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COLECTIVANOVAS NOVAS CARTAS PORTUGUESAS![]() GALERIAS MUNICIPAIS - GALERIA QUADRUM Palácio dos Coruchéus, Rua Alberto Oliveira nº 52 1700-019 Lisboa 13 OUT - 26 FEV 2023 ![]() A casa, a arca, a cama![]()
No filme Les Trois Portugaises, que a cineasta Delphine Seyrig realizou em colaboração com Carole Roussopoulos e Ioana Wieder, há um registo em live-cam da leitura-espetáculo «La nuit des femmes», conduzida como uma manifestação nocturna diante da catedral de Notre Dame, e que fez parte das acções de apoio ao livro Novas Cartas Portuguesas, levadas a cabo em Paris entre 1973 e 1974. E ainda de apoio às autoras, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, no contexto do processo judicial em que a obra as lançou. Num close-up que não lhe concede fuga, Seyrig dá voz, ora pungida ora panfletária, a excertos da tradução francesa de Novas Cartas Portuguesas. Na audiência, que nunca é filmada, há um entusiasmo indomável. A dado instante, Seyrig passa à leitura de um excerto que começa assim «et l’érotisme, et l’érotisme…». A audiência incendeia-se e dá-se a ouvir exultante. Predominam a gargalhada e o riso, e a Seyrig não é possível prosseguir. Isto até ao instante em que alguém pede silêncio com um «s’il vous plaît, c’est pas le thêatre.» Seyrig, a actriz, penalizada com o que ouviu, retoma. Juntamente com uma série de manuscritos com poemas de Maria Teresa Horta, o filme Les Trois Portugaises é, segundo Tobi Maier (curadoria), a peça de abertura da exposição Novas Novas Cartas Portuguesas [NNCP]. E a partir daquela passagem não cairá mal dizer que é também a que a encerra. Ou pelo menos a que lhe confere cúmulo como objecto maior, a pedir ser visto, revisto, vivido e revivido. É que é ainda naquela exacta passagem que está em jogo aquilo que dá razão de ser a esta exposição. Precisamente o facto, a contrapelo com a deixa intempestiva que foi atirada à cara de Seyrig, de ela – a exposição – ser como “o teatro”. Como quem diz, estar do lado da grande arte. De resto, como Novas Cartas Portuguesas o estão do lado da poesia e da representação. É daqui, também, que haverá que partir para condescender com os momentos menos conseguidos de Novas Novas Cartas Portuguesas. No caso: sempre que o que está exposto pretende recriar um fio de reconstituição histórica, ou de art-verité, o que a exposição tem para mostrar não traz frescura, e talvez nem mesmo valor documental. Está neste pé o conjunto de fotografias do processo de julgamento das “Três Marias”, por Jorge da Silva Horta, colocadas numa mesa, debaixo de um tampo de vidro, no que resulta mais como memorial um tanto batido, ao jeito de café-concerto, do que como reposição cenográfica de um assunto de café-litteraire. E os poemas manuscritos de Maria Teresa Horta em folhas envitrinadas não alimentam, enquanto peças de uma exposição, mais do que um interesse escolar. Com os cinquenta anos que leva, e que esta exposição assinala, o “caso Novas Cartas Portuguesas” está dado a muitas flutuações. Sobretudo no que se refere ao modo como foi recortado, dizendo de forma muito sumária, pelos vários feminismos e pelas problemáticas de género. Eis o que tornou a obra combustível para apropriações dissonantes e nem sempre alinhadas por igual sentido doutrinário. Não se tratará apenas de mera curiosidade histórica, enquanto espelho de uma datação, ou de uma marca de prazo de validade, mas cumpre ouvir Maria Isabel Barreno, numa entrevista em Les Trois Portugaises, articular, sobre o que escreveu, expressões amplamente criticadas, já ao tempo, pelas diferentes sensibilidades feministas, tais como “condição feminina” e “emancipação da mulher”. Na verdade, o filme «Ti-Grace Atkinson – Uma biografia de ideias» (2018) de