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Nunca, na história da humanidade, se partilhou tantas imagens como nos últimos 20 anos, motivado pelo uso massivo dos smartphones com câmaras fotográficas e de vídeo com cada vez maior definição, assim como pelo aparecimento das redes sociais virtuais que permitem e facilitam a partilha. Mas as redes sociais não existem sem pessoas e como tal nem todas as fotografias partilhadas contêm em si uma estética, uma história, uma narrativa, um conceito ou uma ideia profunda. A maioria das imagens partilhadas são vazias de conteúdo reflexivo, interessando mais partilhar os locais onde as pessoas se encontram ou o que estão a fazer e com quem - um dos maiores exemplos é a vulgarização do autorretrato - a selfie.

Ver-se a si mesmo, como que num gesto de homenagem a Narciso, está na moda. No texto que Miguel Von Hafe Pérez escreveu sobre a exposição, descreve-nos uma ida ao atelier do artista, com os turistas a fotografarem compulsivamente a rua dos Caldeireiros, entre selfies e outras efemérides que apanham tudo o que aparece pela frente. Pérez escreveu a partir das entranhas da cidade que rodeiam o trabalho do Mauro Cerqueira: a rua dos Caldeireiros, invadida pela nova esteticização da cidade-cenário, forçada pelo novo mercado turístico; ou as fachadas imaculadas que tentam esconder à força o andar arrastado dos junkies por entre vielas com fedor a mijo.

Entre 2008 e 2010 Mauro Cerqueira realizou um conjunto de trabalhos na zona das Cardosas, espaço demolido para dar lugar ao Hotel Intercontinental, forçando a descoberta de um cemitério carregado de ossadas. O artista, como um arqueólogo fingido e munido de um saco plástico, encarregou-se de guardar um conjunto de crânios e outros ossos, dando origem ao vídeo “Porto Morto” (2010), numa crítica ao “Porto Vivo”, nome dado pela Câmara Municipal à “requalificação” da cidade. Esta morte anunciada do Porto genuíno, dos seus negócios centenários e dos bairros típicos, deu origem a uma série de trabalhos que se prolongam até hoje.

A obra “Viagem dos Mortos” (2019) que Mauro nos apresenta na exposição “Desenganar” na Galeria Nuno Centeno, junta o mundo dos vivos e dos mortos. No chão vemos uma mala aberta que foi encontrada na rua pelo artista, prática que tem sido comum na cidade, motivada pelos constantes roubos aos turistas, na procura faminta de dinheiro para a próxima dose. No seu interior vemos uns pacotes brancos, embrulhados com película aderente, fazendo lembrar o tráfico de droga. Mas não. O que está embrulhado são ossos de um crânio despedaçado encontrado em 2010. Na parede, a obra “#casasnumbecomalcheiroso” (2018), reúne um conjunto de objetos - um cone de sinalização, umas minigarrafas de Martini e fotografias de vizinhos e amigos do artista residentes na Rua dos Caldeireiros, algumas delas já falecidas. Tudo isto colado num cartaz da imobiliária de luxo Sotheby's que o artista encontrou caído no chão da rua. Entre esta sala da galeria e a “sala dos espelhos”, encontramos quatro obras, das quais destaco duas: “#punckderretidovómito” (2019), com uns óculos de sol (que escondem), correntes (que prendem), cera (que arde e derrete) e pigmento sobre um espelho (que nos reflete) numa alusão aos ex-votos, entre a fé e a crença, entre a realidade e a alucinação opiácea, pela iluminação (ou assombração) constante da Capela de Nossa Senhora da Silva, na Rua dos Caldeireiros. O outro trabalho que destaco é “#cachimboemlínguacortada” (2019), com línguas em cera, objetos cortantes e um cachimbo de crack com sinais evidentes de uso. A dureza destes trabalhos serve de porta de entrada para a sala principal da galeria. Mas já lá vamos.

