|
|
GUILHERME PARENTEMISTÉRIO E REVELAÇÃO. PINTURA E DESENHO 1960-70FUNDAÇÃO CARMONA E COSTA Rua Soeiro Pereira Gomes, Lote 1- 6º A e D, Edifício de Espanha (Bairro do Rego) 1600-196 Lisboa 30 OUT - 20 DEZ 2025
Os orbes das palavras, múrmura memória, diz o poeta. [1]
Em Mistério e Revelação, Pintura e Desenho 1960-70, de Guilherme Parente, na Fundação Carmona e Costa, contemplamos uma narrativa enigmática sugerida por signos gráficos inseridos na poética da cor. Nas suas pinturas, desenhos e gravuras, observa-se uma expressão de autenticidade pictórica, em que aflora plenamente a pureza da cor nas paisagens imaginadas e nas formas arquitetónicas no espaço. O pintor aventura-se na exaltação de formas, na expressividade criativa ou nos processos técnicos, de modo a diluir a linguagem subtil em ambientes oníricos, quer em pastel, aguarela, acrílico ou óleo, quer em gravura. Na obra de Guilherme Parente, o processo de criação é um ato intimista, onde percecionamos múltiplos universos pictóricos desde horizontes longínquos a paisagens com colinas ou praias, formas arquitetónicas que emergem em súbitos cenários inesperados ou inóspitas formas de cor que nascem da memória do autor ou de arquétipos do inconsciente coletivo. A poética de Parente revela-se, ao longo do seu percurso pictórico, uma constante procura de um lirismo de universos simbólicos, cujos significados se articulam uns nos outros, dialogando uma narrativa que se evidencia no todo, no ato da criação, como se orquestrasse uma subtil comunicação da linguagem visual. No mistério, irradiam-se iconografias arquitetónicas expandidas pela cor, que emanam uma espécie de eclosão de formas e de tonalidades, cujo universo se expande e se esvazia em repetidos e em diferentes contextos linguísticos. Todavia, o pintor movimenta-se na abstração do pensamento, onde seleciona e varia em ritmos e em vibrações, em formas e em nuances cromáticas, de maneira a inventar novos ambientes enigmáticos, aludindo a um imaginário coletivo. Portanto, a forma metamorfoseia-se na cor, a cor na forma, a linha na mancha e a mancha na linha. A composição aparentemente simples projeta-se na linguagem labiríntica do pensamento, em que o artista procura encontrar na abstração o discurso pictórico. Dos fragmentos de colunas arquitetónicas que nos aludem aos clássicos renascentistas, da cor vibrante e opaca a uma expressão pop, da intensidade lumínica à fluidez figurativa, das paisagens desertas a apontamentos de formas diversas, observamos, desta maneira, nas obras de Guilherme Parente, o simulacro enigmático da simbologia icónica.
Guilherme Parente. Pastel sobre papel, 1973. © Fundação Carmona e Costa
A sua obra é construída pela vibração de cores intensas, que flutuam no ambiente imaginário. O artista cria narrativas quase que aparentam uma intenção aleatória, a fim de a cor entoar na paleta azuis-claros, amarelos, verdes e laranjas, ou então, delinear com branco, preto e cinzento. Do desconhecido, brota um discurso onírico muito pessoal, a pintura ou o desenho apresentam-se como uma memória alucinante onde o espectador possa viajar por diferentes mundos alegres ou desconcertantes, como se a cor transbordasse para além do devaneio, ou se encontrasse através do movimento palpitante um sonho acordado. O pintor transforma as imagens em movimentos efervescentes de cores, sugerindo o devaneio na poética da cor. O artista convida o espectador a deambular pela poética da imaginação, abrindo novos caminhos para o psiquismo e a perceção da realidade, de onde habitam a liberdade e a beleza. Como não falar de uma beleza psicológica diante de um acontecimento sedutor da nossa vida íntima? Essa beleza está em nós, no fundo da nossa memória. Ela é a beleza de um impulso que nos reanima, que põe em nós o dinamismo de uma beleza de vida. (…) Que outra liberdade psicológica possuímos, afora a liberdade de sonhar? Psicologicamente falando, é no devaneio que somos seres livres (Bachelard, 1996, p. 95). [2] Testemunhamos a poética da imaginação, ou melhor, o dinamismo do espaço. O espectador perceciona a beleza da cor na obra de arte que expressa a memória, onde ela reflete o interior e o exterior, a imaginação e a realidade, a cor e o desenho, o figurativo e não-figurativo, como elementos narrativos de uma simbologia oculta, ou por outras palavras, uma reflexão sobre o devaneio artístico. Através das suas obras, sonhamos o limite da memória, das histórias e das experiências, as lembranças da nossa liberdade e da solicitude do ser na imaginação, como uma fervorosa memória ou uma manifestação da pura infância, vivemos imagens de frescura de um sonhador, um devaneio de um poeta. Escutemos Emily Brontë em “A Daydream”.
So, resting on a heathy bank.
Com estes versos, sonhamos o ser no devaneio. Com a obra de Parente, contemplamos o devaneio em diferentes narrativas, um olhar através da dialética de signos compostos, combinados com cores fluidas e descontraídas, ou opacas e intensas. As metáforas e os significados permanecem encobertos pelo artista, mantendo-os no mistério. As imagens discursivas que são agregadas à cor, desaparecem na dissimetria do espaço. O interior e o exterior desvanecem no discurso pictórico, com o intuito de serem captados pela imaginação do espectador. Entre a abstração e o vasto espaço pictórico, Guilherme Parente coloca-nos o problema do significado da imagem, que esvanece na nossa compreensão, apenas exaltando a sensibilidade estética da imaginação. As pinturas ou os desenhos apelam mais além da perceção do espaço interior do ser, que nos levam a apreciar a memória e o sonho através da poética do devaneio. Nestas obras, o espetador é convocado a contemplar o sonho acordado, por aclamar o tempo, o espaço e a esperança. Na revelação, as narrativas manifestam a harmonia, um modo de ver mais íntimo das suas composições, como sentimos nas palavras citadas pelo curador Nuno Faria (2025):
Harmonia é uma palavra que vem à mente quando contemplamos as pinturas de Guilherme Parente, o corpo principal do seu trabalho. Paira sobre elas, sopra no seu interior um ar que tudo une – árvores, plantas, animais, santos, demónios e outras aparições mais inusitadas, tais como seres alados, discos voadores, pirâmides, cogumelos, barcos com velas, colunas que se erguem hesitantes ou figuras como budas sentados na paisagem (…). [4]
Joana Consiglieri
:::
Notas [1] Capien, H. (1955). Signes. Segners.
|


























