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SNAPSHOT. NO ATELIER DE...




prato, 2014-17. Fotografia: Alípio Padilha.


barro e elástico, 2016


barro e lã, 2017


Lichtenberg, 2017


Lichtenberg, 2017


Pintura contra o método, 2017. Fotografia: Diana Geiroto Gonçalves.


Sem título, 2017. Fotografia: Frederico Brízida.


Sem título, 2017


troncos amortalhados, 2017. Fotografia: Diana Geiroto Gonçalves.


Sem título / pia, 2018-20. Fotografia: Alípio Padilha.


carvão atado, 2019. Fotografia: Alípio Padilha.


Bundle, 2020. Fotografia: Bruno Lopes.


Detalhe da exposição conjunta com Inês Brites, Cinco de Amizades 2: Se o fio partir, veremos o corpo seguir em linha recta, 2020. Fotografia: Inês Brites.


Detalhe da exposição conjunta com Inês Brites, Cinco de Amizades 2: Se o fio partir, veremos o corpo seguir em linha recta, 2020. Fotografia: Inês Brites.


Sem título, 2020 (detalhe). Fotografia: Bruno Lopes.

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São Trindade



Inez Teixeira



Binelde Hyrcan



António Júlio Duarte



Délio Jasse



Nástio Mosquito



José Pedro Cortes




TâNIA GEIROTO MARCELINO

CATARINA REAL


28/05/2021 

 

 

Tânia Geiroto Marcelino, nascida em 1989, vive e trabalha em Lisboa e tem desenvolvido um trabalho que presta particular atenção às matérias, aos objectos esquecidos e encontrados, com os quais se relaciona através de acções que denotam um lado cuidador. Em visita ao seu atelier, convidei-a a conversar comigo com orientação de uma das suas esculturas, uma das suas preferidas, num exercício que nos permitiu chegar a muitas histórias, passando por coincidências e intraduzíveis.


Por Catarina Real


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CR: Começamos com uma descrição?

TGM: Esta peça é constituída por dois pedaços de madeira que têm uma forma em “C” - falo agora em letras mas nunca as associei a esta peça - e tem uns pregos, entre as duas. São os pregos que as juntam. Estes pedaços de madeira são parte de um objecto utilitário específico, embora pareçam só um pedaço de madeira aleatório.
Normalmente não uso muito objectos úteis, são quase sempre pedaços de matéria; um pedaço de madeira, mais do que uma cadeira de madeira. Embora também já tenha acontecido, mas mais facilmente recolho objectos que aparentemente não são nada. Normalmente restos de alguma outra coisa.
Estes trouxe-os do Porto: tinha-me mudado para uma casa nova e lá havia uma estrutura de cama, com a mesma madeira destes objectos. Estas duas peças faziam parte dessa estrutura. Podiam-se tirar e eu acabei por fazê-lo, estavam um pouco a mais.
Originalmente elas não estavam juntas. Estes pregos que vemos no objecto estavam assim desordenados, com direcções muito diferentes, sem rigor nem método. Do lado interior - que agora não se vê porque elas estão juntas - havia uma espécie de picos, o final dos pregos.
Andei durante algum tempo a relacioná-las... às vezes colocava-as ao lado uma da outra, de maneiras diferentes, mas sempre juntas. Tirei-as da cama juntas, e acabei por ficar com elas sempre assim. Como elas vieram juntas do mesmo sítio, tenho a tendência para achar que elas deviam ficar juntas, como acontece com outras coisas que recolho.
São duas metades gémeas, são iguais mas diferentes... como também acontece com vários materiais que vou usando, ou como é o caso daqueles dois excertos de texto que te mostrava [dois parágrafos do livro “Remarks on Colour” de Wittgenstein, que se iniciam com a mesma formulação, mas que diferem entre si.].
Um dia simplesmente martelei os pregos uma na outra e forcei-as a estar juntas, sem grandes preocupações. Eu sabia que podia tentar juntá-las de uma forma muito certinha, e até podia ser interessante eu tentar alinhá-las e não conseguir, mas decidi outra coisa. Juntei-as com naturalidade e martelei.
É uma peça muito romântica, e é por isso que gosto muito dela.