A exposição “Desenganar” fez-me pensar em vários artistas da história da arte. Andy Warhol, ao multiplicar exaustivamente o rosto de cada celebridade, ou dos ícones publicitários retirados do quotidiano consumista, introduziu-lhes uma aura que não existia na singularidade de cada imagem, anterior à sua reprodução que lhe garantiu um lugar no white cube. A estratégia deste artista Pop, ao criticar o consumo excessivo das sociedades, conquistou um lugar na história da arte ao utilizar os mecanismos de reprodutibilidade técnica que a própria sociedade do espetáculo se encarregou de criar. Contribuiu para a legitimação da transformação de uma imagem banal captada pelos media em obra de arte, interrogando a ideia, tal como Marcel Duchamp, de autoria através de uma simples assinatura. Fez a apologia da fama ou denunciou-a, expondo a relação ambivalente entre a fama e o mundo das celebridades - era um apologista do universo da fama e do sucesso, usando-o para os criticar. Este artista Pop antecipou a “tele-realidade”, profetizando que todos teriam direito aos seus "15 minutos de fama"; "A morte pode fazer de vocês estrelas", terá dito um dia Andy Warhol. Tal como Warhol, Mauro Cerqueira recolhe vários objetos do quotidiano portuense, transportando-os para a galeria, introduzindo-lhes uma carga simbólica que nos alerta para determinados problemas das cidades massificadas na contemporaneidade. Os seus trabalhos são como feridas abertas ao olhar do espetador, permitindo um olhar reflexivo a partir de objetos que a própria sociedade produz.

Muitas das “profecias” de Warhol foram reinventadas na obra escrita de Guy Debord “A Sociedade do Espectáculo” [1]. Debord, no seu texto “A Separação Consumada”, diz-nos que a produção anuncia-se como uma «imensa acumulação de espectáculos», onde estes se apresentam ao mesmo tempo que a própria sociedade, como parte dela e como «instrumento de unificação», que aparenta garantir uma sociedade equilibrada e igualitária nos gostos e nos interesses, ou seja, massificada. No fundo, o que Debord nos quer dizer é que o espetáculo reside na relação social entre pessoas, surgindo mediatizada através das imagens. Os “15 minutos de fama” de que Warhol nos falava, era outra forma de afirmar a aparência de toda a vida humana pós-moderna, de uma sociedade que passou a viver para ter em vez de ser. E não é fácil escapar ao espetáculo, porque «Ao analisar o espectáculo, fala-se em certa medida com a própria linguagem do espectacular, no sentido em que se pisa o terreno metodológico desta sociedade, que se expressa no espectáculo.» (2012: 11).

De facto, como nos diz Debord, vivemos «Onde o mundo real se converte em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais, e motivações eficientes de um comportamento hipnótico» (2012: 13). Se noutras épocas o tato foi um dos sentidos mais privilegiados no que respeita ao momento de fazer ou de comunicar, hoje a visão adquire um lugar privilegiado na nossa maneira de pensar a comunicação.

 

«Ver-se a si mesmo (sem ser num espelho), à escala da história, é um acto recente. O retrato, pintado, desenhado ou miniaturizado foi, até à difusão da Fotografia, um bem restrito, destinado, aliás, a marcar um estatuto social e financeiro. E, de qualquer modo, um retrato pintado, por muito semelhante que seja (é o que falta provar), não é uma fotografia. É curioso que não se tenha pensado na perturbação (de civilização) que este acto novo trás.»
Barthes, 2018: 20

 

Mauro Cerqueira transporta para a galeria imagens e objetos das entranhas do quotidiano portuense que o rodeia. Apropria-se de objetos encontrados na rua, como malas de viagem ou CDs adquiridos pelo artista a junkies que procuram uns trocos para um pedaço de droga. As questões levantadas pelo trabalho de Mauro Cerqueira são ainda mais relevantes no mundo atual, cada vez mais digitalizado, onde a tecnologia simultaneamente liberta o nosso tempo, mas distrai-nos infinitamente. Estamos a perder o nosso tempo colados aos ecrãs dos gadgets eletrónicos; Nesse sentido, a exposição “Desenganar” pede-nos para refletir sobre como passamos as horas, os dias e os anos de nossas vidas e como nos relacionamos com os espaços onde vivemos.

