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ALEXANDRA BIRCKENSOMASEMASOMACULTURGEST EdifÃcio Sede da Caixa Geral de Depósitos, Rua Arco do Cego 1000-300 Lisboa 25 OUT - 01 FEV 2026 Unheimlich, o estranho familiar.
— Donna Haraway
Alguns filósofos ressentem-se da perda da força e do sentido narrativo em um tempo histórico marcado pelo avassalamento de imagens contínuas em vetores descontínuos. Carente de sentido ou orientação, a própria experiência temporal do sujeito contemporâneo se desconfigura. A narrativa, substituída por uma espécie de assemblage existencial, perde a sua força de coesão e sentido de início, meio e final. Essa é, por exemplo, a crítica do filósofo germano-coreano Byung-Chul Han. Pensador de olhar afiado ao nosso tempo tão avassalador, Han destaca o papel que a tecnologia e a aceleração dela advinda cumprem na desestabilização do espírito humano, encontrado, talvez verdadeiramente, somente nas lentas experiências junto à terra, ao jardim e à natureza. Mas também outros diriam que é só dessa forma, caótica e desorganizada, que a história pode ser de facto apreendida. A história para Walter Benjamin, por exemplo, assemelha-se muito mais a uma espécie de vento que vem de uma floresta — uma imagem, uma rememoração que aparece como relâmpago à nossa frente fora de horas — do que à história contada por uma narrativa linear. Nesse sentido, a assemblage, o estranho enredamento de peças, a pluralidade de sentidos e um ir e voltar constante seria muito mais expressivo de um momento relevante do que a passagem temporal orientada. Principalmente em momentos de perigo, diz Benjamin, a memória e a história nos assaltam de forma a conectar subtil ou radicalmente pontos temporais aparentemente dispersos. Nesse ponto, é sobretudo a alegoria que se destaca como expressão e leitura de um mundo em decadência — aquilo que permite revelar as contradições e as feridas da história. Ao contrário do símbolo, que tende para a eternidade, a alegoria tende para o presente histórico, estendendo-se do presente para o passado como um corpo esticado. Dessa forma, a narrativa do presente como continuum é desconstruída — e se revela muito mais como um percalço, um descalabro, uma desestrutura. Essa forma estética-existencial traz consigo não a potência de um eventual sentido, mas a força que advém da montagem, da alegoria, da desconstrução, da dúvida e da sugestão. Sem dúvida, a verdade tem perdido o seu lugar estabilizante, unificador e definidor, processo já iniciado com a morte de Deus assinalada por Nietzsche, mas consolidado definitivamente no nosso século. Ela foi substituída pela sua maquinaria interna: um jogo de forças e potências constantes, em que verdade e mentira, força e fraqueza, interior e exterior, passado, presente e futuro se batalham e se cruzam numa panaceia de sentidos e vetores que, no mundo da arte, eventualmente encontram formas adequadas de serem expressas. É o caso de Alexandra Bircken, que se destaca no cenário artístico contemporâneo e apresenta a exposição SomaSemaSoma na Culturgest, com curadoria de Bruno Marchand e Selma Meuli. Depois de ter passado pela Kunsthaus Biel / Centre d’Art Bienne, na Suíça, SomaSemaSoma fica em Lisboa até fevereiro de 2026. Em companhia de biarritzzz e Carlos Nogueira, também em exposição na Culturgest este mês, Bircken mostra um trabalho denso, robótico e original, marcado pela sua trajetória no mundo do têxtil e da moda, mas já imerso na forma escultórica e na composição de grandes e médias estruturas. Bircken estudou Fashion Design na Central Saint Martins em Londres e, durante algum tempo, desenvolveu coleções de roupas experimentais. No fim dos anos 1990, começou a distanciar se do circuito comercial e a explorar o têxtil e o vestuário como linguagem escultórica. A questão aqui, pelo menos em início de conversa, é a costura, a reconfiguração das partes, a extensão do corpo por meio dos materiais e, posteriormente, a introdução de objetos mecânicos e industriais (capacetes, motores, estruturas metálicas) junto dos materiais têxteis e do espaço expositivo.
Vista da exposição SomaSemaSoma, de Alexandra Bircken, Culturgest, 2025. © Vera Marmelo / Cortesia Culturgest
A exposição na Culturgest tem cinco salas, sendo por isso bastante expressiva da amplitude do trabalho de Bircken. A presença de motocicletas, vestes e motores é marcante, bem como o largo uso de fios e cabos de computador, em articulação ou não a tecidos tradicionais. Há na exposição um diálogo e uma dissolução constante entre o corpo e a veste, o interior e o exterior, o natural e o fabricado. O eventual rasgo ao meio de determinada obra, expondo a sua maquinaria interna, é expressivo dessa dissolução. Bem como as pedras plastificadas que se dispersam entre as salas.
Vista da exposição SomaSemaSoma, de Alexandra Bircken, Culturgest, 2025. © Vera Marmelo / Cortesia Culturgest
Outras vezes tecidos lado a lado, dos pólos anteriormente opostos, emergem esculturas por meio dessa inflexão mútua, compondo um espaço de estranha assemblage. Novas configurações emergem de uma escolha de materiais e alegorias, escolha esta que confere ao espectador espaço ao mesmo tempo para a o estranhamento, a sugestão e o reconhecimento.