CR: Romântica?

TGM: Unem-se como se fossem duas pessoas, e isso está sempre na minha cabeça quando a vejo. Quando tenho peças que têm essa dualidade faço sempre essa associação, ou quando o vejo noutros trabalhos, de outras pessoas. Recentemente um amigo ofereceu-me um desenho de dois dentes de alho, e eu vejo esse romantismo de que falo também aí. Da mesma forma.
São duas coisas que forcei a estarem juntas e acho que existe nas relações, ou é a minha visão, essa vontade de haver uma quase coincidência, quase total, mas ao mesmo tempo, impossível. Essa impossibilidade existe e isso também me interessa. Essa pequena falha.

 

CR: É engraçado que fales da coincidência e não da complementaridade, considerando o mito descrito no “Banquete”, que é popular na expressão “cara metade”.

TGM: Uma das primeiras esculturas que fiz foi um plinto, que tinha um corte, que preenchi com barro. Esse gesto do preenchimento, da complementaridade, como dizias, também está presente no meu trabalho. Mas não o associo tanto às relações românticas. Vem da minha aproximação ao assunto e também tem relação com a forma como trabalho, da própria expectativa que vem do expôr do meu trabalho... de existirem encontros coincidentes.
Quero sempre trabalhar naquela que digo que é a “linguagem dos objectos”, não quero pôr palavras em cima deles, porque me parecem sempre desapropriadas. Espero sempre que quando os mostro haja um encontro entre o outro e o objecto. E, possivelmente, coincidente com o meu. Se acontecer, fico muito contente. Acontece também ficar chateada quando percebo que as pessoas vêem coisas que ignorei completamente, por estar cega por outra coisa.
Parece muito básico isto de alguém gostar ou não gostar de um objecto que faço, mas ainda assim, interessa-me - gosto que isso aconteça - porque sinto que há essa coincidência. Mas também pode ser, por exemplo, quando me dizem algo de que não estou à espera, como quando me disseram que uma das minhas peças numa exposição colectiva parecia “a pessoa introvertida da festa”. Nesse caso, não era bem o que eu tinha em mente e ainda assim pareceu-me haver um encontro entre essa pessoa e aquele objecto e uma coincidência entre o que eu queria daquele objecto e o que a pessoa viu. Significa que a pessoa de facto viu o que estou a apresentar. É por isso que falo de coincidência romântica

 

CR: O gesto que torna estes dois pedaços de madeira numa escultura é o da união?

TGM: Sim. Há outros objectos onde o gesto é outro. Numa outra peça, com pedaços de barro, uni-os com um elástico, depois de os recolher e juntar. O elástico acabou por se romper, o barro partiu-se e voltei a juntá-los, atando-os com lã. Este objecto é feito não pela união, mas pela repetição dos gestos de união.
No caso destes dois pedaços de madeira, só depois de os unir é que se tornaram uma escultura, antes eram coisas. Às vezes tento fazer essa distinção entre coisas, objectos, objectos artísticos, como as esculturas, que às vezes chamo de “objectos intraduzíveis”. Às vezes perco-me nessas distinções.

 

CR: Objectos intraduzíveis?

TGM: Sim, porque não lhes quero pôr palavras. Quero que usem a linguagem dos objectos, como te dizia. Na tradução nunca é possível a coincidência. Perde-se muita coisa. Ao fazer traduções tem que se aceitar essa perda. A expressão - objectos intraduzíveis - é para reafirmar que é isto, que é o que se vê, que não se trata de representações de alguma coisa. E que se pode falar deles, mas não se podem traduzir por palavras.

 

CR: E se os descrevêssemos?

TGM: É muito mais fácil para mim falar sobre as coisas que estão no entorno, do que da especificidade do trabalho feito.
Quando encontrei aqueles dois parágrafos no livro do Wittgenstein, andava a ouvir muito Beck. Há uma música que eu gosto muito que é a “Feather in your Cap”; fui à procura e encontrei várias versões , fui-me apercebendo que aquela música nunca era igual, há sempre pequenas variações na interpretação, variações na letra. O que é que é aquela música? É aquelas coisas todas ao mesmo tempo, todas as variações, ao mesmo tempo que é só uma música, e sempre a mesma.
Para falar desta peça posso descrevê-la e pensar em coisas específicas que me servem para falar dela, mas faz mais sentido falar das coisas que estão à volta, da cama de onde veio, contar que eu estava no Porto, que eu a vejo como uma peça romântica...

