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CARLA CRUZ E CLÁUDIA LOPESGRAMÁTICAS PARDASCAAA - CENTRO PARA OS ASSUNTOS DE ARTE E ARQUITECTURA Rua Padre Augusto Borges de Sá 4810-523 Guimarães 01 NOV - 31 DEZ 2025
Ao entrarmos no CAAA, deparamo-nos com um pano preto que esconde um dos inícios do percurso, ou percursos, traçados pela dupla artística Carla Cruz e Cláudia Lopes, em parceria com Ana Anacleto, enquanto curadora da exposição “Gramáticas Pardas”. Por detrás desse manto, uma sala escura é inundada pela luz de duas projeções de vídeo. A maior, aquela que nos surpreende pela sua imensidão de azul e matéria rochosa, desvenda um papagaio de papel que esvoaça pelo céu. Guiado por duas mãos, que correm altas e firmes, aquele objeto ganha vida quando é transportado por entre os caminhos brancos e lagoas de um azul cristalino. O vento entrelaça-se na serpentina do papagaio e, numa relação simbiótica, desenham movimentos ondulantes pelo ar. Na parede oposta, surge uma pequena imagem, que nos convida a aproximarmo-nos, a descer o corpo quase até ao chão, para então ser possível compreender pormenores subtis e delicados, os quais surgem naquelas imagens em movimento. As ondas do mar dão à costa e reescrevem os desenhos na areia, enquanto uma mão segura um pequeno caracol; o vento que assobia por entre as copas da floresta abre espaço para uma manada de vacas de tom avermelhado passar; a chuva que cai nos montes, é tapada pela imagem de pedras de xisto intercaladas umas nas outras, que, por sua vez, quase que deixam passar desapercebidos os pequenos pedaços de azulejos pintados que nelas se encontram pousados. Entre sobreposições de imagens e objetos de naturezas aparentemente distintas, criam-se novas possibilidades de olhar o mundo. Uma pedra castanha pintada com leves listras, encaixada num buraco de uma rocha de granito, desafia o olhar do espectador, quando se instala a dúvida de qual daqueles objetos é real. Será a pedra parte da fotografia, ou terá ela própria vida? Terá a imagem a capacidade e o desejo de representar a realidade, ou, ao invés, a vontade de criar uma nova realidade? Talvez sejamos nós, espectadores, ávidos por respostas e certezas, que depositamos demasiada confiança nas imagens. Elas não são mentirosas. Pelo contrário, são tão reais quanto a nossa crença assim o permitir.
© Fausto / CAAA, Guimarães
Ainda na sala principal, ramos de árvores suspensos apresentam coroas de cerâmica brilhantes. Nas extremidades dos ramos, onde deveriam existir as raízes ou as fibras da madeira, encontram-se formas escultóricas cobertas por vidrados coloridos e reluzentes. Funcionam como uma extensão do próprio organismo e, de repente, um novo ser emerge. Artificial e orgânico fundem-se, para dar origem a uma matéria única, onde a natureza e a escultura se (con)fundem. “Gramáticas Pardas” apresenta uma constelação de gestos que se prolongam uns nos outros. São inscrições de passagem, marcas deixadas num território em permanente transformação. A madeira parece recordar a violência lenta do tempo; a pedra, a persistência do que resiste; o vídeo, a impermanência que insiste em apagar e reinscrever. Como diz Ana Anacleto, “Talvez estejamos a falar de uma gramática da invisibilidade, que atravessa paisagens, corpos, memórias e territórios descartados, periféricos, semi-ocultos fixando-se precisamente na sua condição de liminaridade.”
© Fausto / CAAA, Guimarães
O gesto artístico de Carla Cruz e Cláudia Lopes aproxima-se de um cuidado geológico: observar, recolher, intervir apenas o suficiente para tornar visível o que já estava ali, oculto. É esse limiar entre o que permanece e o que se desfaz, como quem recolhe vestígios prestes a desaparecer. O encontro entre materiais intensifica, simultaneamente, a sensação de efemeridade e de continuidade. No cruzamento entre matéria encontrada e matéria transformada, ambas desenham uma cartografia que é simultaneamente íntima e crítica, revelando um mundo onde o humano não domina a natureza, mas se inscreve nela como mais uma forma possível. É dessa escuta atenta, quase ritual, que emergem sentidos novos, como quem desenterra com delicadeza camadas de tempo.
Leonor Guerreiro Queiroz
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