 

 

Fotografia: Filipe Braga

 

 

O olhar crítico de Mauro Cerqueira parece residir no que Debord descreve como: «O espectáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que não expressa finalmente mais o seu desejo de dormir. O espectáculo é o guardião deste sono» (2012: 14). Ou seja, o espetáculo funciona como mecanismo de entretenimento que adormece as sociedades, porque esta comunicação é essencialmente unilateral, filtrada e iluminada por um ecrã. Talvez seja por isto que as correntes aparecem várias vezes na exposição “Desenganar”.

 

 


Fotografia: Filipe Braga

 

 

Com este adormecimento das sociedades que nos submete ao televisionamento (e hoje, cada vez mais alargado aos computadores e smartphones) somos conduzidos a um isolamento asfixiante.

 

«O sistema económico fundado no isolamento é uma produção circular de isolamento. O isolamento funda a técnica, e, por sua vez, o processo técnico isola. Do automóvel à televisão, todos os bens seleccionados pelo sistema espectacular são também as suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das «multidões solitárias». O espectáculo reencontra cada vez mais concretamente os seus próprios pressupostos.»
(Debord, 2012: 17)

 

O que une os espetadores é o isolamento. E quanto mais contemplamos, menos vivemos. Assistimos hoje, mais do que nunca, a uma fabricação massiva da alienação. Caminhamos sobre um terreno pantanoso de onde é muito difícil escapar, mesmo que seja através de uma perspetiva cínica e crítica dos acontecimentos. É sobre estas linhas de pensamento que Mauro Cerqueira parece caminhar. Os dependentes em heroína isolam-se, escondem-se em casas abandonadas e refugiam-se da sociedade à luz das velas, um tipo de isolamento não muito distante daquele que é provocado pelos instrumentos hipnóticos que a sociedade cria para nos alienar. Por tudo isto, a “sala dos espelhos”, com dez trabalhos impressionantes feitos com cera derretida, pigmento e alguns objetos colados sobre a superfície (como capas de telemóvel partidas ou conchas trazidas da sua experiência na residência Robert Rauschenberg, em Captiva na Florida em 2013), atraem o nosso olhar como um íman. Lembrei-me das “Mirror Paintings” de Michelangelo Pistoletto, e da magnífica performance “Twenty-two less two” (2009), quando Pistoletto partiu uma série de espelhos com um martelo, criando uma relação fascinante entre o fundo negro dos quadros e a imagem refletida.

O que impressiona nesta série de trabalhos de Mauro Cerqueira é a técnica utilizada, assim como o resultado obtido (uma clara referência à pintura abstrata da segunda metade do século XX). O processo manual, meticuloso, de deixar cair gota-a-gota a cera derretida sobre óxido de ferro, criam uma textura que anula o reflexo. O resultado final cria um interessante jogo concetual com os black mirrors dos smartphones (o vidro dos telemóveis só reflete quando está desligado), fazendo parecer ecrãs partidos, como que negando este selfie-show deprimente que as sociedades contemporâneas atravessam. Porque morrer à luz das velas não é muito diferente de viver à luz dos ecrãs.

 

 

Luís Ribeiro
[www.luisribeiro.pt]

 

 


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Notas

[1] Guy Debord, "A Sociedade do Espectáculo", ed. Antígona, 2012.

 


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Referências bibliográficas

Barthes, Roland, “A Câmara Clara - Nota Sobre a Fotografia”, Edições 70, 2018;
Debord, Guy, “A Sociedade do Espectáculo”, Antígona, 2012.
Pérez, Miguel Von Hafe, “Trânsito e tráfico. A vida na arte”, folha de sala exposição “Desenganar”, 2019.

 


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Mauro Cerqueira
Desenganar
29 Jun – 27 Jul 2019

Galeria Nuno Centeno
Rua Da Alegria 598
4000-037 Porto