 

CR: Esta é uma peça estática?

TGM: De certa maneira, sim. Pelo menos comparando com outras, como aquela de que te falava, da lã e do barro. Ela pode ser apresentada de muitas formas, embora não seja essa a questão.
Embora isto aconteça com todos os objectos e não só com os objectos artísticos, acho que nela podem ser depositados outros significados que ainda não estou a prever. Pode ser recontextualizada. E não se trata de ver coisas que não se viu antes, mas sim do ressignificar das coisas.

 

CR: O que é que a apresentação, ou exposição, dos teus objectos, ou esculturas, lhes traz?

TGM: Traz o olhar do outro, que é sempre um desafio. Para mim é difícil sair dos objectos para os ver de fora. Neste caso, esta peça foi mostrada uma vez em Vila Nova de Gaia, e gostava de muito de mostrar outra vez, aqui em Lisboa em particular, porque é quase - embora isto pareça parvo - como se levasse o meu filho à rua. Queria que ele fosse visto, que participasse. Isto diz mais sobre mim do que sobre o próprio objecto, e faz-me mais a mim do que ao objecto. Mas lá está, acho que é significante expô-los porque os vejo como entidades, como coisas importantes e afectivas. Não há nenhuma alteração na peça. Significa que aquele objecto não fica guardado na gaveta.

 

CR: A minha pergunta era mesmo, indo por essa analogia e considerando os objectos como filhos, como outras entidades, com uma autonomia para além de ti. Quando eles se emancipam, o que é que lhes traz o facto de serem expostos?

TGM: Acho que ainda me falta muita distância para o saber. Falta-me perceber as repercussões de coisas que já aconteceram há mais tempo. Depois de eu já não estar cá...quando estes objectos forem vistos, o que acontece? Nem serei eu a decidir como expô-los... O que será dito, como serão enquadrados? Não faço ideia, mas tenho imensa curiosidade. Não sei se lhes faz alguma coisa. Quando se referem ao meu trabalho, em textos ou comentários, há coisas que se acrescentam, mas é sempre para mim, e não para o objecto.
Quando o João Cristovão Leitão escreveu sobre a minha exposição na Rua das Gaivotas 6, disse que o título em si [“Às gaivotas, aos cães e aos próximos animais”], poderia ser a própria exposição. Esse comentário fez alguma coisa a esse título, deu-lhe mais forma. Aquele título era qualquer coisa, algo que eu queria muito mostrar, tal como outros objectos que lá estavam na exposição, mas com o comentário ganhou mais forma.
Penso muitas vezes em trabalhar com algumas palavras que vou recolhendo, tal como outras matérias. Esse título já tinha sido trabalhado e, em parte, também porque foi circundado pelo olhar do outro.

 

CR: Esta peça tem título?

TGM: Acho que é sem título.
Penso muito e ao mesmo tempo não penso muito nos títulos. Tenho para mim que há peças que têm títulos, definitivamente, e há outras que têm nomes informais, que acabo por lhes chamar, mas que não quero que sejam títulos com T maiúsculo.
Esta peça acabei por definir que é “sem título”, para não complicar muito.
Relaciono muito esta peça com o nome de uma pessoa, por causa de uma outra peça. E estas duas peças estão relacionadas. A outra peça trata-se de um prato do Ikea, que foi partido por um amigo. Não me imaginei a trabalhar com aquele prato, mas lá o guardei, porque ele mo ofereceu. O prato tem um corte muito perfeito, de um lado ao outro. Se o encaixássemos, uma parte na outra, ficava inteiro. Guardei esse objecto durante muito tempo, e um dia sobrepus as duas metades, uma em cima da outra. Era assim que queria fixar aquilo. Queria consertar aquelas duas metades, mas nunca mais poderia ser na sua forma original. Era óbvio que o consertar daquele prato era daquela forma e não de outra. Quase como se, quando partimos um prato, o consertar não possa ser colocar o pedaço partido no lugar anterior, porque há esta força que torna óbvio que tem de ser de outra maneira.
Também esta peça de madeira tinha de ser junta desta forma e não de outra, e por isso relaciono as duas, e estas com o nome da pessoa que me ofereceu o prato.