Rita Moreira, também exibido em Novas Novas Cartas Portuguesas, ao traçar com denodo um retrato obrigatório da feminista radical Ti-Grace Atkinson, momento altíssimo desta exposição, denuncia, quase com um toque higienizador, o mal-de-vivre em que este debate foi aprisionado à conta de bastos equívocos, não poucos deles ofensivos. Estará nessa condição a retórica essencialista a respeito do feminino, a que as expressões artísticas foram muito gratas, mormente as que, nas pós-vanguardas, se reivindicaram do camp, do vamp e do glamour. Mas mais aflitiva ainda é a falácia da unidade entre desejo, identidade, sexualidade e genitalidade (cf. Butler, 2017, p.105), que tem legado à arte, quando ela é por aqui convocada, uma simbólica e uma iconografia pobres, porque exaustas. Veja-se, a este título, toda a obra de pintura de Francisca Sousa exposta em NNCP, e o salpicada que anda por uma estereotipagem de órgãos genitais de que não chega a retirar-se outra leitura que não folclórica, mesmo quando a artista revisita o motivo nobre da natureza morta (excepção feita para o muito interpelante Aula de costura [2017]). Esta genitalidade empedernida é o que marca ainda a glória daquela que quer ser a peça-choque desta exposição, a instalação A Transformação do Mundo (2022) de Aura, em colaboração com Aurora Pinto. Aqui, o efeito verité vem carregado com uma demagogia espacial (imersão, penetração) e de um facilitismo visual (ampliação, clinical-shot), que o pouco que é dado observar-se é o modo como a execução da peça poderia ter sido muito mais sagaz. O facto é que aquilo que a peça de Aura tem a devolver do sopro poético de que Novas Cartas Portuguesas estão repassadas é tangencial. Fará talvez corpo com elas numa dimensão estimável, mas insuficiente para alcandorar-se a ser mais do que uma peça proto-documental, e que é: quer ir à luta. Daqui que dizer, como se lê na folha da exposição, que Novas Novas Cartas Portuguesas «manifesta a urgência de uma renovação» talvez falhe, em parte, aquilo que há a celebrar e a recolher na obra das «Três Marias». Isto é, o sentido de que a «causa» da obra, pela ancoragem na tradição da grande criação literária, não é renovável, mas quando muito reacendível. Um dos ‘motivos’ maiores do livro, o do espaço da família, da casa e do parentesco, institutos que mantêm reactivação constante no debate público e político, têm tido fortuna desigual na esfera das artes. Por sorte, estão presentes em Novas Novas Cartas Portuguesas dois artistas, que a este nível, e acima dos restantes, enriquecem o repertório de imagens que abertamente associaremos melhor ao “complexo Novas Cartas Portuguesas”. Falamos das peças de Sara Graça, que reconstituem uma domesticidade estranha e delirante, e que com uma estética do desconchavo atingem nexos de bizarria muito fecundos. Em maior grau a peça site-specific, Problema na Porta (2022), ao jogar de forma muito hábil com o encadeamento porta-grade-prisão da moldura arquitectónica da galeria. Já a obra de pintura de Audun Alvestad devolve a atmosfera poderosa de um realismo sujo, onde o sinistro e o dócil se dão as mãos, onde o decrépito e o jovial partilham do mesmo fôlego, onde enjeitado e agressor comungam de igual fisionomia, e acabam a compor histórias e visões inquietantes. Mas logo muito nossas. As novas-velhas cartas.
O título deste artigo é o incipit de «Intimidade» in Novas Cartas Portuguesas de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.
Referências Barreno, Maria Isabel; Costa, Maria Velho da, co-autor; Horta, Maria Teresa, co-autor (2010), Novas Cartas Portuguesas, Lisboa: Dom Quixote. Butler, Judith (2017) Problemas de género: feminismo e subversão da identidade, Lisboa: Orfeu Negro, 2017
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