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COLECTIVAPRÉ/PÓS - DECLINAÇÕES VISUAIS DO 25 DE ABRILMUSEU DE SERRALVES - MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA Rua D. João de Castro, 210 4150-417 Porto 24 ABR - 20 OUT 2024
Esta é a madrugada que eu esperava Sophia de Mello Breyner, 25 de Abril, 27 de abril de 1974
Assim se ergue a atual exposição, cujo desafio curatorial, artístico e inevitavelmente político foi atribuído ao curador Miguel von Hafe Pérez. O resultado é notável. A exposição, intitulada Pré/Pós - Declinações Visuais do 25 de Abril, com extensão e densidade impressionantes, representa e convoca as várias condições que formaram e configuraram a época do 25 de Abril. As obras foram escolhidas organicamente, inúmeras delas foram objeto de recuperação e restauro, algumas das quais não eram exibidas desde a sua criação, dentro do espaço temporal que a exposição abrange, de 70 a 77. A limitada cronologia da mostra é propositadamente circunscrita, correspondendo a um particular período de abertura social e cultural do país, e ao que imediatamente o antecedeu. Reporta-se, portanto, a uma fase de afirmação e visibilidade, após a segregação e o isolamento ditatoriais salazaristas. Assim se expõem, como anuncia o título da exposição, as Declinações Visuais do pré e do pós 25 de Abril. Miguel von Hafe Pérez revela que um dos seus pontos de partida foi a série de Álvaro Lapa As profecias de Abdu Varetti, Escritor Falhado, de 1972, obra que integrou a grande retrospetiva do artista, comissariada pelo curador, em Serralves, em 2018. Atualmente, esta obra de Lapa encontra-se exposta no novo espaço do museu, a Ala Álvaro Siza. Das profecias, recordo a seguinte: “A mais bela forma de ser será a preferida, depois que os homens reconhecerem os seus tiranos, no interior de si mesmos”. Outras poderiam ser mencionadas, sendo que inúmeras delas, mais ou menos utópicas, refletem o contexto sociocultural então vivido por Lapa. São, no entanto, as palavras de Eduardo Neri, dirigidas aos presos políticos, que nos recebem à entrada da atual exposição. Seguem-se expressivas obras de Acácio Assunção e David Evans. A partir daí, a pluralidade objetual é admirável, entre cartazes e gravuras, ambos de tradição contestatária, telas, esculturas e outros. Dos artistas, contam-se alguns dos mais relevantes do panorama nacional, tais como Fernando Lanhas, José Rodrigues, Melo e Castro e Paula Rego. Assinalo o reconhecido e celebrado cartaz de Vieira da Silva e uma tela de Ângelo de Sousa, datada de “24 25 26 Abril 74”. O tema transversal à exposição, a Revolução Portuguesa para a Democracia, é desde logo manifestado pela cor vermelha, quer em letras, quer em figuras, caso das incontornáveis representações do cravo. Também o corpo é compreendido dentro da temática central, em termos da sua representação e do seu uso como médium criativo. Ocorre que, como explica o curador, o corpo funciona como um “sismógrafo de uma liberdade desejada, de uma liberdade conseguida”. O corpo é, pois, também um meio de revolução. Surge, nesta mostra, sob diferentes formas e configurações, muitas delas eróticas, recordando-nos o clima de censura pré-25 de Abril e a sentida e expressiva libertação no seu pós. Podendo assinalar-se como exemplares dessas figurações os trabalhos de Eduardo Batarda, o curador apresenta-nos sobretudo obras de mulheres, de artistas tais como Isabel de Sá e Maria José Aguiar. Também a destacar, uma escultura de Rosa Fazenda, Freira, de 1976, retida no acervo de Serralves há mais de 30 anos. Como indica o curador, trata-se de uma peça icónica, alvo de críticas sucessivas, mesmo quando exibida após o ano de 77. Também a sublinhar, uma composição fotográfica, uma extraordinária série de Alberto Carneiro, Trajeto dum corpo, de 1977. Performativa, orgânica, definida pela transitoriedade e por uma dimensão gestual singular e profundamente sensorial, é, como descreve Miguel von Hafe Pérez, uma “intervenção artística acutilante”. Além do mais, relaciona-se tanto com a trama desta exposição, como com uma outra problemática, hoje tão central, a crise climática. Sublinha-se, ainda, uma zona dedicada a obras de afrodescendentes, artistas reconhecidos por Miguel von Hafe Pérez enquanto meritórios de “uma exposição que está ainda por fazer”. Fica aqui expressa a expectativa de ver a concretização deste repto por parte do curador. Ao longo da exposição e na biblioteca de Serralves, surgem vários arquivos. Relativamente aos que se exibem nas galerias do museu, encontram-se, por exemplo, fotografias do atentado à Cooperativa Árvore, na madrugada de 7 de janeiro de 1976, e um documentário de Paulo Seabra, de 2014, sobre, como o título indica, Estética, Propaganda e Utopia no Portugal do 25 de Abril. Porém, na sua maioria, ao longo da exposição, os arquivos que se revelam são registos das celebrações na rua, nos dias que se seguiram à Revolução. Neles, vemos a euforia de Mário Cesariny, a felicidade de Ana Hatherly, entre outros, inclusivamente anónimos. Destaca-se uma fotografia da libertação dos presos políticos da Pide, do álbum de memórias da engenheira e ativista política Virgínia Moura. Por fim, no corredor final do espaço expositivo, surge um trabalho particularmente interessante, um livro assinado por Lourdes Castro e Manuel Zimbro, cujo fio condutor e elemento denominador é o vermelho. As páginas, expostas umas a seguir às outras, com motivos e temas tão diversos que se afiguram aleatórios, compõem o que se intitula de Un Autre Livre Rouge. Contudo, não se trata de “mais um” livro vermelho. Diria antes que consiste numa sui generis compilação de fragmentos que mais ou menos diretamente retratam uma época, uma sociedade, um Portugal. São, portanto, também eles políticos. Esclareça-se, como o faz o próprio curador, que a obra de arte não precisa de ser panfletária para ser política. Com efeito, enquanto inscrita no campo social, a arte é sempre uma potência política. Quanto à exposição Pré/Pós - Declinações Visuais do 25 de Abril cumpre o que o Miguel von Hafe Pérez defende ser um dever dos museus de hoje: criar uma memória crítica para o futuro. Considero, além disso, que este projeto expositivo consiste num dos mais relevantes contributos para a atual celebração nacional. A visitar e a experienciar, recorrendo às palavras de Sophia de Mello Breyner no poema Revolução, Como puro início / Como tempo novo / Sem mancha nem vício / Como a voz do mar / Interior de um povo.
Constança Babo
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