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MIGUEL PALMALinha de MontagemCAM - CENTRO DE ARTE MODERNA Rua Dr. Nicolau de Bettencourt 1050-078 Lisboa 15 ABR - 03 JUL 2011 Quando em 1878 Hippolyte Gautier visitou a Exposição Universal de Paris, registou o assombro dessa experiência em Les Curiosités de l’exposition de 1878: guide du visiteur, ao referir-se aos engenhos mecânicos de então como os “temíveis e dóceis empregados” criados pelo “cérebro disciplinado” do Homem que era capaz de os parar com o “fraco esforço do dedo numa minúscula alavanca” (1). Este exemplo, que testemunha o confronto inicial do Homem com a máquina, introduz uma reflexão sobre sua capacidade de fornecer um mundo sem esforços e de provocar ao mesmo tempo admiração e receio. Mais de um século após o surgimento da máquina, existem hoje várias perspectivas sobre a complexa profusão de mecanismos técnicos que convivem connosco e que transformam hábitos e vivências, e que são entendidos ora como uma ameaça, ora como parte inequívoca de uma realidade humana. Para a exposição Linha de Montagem de Miguel Palma (Lisboa, 1964), a nave do Centro de Arte Moderna, projectada arquitectonicamente para acolher a sua missão pluridisciplinar inicial, foi convertida num pavilhão-fábrica pela reunião de esculturas-objecto num mesmo horizonte de organização espacial, fora de exigências estéticas, pelo recurso a um desenho expositivo solto, criando um diálogo interactivo entre a obra e o observador. Esta tentativa de criar um laboratório de ideias é visível também pelas características dos trabalhos apresentados através da marcada presença de esboços projectuais e de maquetes que acompanham a concretização de um raciocínio. Esta aparente mostra de inventos inserida numa sala de exposição, devolve um desequilíbrio instável e confuso na experiência do observador pela existência de um desvio no sentido comum e natural dos objectos. A colocação de objectos com funções desarticuladas numa sala de exposição desvirtua o seu propósito já que “o funcional não qualifica de nenhuma maneira o que está adaptado a um fim mas o que está adaptado a uma ordem ou a um sistema” (2). Miguel Palma trabalha num extenso terreno de configuração de conceitos para onde confluem a análise das ambiguidades e incongruências da racionalização do mecânico e do tecnológico e a sua desarticulação em relação à subjectividade do humano, na imposição de coordenadas não naturais na recepção da máquina pelo corpo. Cria engenhos para falar do modo como nos apropriámos dos objectos e como exercemos uma “quase autoridade da nossa presença no mundo ” (3). O artista não reproduz o falhanço da ideia de progresso no sentido óbvio, este raciocínio é esperado ao observador e retirado através da dinâmica da descoberta, impondo um envolvimento activo no processo de leitura da obra. Para criar esta desarticulação o artista recorre a procedimentos técnicos que são próprios da ciência para construir um efeito que pertence ao domínio do artístico, por exemplo em Pleura, 2009, onde cria um agrupamento de ambientes fabricados − o ar de hospital com ar fresco e ar puro, em que o resultado é uma escultura de formas geométricas. Esta relação entre a linguagem da arte e a ciência está presente em Pinturas Catalíticas, 2007, cujo processo mecânico criado por uma máquina resulta na representação de uma paisagem, um tema clássico na história da arte; em 80000 volts para Leonardo da Vinci, 2007 que reconfigura o processo da pintura e desmistifica o conceito de mão criadora; e também em Press me, 2001, dispositivo que produz uma miniatura de uma obra de Van Gogh quando um aparelho é activado. A criação de mapeamentos, mecanismos de controlo, sistematização e análise, está presente por exemplo na colocação de uma máquina de picar ponto no início da exposição que introduz na dinâmica da sala de exposição um procedimento abstracto e mecanizado. Outros processos de medição particularizam-se na incorporação da identidade do artista nas esculturas-objecto como poderemos ver em 34’5 vezes o meu tamanho, 2009, e em 1964 – 2044, 2004, que representa através de uma simbologia os 40 anos de vida do artista. A análise dos efeitos da máquina na dinâmica social verifica-se em T4 para sempre, 2001, e na automatização de movimentos em situações de recreio em Férias, 2010. Ainda a reconstituição histórica de A viagem maravilhosa, 2011, mostra como determinados aparatos técnicos sofreram transformações e que a partir de uma coordenada − a necessidade de resolução de problemas, se pode analisar raciocínios que se expressaram na técnica. Os efeitos do discurso artístico e a capacidade operatória da arte são utilizados na análise antropológica da extensão da nossa relação com a tecnologia que não se orienta exclusivamente para a denúncia da perversidade da máquina, mas para a relação híbrida entre o querer-fazer e a consciência da ameaça dessa acção, o que demonstra uma postura crítica paradoxal. Engenho, 1993, mostra uma relação de entusiasmo conhecedor da ineficácia e desarticulação da máquina face a um terreno do que é humano mas enfatiza o espírito visionário e a capacidade humana de projectar e construir. No discurso de Miguel Palma, a hostilidade não se dirige ao objecto em si mas ao ímpeto destrutivo do homem, tal como verificamos por exemplo em Plataforma Shell que reproduz a apropriação desregulada dos recursos naturais pelo Homem. Desta ambivalência entre a denúncia do desequilíbrio provocado pela convivência do humano com a máquina e a vontade de a construir, Miguel Palma traça, num diálogo entre a arte, a ciência, a história e as práticas culturais e sociais, um reportório de invenções e ideias, a partir do qual constrói uma postura crítica e interventiva em proximidade com a vida. NOTAS (1) GAUTIER, Hippolyte; DESPREZ, Adrien Les Curiosités de l’exposition de 1878: guide du visiteur. Paris: Ch. Delagrave, 1878. (2) Id., p. 65. (3) BAUDRILLARD, Jean, El sistema de los objectos. Madrid: Siglo XXI, 2010, p. 6.
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