O que se passou naquele momento com aqueles dois pratos era também o que te dizia de uma coisa ser outra e a mesma, ao mesmo tempo, quase como que por magia. Tenho dificuldade de expressar isto sem ser com mais exemplos. Como quando num sonho sonhas que estás na tua casa, mas também tens consciência que o que vês não é a tua casa: isso sobrepõe-se e é só a tua casa. Essa possibilidade de ser outra coisa e ser o mesmo, que acho que é quase magia.
Queria consertar o prato, sendo que por magia, o arranjar era ser diferente.

Quase que dei o nome dessa pessoa a esta peça. Gostaria muito de fazer isso, de dar nomes de pessoas a peças, mas carrega outras implicações... depois tenta-se perceber quem é essa pessoa, para criar uma narrativa.
Uso muitas vezes o sem título mas gosto também de títulos poéticos.

 

CR: O que é que entendes por esse “poético”?

TGM: Tinha medo dessa pergunta. Acho que já está presente há muito tempo essa vontade da “poética”, sem eu saber bem o que ela é. Não sei definir. Sei que é diferente um texto poético de... um artigo científico. Ou de um artigo no jornal. São as duas coisas válidas, têm o seu lugar distinto. A qualidade do texto não define se ele é poético ou não, e dentro do texto jornalístico pode haver coisas que considero poéticas. Mas são diferentes. Têm um propósito diferente. Por isso prefiro títulos poéticos a títulos explicativos ou que tentam intelectualizar os objectos.

 

CR: Falas do lugar da metáfora?

TGM: Nunca tinha pensado dessa forma.

 

CR: Pergunto porque opões o descritivo ao teu poético, significa que excluis a descrição desse âmbito.

TGM: Descritivo também pode ser poético.
Não sei bem que oponho ao poético, mas sei que é o que não quero fazer.
Poético é aquilo que eu vejo no trabalho da Maria José Oliveira, de quem falávamos antes. E que acho que é muito importante que aconteça por força das circunstâncias e das vidas que vivemos. A vida não é só, infelizmente, poética. Não pode é deixar de o ser também, nem que seja só um bocadinho.
A poética é-me importante para me recentrar e para me lembrar daquilo que é importante, ainda que não seja fácil de dizer, não seja dizível até.

 

CR: Aproveitando a conversa que estávamos a ter antes, e por força deste teu poético, pergunto-te em jeito de término e de provocação, se te agrada a ideia de seres uma “artista profissional”.

TGM: Tenho a minha própria versão do que é o profissional. Não sou aquela artista fechada no seu canto, que não quer saber de nada nem ninguém. Gosto de fazer parte de uma comunidade. E é importante para o meu trabalho, traz-lhe coisas.
Falava-te da minha própria definição de profissional porque lembro-me de uma vez ouvir algures o que era a definição de profissional, definido pelo facto de teres ganho dinheiro a fazer algo. Passei muito tempo a pensar nisso porque exclui muita coisa, e não por decisão tua... Já trabalhei muito, profissionalmente, como artista, e não fui paga. Não é por isso que esse trabalho deixa de ser profissional. Se calhar devia ter sido paga e não fui, mas isso é outra conversa.
Agrada-me ser artista profissional por motivos mais políticos de estar no mundo, e não por estar no mundo de uma forma poética, apenas. Não gosto de me envolver muito nesses pensamentos, porque me afastam daquilo que é importante. É fácil ficar absorvido com outras questões que não as poéticas.
Não sei se gosto de contribuir para esta visão do que é a arte e do que é ser artista, mas, de facto, talvez ser artista seja muito diferente das outras coisas que existem na sociedade.

 


Fomos, no decorrer desta conversa, absorvidas por essas outras questões, mas essas ficarão para uma outra entrevista.