer: Dr. Pinto, o senhor vai trabalhar para a hospedaria onde está o Nelinho e daqui a dois anos eu quero esta gente emancipada daqui para fora. Daqui a dois anos, eu não quero nenhum dos que estão aqui. Vou ter outros. Você vai ter outros, mas não vai ter estes. Porque estes, entretanto, ou já estão a trabalhar, ou já casaram, ou já alugaram a própria casa, ou já tiveram habitação social da própria câmara.

 

 

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José António Pinto
(Porto, 1966) Assistente social, mestre em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Trabalha na freguesia de Campanhã, onde tem desenvolvido vários projectos de intervenção comunitária em contextos sociais desfavorecidos, nomeadamente na área da música, fotografia e cinema. É palhaço em contexto hospitalar e cronista do jornal Público e da revista Visão. Em 2013, recebeu na Assembleia da República a medalha de ouro comemorativa do 50.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em reconhecimento pelo seu trabalho no Porto. O galardoado afirmou na altura que deixaria a medalha no parlamento em troca de uma política social que não deixe de fora quem deixou de dar lucro.

 

Mariana Pestana
(Viseu, 1982) Arquitecta e curadora, licenciada pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Concluiu mestrado em Narrative Environments na Central Saint Martins College of Arts and Design, como bolseira da fundação Calouste Gulbenkian. Vive e trabalha em Londres, onde é co-fundadora do colectivo The Decorators, com o qual desenvolve projectos curatoriais e de intervenção no espaço público. Desenvolve doutoramento na Bartlett School of Architecture e é docente nas faculdades Chelsea College of Arts e Central Saint Martins. Foi curadora da exposição A Realidade e Outras Ficções, na Trienal de Arquitectura de Lisboa de 2013: Close, Closer.

 

Diogo Aguiar
(Porto, 1983) Arquitecto, licenciado pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto em 2008. Colaborou com os UNStudio em Amesterdão. É, desde 2010, co-fundador dos LIKEarchitects, colectivo sediado no Porto e internacionalmente reconhecido com os prémios International Space Design Award e Minsk International Biennale of Young Architects e as nomeações para o Detail Prize 2011 e os Prémis FAD 2013, entre outros. A título individual, é ainda co-autor do Eco-Resort Pedras Salgadas, construído em 2012, e premiado com o Archdaily Building of the Year 2012.


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[os autores escrevem de acordo com a antiga ortografia]