Vista da exposição SomaSemaSoma, de Alexandra Bircken, Culturgest, 2025. © Vera Marmelo / Cortesia Culturgest
É o caso, por exemplo, da referência à cultura da motocicleta. Vívida no imaginário coletivo, ao mesmo tempo como máquina e como perigo, como virilidade e como corporeidade híbrida, a sua estética é atualizada na exposição de forma que a vida e a morte, o ridículo e o poderoso, a cultura de massa e o seu deslocamento se coagulem numa familiar estranheza. É esse o grande poder do cubo branco, afinal: o de nos fazer estranhar o familiar. E nesse sentido, o trabalho de Bircken é expressivo, porque ao produzir obras que envenenam o nosso olhar domesticado, possibilita-nos estranhar o presente. Nas esculturas avessamente robóticas, vemos precisamente a força da configuração e da desconfiguração atearem-se juntas. Cabos que se misturam às peças artesanais e depois outros, de outro tipo ainda, geram não só novas e estranhas composições, como um certo sentido de contemporâneo, mas não naquilo que se apresenta aos nossos olhos no uso diário das tecnologias, ou seja, no seu carácter aparentemente asséptico; mas precisamente naquilo de que elas são feitas: conexões materiais por meio de fios. Essas composições convocam-nos um estranho sentido revolucionário. Quando as estruturas materiais dos nossos meios de comunicação aparecem, na sua desconfortante e caótica nudez, salta aos olhos um sentido de desconfiguração, não das letras, mas do próprio alfabeto. Como uma espécie de revolução do entendimento. Porque a escolha de Bircken não é pela tecnologia em si, e sim pelo que está atrás, na formação da tecnologia — a sua maquinaria.
Vista da exposição SomaSemaSoma, de Alexandra Bircken, Culturgest, 2025. © Vera Marmelo / Cortesia Culturgest
O salto dos cabos, na sua desconformidade e desconfiguração, é, por um lado, um salto de algo que se rompeu, que se revelou detrás das telas. Mas também expressa que a costura, os fios e as tramas que ligam a nossa vida estão presentes de formas diversas — que tudo no mundo se trata de uma espécie de assemblage. Costurados, misturados, assemblados, estamos. E há, entretanto, espanto e desconforto com essa estranha composição. A aproximação e o entrosamento entre o interior e o exterior estão muito bem conseguidos neste trabalho. Na verdade, arriscaria até dizer que a interioridade sumiu. Não se trata de uma exposição intimista; a artista está imersa no seu tempo e nas suas respetivas alegorias e materiais. A interioridade aqui é uma interioridade possível, de certa forma até mesmo questionada, uma vez que, por meio do vasto uso de roupas e têxteis, a ideia de interioridade aparece como fabricada, misturando-se ao exterior, estando nele implicada.
Vista da exposição SomaSemaSoma, de Alexandra Bircken, Culturgest, 2025. © Vera Marmelo / Cortesia Culturgest
Ainda além disso, a exposição tem um tom sarcástico, quase tragicômico. Os corpos carbonizados, em vestes de proteção para motocicleta, dispostos enfileirados de frente a uma parede branca, aparecem não de forma dramática — não há aqui excesso de emoção – mas como facto ou evento; dispostos como motocicletas ou como cavalos de brincar; como parte de um todo que rasga o globo ocular da visão doméstica das coisas. Tudo tem peso e, ao mesmo tempo, ácida leveza. Talvez este seja o grande feito de Bircken, aquilo que a torna uma artista tão relevante no cenário contemporâneo europeu. Tudo é leve — mas tudo é bastante sério. E nesse equilíbrio, fabrica-se, como se fabricam têxteis e textos, a produção de Unheimlich, o estranho familiar. A questão aqui são proximidades e afastamentos; aquilo que está no passado e é revisto no presente; o que está acolá e, pela força de uma fronteira ou de uma linha, passa para cá. A questão é a costura das coisas. E as linhas. No final, cabe-nos sobretudo observar a força das alegorias advindas dessa composição.
Vista da exposição SomaSemaSoma, de Alexandra Bircken, Culturgest, 2025. © Vera Marmelo / Cortesia Culturgest
Em última instância, o trabalho de Alexandra Bircken convoca-nos ao contemporâneo e à sua estética de montagem, caracterizada pela fricção entre tempos, corpos e matérias. O tecido, eventualmente, torna-se pele, e o cabo, numa espécie de nervo, em uma continuidade que dissolve as fronteiras entre o humano e a máquina, o natural e o fabricado. Nesse ponto, o pensamento de Donna Haraway pode nos oferecer guarida: como os seus ciborgues, as esculturas de Bircken habitam um território de interpenetrações, onde a forma é sobretudo uma estranha costura. A artista trabalha nesse limiar, nesse lugar de transição inefável que só a arte consegue penetrar — com sorte, como neste caso, por meio de alegorias significativas. É assim, nessa atmosfera de Unheimlich, estranho familiar, que ficamos a pairar.
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