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COLECTIVAFRONTEIRAS POROSAS / PASSADO PRESENTE![]() LARGO RESIDÊNCIAS / QUARTEL DO LARGO DO CABEÇO DE BOLA Largo Cabeço da Bola 1150-081 Lisboa 07 JAN - 26 FEV 2023 ![]() A Palestina: tapetes, limões, ocupação![]()
A exposição organizada pelo colectivo (Un)Common Ground (até 26 de Fevereiro) no centro de arte Largo em Lisboa (agora alojado temporariamente num antigo quartel da Guarda Nacional Republicana, à espera da sua transformação em edifício residencial) compreende três partes: duas exposições, Fronteiras porosas e Perspetivas de paisagens em desaparecimento (comissariado de Rula Khoury na primeira e de Debby Farber na segunda), mais um muro exterior de fotografias do colectivo palestino-israelita Active Stills. Esse muro inclui uma centena de imagens em quadros ou em grande formato sobre os temas da demolição de casas, da expansão de colonatos, dos bombardeamentos de Gaza, da resistência, dos checkpoints e das famílias dizimadas. Isso permite perceber do início a diferença que separa a fotografia documental, como a que praticam os membros do Active Stills, da interpretação artística e criativa da realidade, como fazem os artistas expostos no interior. Não que a fronteira entre as duas seja estanque (como, em França, testemunham Bruno Serralongue ou Luc Delahaye, e muitos outros), e além disso o trabalho serial de Active Stills sobre os desaparecidos mostra-o bem, com retratos de palestinianos mortos aquando dos bombardeamentos de Gaza nas mãos de um parente sobrevivente. Mas, num caso, a vontade de documentar e o testemunho militante prevalecem sobre a estética, e a mensagem é claramente transmitida, sem recuo, sem distância; enquanto que no outro caso, o interesse (o meu, em todo caso) nasce primeiro da forma e da subtileza das imagens, por trás das quais percebemos a sensibilidade do artista (é, por exemplo, uma das grandes forças de Taysir Batniji, cuja obra é biográfica antes de ser política, universal e não puramente palestiniana). No interior, por exemplo, fala-se também sobre checkpoints, mas de maneira bem diferente. Samira Badran (de quem eu tinha admirado em Sharjah um trabalho sobre este mesmo assunto) realizou um filme de animação, Memory of the Land, onde um corpo ferido é prisioneiro de um checkpoint, submetido à violência da ocupação, colidindo com muros, com barreiras, com torniquetes, tentando escapar, em vão. Esse corpo, reduzido à pélvis e às pernas, acéfalo, corre em todas as direções, o seu joelho esquerdo é dotado de um olho, o direito está ferido e sanguinolento, talvez o seu coração. Só ele é colorido nesse universo todo cinzento; os seus companheiros de miséria parecem fantasmas. Os ocupantes carcereiros exprimem-se numa linguagem inventada cuja violência sonora perfura os nossos ouvidos, como o corpo da personagem é perfurado pela violência física deles. Durante esses 13 minutos ficamos suspensos, com falta de ar, o horror nos nossos olhos. Quem já passou, uma vez na sua vida, por um checkpoint (certamente, no meu caso, como um estrangeiro privilegiado) não pode separar-se dessas imagens. É com limões que Jumana Emil Abboud se confronta no checkpoint e testemunha contra a ocupação do seu país. Limões de um amarelo brilhante que ela colheu na quinta da sua família na Galileia, que transporta dentro da Cidade Velha de Jerusalém no meio da multidão heterogénea e barulhenta, depois no táxi colectivo que percorre o muro silencioso, hostil, ao longo do qual a câmara desliza, contrastando o brilho do limão e o cinzento do muro, até ao checkpoint de Qalandyia. A câmara segue-a entre as barreiras, frente às proibições, na espera do sinal verde para avançar; os limões ficam encurralados sobre o tapete rolante do detector, as imagens oscilam, é interdito também filmar. Continuando a pé, ela deposita ritualmente os seus seis limões num terreno baldio após o checkpoint, segundo a mesma disposição que no jardim dos seus avós no princípio, unindo assim simbolicamente as terras palestinas separadas pelo muro, depois atravessa o checkpoint no sentido inverso. Ela está vestida de preto e carrega bolsas de caça vermelhas nas quais transporta os seus limões, como as granadas de um combatente. Neste filme de 20 minutos, passamos de corpos movendo-se da Cidade Velha ao deserto vazio ao longo do muro, e aos corpos constrangidos do checkpoint; passamos dos ruídos animados da cidade ao som monótono do motor do táxi, e aos latidos cegos em hebreu do checkpoint. Este contrabando de limões (ela oferecerá em seguida o seu sumo aos habitantes de Ramallah) está na continuidade do seu trabalho sobre as tradições palestinianas, os contos de fadas e a evocação de um tempo em que cada família palestiniana tinha um jardim com vinha, um limoeiro, uma figueira, uma oliveira e uma romãzeira. E é com tapetes que Fatma Shanan testemunha contra a ocupação. Tapetes que, na sua cidade de Julis na Galileia, rapazes e raparigas da cidade, como numa performance coreografada, instalam no topo da casa da sua família, na rua diante dela e no seu jardim, compondo um mosaico colorido e reapropriando-se assim do espaço que os seus pais ou avós perderam há 75 anos durante a Nakba. Os motivos tradicionais dos tapetes e os corpos dos jovens protagonistas compõem como um imenso tapete que a câmara integra como um elemento da paisagem elevando-se, transportada por um drone. Fatma Shanan é antes de tudo uma pintora e o tapete é um leitmotiv na sua obra. Com ela, os tapetes não têm apenas um papel prático e doméstico, eles adquirem um papel cultural, identitário, político. Saem da intimidade da casa para serem expostos nesses espaços semi-públicos, ainda ligados ao lar, mas visíveis pelo estranho, pelo Outro, que eles desafiam, como para afirmar: “Não ficaremos confinados ao medo, mas cruzaremos as fronteiras que nos querem impor e ocuparemos o espaço público; não permaneceremos motivos folclóricos orientalizados, mas afirmaremos a nossa identidade”.
