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KERRY JAMES MARSHALLTHE HISTORIESROYAL ACADEMY OF ARTS Burlington House Piccadilly London W1J 0BD 20 SET - 18 JAN 2026 As Histórias narradas por Kerry James Marshall, na Royal Academy of Arts
Kerry James Marshall
Paralelamente, o artista desafia as convenções da pintura ocidental, especialmente do retrato, da paisagem e da pintura histórica. Da última, preocupam-no em especial as narrativas bíblicas e míticas, as quais relaciona e cruza com a atualidade. Com particular frequência e dedicação, explora e debruça-se sobre momentos da história da comunidade negra, sobretudo os que testemunhou na sua infância, tais como diferentes episódios da diáspora, travessias de migração, rebelião de escravos e movimentos pelos direitos civis. A sua obra revela, ainda, influências da arte africana, como, por exemplo, os “nkisi nkondi”, figuras simbólicas do poder no Congo, e os “veves”, desenhos do vudu haitiano que invocam espíritos. São essas as diversas referências e “As Histórias”, tal como a exposição é nomeada, que se exibem na Royal Academy of Arts, de Londres, desde o passado dia 20 de setembro, até 18 de janeiro de 2026. Na ala principal da academia, em onze das suas galerias, perfazem-se quarenta e cinco anos de um percurso artístico dividido em diferentes ciclos: A Academia, Homem Invisível, A Pintura da Vida Moderna I e II, Passagem do Meio, Pantéon, Vinhetas, Lembranças, África Revisitada, Wake / Corrente do Golfo e Vermelho Preto Verde. Encontrando-se a exposição num importante edifício histórico, outrora palácio real e localizado na zona nobre de Mayfair e Piccadilly, a obra de Marshall adquire particulares sentido e impacto. As suas grandes e arrojadas telas com figuras expressivas, cores fortes e traços largos contrastam, quase antagonicamente, com a construção e a decoração da realeza inglesa, com os altos rodapés e os tetos constituídos por arcos e cúpulas, decorados a talha dourada e ornamentos clássicos tais como folhagens. Por meio da obra de Marshall, a comunidade negra instala-se e impõe-se no palácio europeu. Contudo, a exposição inicia-se absolutamente enquadrada no espaço expositivo que lhe foi concedido, com representações de escolas de arte, estúdios e museus, donde, lugares de certo modo análogos à Royal Academy of Arts. Este primeiro conjunto de trabalhos de Marshall foi movido pelo seu fascínio pelos estúdios de arte ocidentais e pelo museu europeu enquanto “repositório de maravilhas”. Em contrapartida, e estabelecendo já um paralelo com a última sala da exposição, há uma diferente relação que se estabelece com a pintura ocidental, mais crítica e provocadora. Convocam-se obras dos artistas Ticiano, Goya e Manet, mais especificamente, as suas representações do nu feminino que Marshall substituí pela figura de um homem negro. Na segunda galeria, destaque-se a tela de grandes dimensões “Knowledge and Wonder” (fig.2), de 1995, produzida para Legler, a biblioteca pública de Chicago, na qual Marshall representa os livros enquanto portais para o conhecimento. Esta obra e as que a circundam datam da década de 90, quando o artista, chegado a Chicago, pintou sucessivamente diversos motivos do quotidiano, tais como crianças a brincar, casais a dançar e famílias no parque. No entanto, já nestas temáticas mais triviais revelam-se elementos disruptivos que apontam para intenções e significações políticas: as cores da bandeira da Associação Universal para o Progresso Negro, fundada por Marcus Garvey, em 1914, e ícones e slogans dos Panteras Negras, do final dos anos 60. Entenda-se que o carácter político é transversal a toda a obra de Marshall, embora nem sempre de modo evidente. Como outro exemplar tome-se “Great America” (fig.3), de 1994, pintura figurativa de um parque temático californiano, com animados carrosséis e casas assombradas, metáforas para a vida dos negros norte-americanos, atravessada por felicidades e infortúnios. O ativismo de Marshall adquire expressão à medida que a exposição se desenrola, nomeadamente com peças tais como “Untitled (London Bridge)” (fig.4), de 2017, que retrata a Ponte de Londres, em Lake Havasu City, e Olaudah Equiano, escritor africano que desempenhou um papel fundamental no movimento abolicionista da escravatura. Estabelece-se, assim, um paralelo entre as duas deslocações, a da ponte, do Tamisa para o Arizona, e a de Equiano, entre África, América do Norte e Londres. Em contrapartida, como exemplo de uma série de pinturas de inequívoco cariz social e crítico, observe-se “Souvenirs” (fig.4), desenvolvida entre 1997 e 1998, na qual Marshall homenageia diferentes líderes dos direitos civis tais como Martin Luther King Jr., John F. Kennedy e Robert F. Kennedy. Com o humor e a irreverência que lhe são próprios, coloca os retratos das reconhecidas personalidades em cenas domésticas, emoldurados à imagem de recordações comemorativas, alguns acompanhados de outras figuras da sua época, tais como vítimas do atentado à igreja da comunidade negra de Birmingham, por parte do Ku Klux Klan, em 1963. Emergem, deste modo, obras dotadas de uma profunda significação, embora, ironicamente, enformada por uma pintura e uma estética simples e até mesmo alegres. Por último, será ainda importante assinalar o modo como Kerry James Marshall representa a figura negra, distanciando-se da maioria das pinturas do género. Utilizando um pigmento de tom preto profundo, é explícito na sua representação, procurando “estabelecer uma presença fenomenal que seja inequivocamente negra e bela”. Como explica, uma das suas convicções é, precisamente, “que a pintura mais impactante e transgressora para os dias de hoje deve ser a de figuras, e essas figuras devem ser negras”.
Constança Babo
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