Miki Kratsman & Shabtai Pinchevsky, Safsaf. Posição: 33°0'32" N 35°26'37" E. Altitude: 914,8 m. Dia, hora: 8.8.2018, 16h30. Do projeto Anti-Mapping, 2019.
São vistas aéreas muito mais trágicas as que propõem Miki Kratsman e Shabtai Pinchevsky. Kratsman (que é além disso presidente da organização Breaking the Silence) passou, como atrás referimos, de um trabalho de fotojornalista reportando, entre outros, as intifadas, a um trabalho mais distante, mais criativo, mais artístico (ver este livro com Ariella Aïsha Azoulay). Com o seu antigo aluno Pinchevsky, adepto da exploração de arquivos fotográficos e da sua reconstituição, ele apresenta aqui fotos aéreas de três das 500 (ou mais) aldeias palestinianas destruídas pelas tropas sionistas durante a Nakba, num projecto intitulado Anti-Mapping. Enquanto que, no resto do mundo, temos acesso, via Google Earth por exemplo, a fotografias aéreas com uma resolução de 0,5 m2 por pixel, Israel proíbe por cima do seu território e daqueles que ocupa uma resolução superior a 2,5 m2 por pixel. Kratsman e Pinchevsky contornaram assim esta censura realizando o seu próprio “anti-mapeamento” dessas aldeias: podemos assim distinguir aí, dissimulados pela vegetação, os vestígios indígenas, ruínas de casas ou de vedações, traços de caminhos abandonados. Cada imagem é marcada: coordenadas, altitude, hora e data da captura. Em Al-Jammama, podemos distinguir construções, um muro, marcas de ruas abandonadas. Na exposição, o espectador perscruta essas imagens, tentando discernir uma quebra na continuidade da imagem, indício castanho no meio de prados verdes, um punctum do passado negado pela história dos vencedores que fazem tudo para o invisibilizar. Para além do aspecto documental, é essa interação deliberada com a imagem que dá tanta força a essas imagens.
Miki Kratsman & Shabtai Pinchevsky, Anti-Mapping, Tantura, 03/01/2022 11h00, fotografia.
Uma imagem diz respeito à aldeia de Tantoura, que não foi só destruída, mas foi o lugar de um dos numerosos massacres de civis, duzentos deles estão enterrados numa vala comum sob o parque de estacionamento perto da praia; massacre negado por Israel, o estudante que o documentou primeiro foi ostracisado, e só recentemente começaram a emergir as lembranças dos soldados massacrantes. Nessa imagem, nenhuma ruína é visível: a invisibilidade total dos Palestinianos, tal como organizada pelo estado israelita. O único artista de fora, Ryuichi Hirokawa (o fotógrafo do massacre nos campos de Sabra e Shatila), justapõe as fotografias actuais de quatro das 500 aldeias palestinianas destruídas com as de famílias originárias dessas aldeias, agora exiladas e refugiadas em campos. Uma está completamente arrasada, nada subsiste; uma outra tem ainda casas em ruínas sobre terraços; numa terceira, os Judeus ocuparam a mesquita e habitam-na. A quarta é o exemplo mais edificante: a vila de Ayn Hawd, uma vez os seus habitantes mortos ou expulsos, tornou-se um colonato artístico com dois museus, 22 galerias e 14 ateliers para artistas. Foi criado por Marcel Janco, que passou de Dada à colonização, e, cúmulo da ironia, abriga um pedaço do Muro de Berlim, um maravilhoso símbolo de inconsciência: não podemos encontrar melhor que transplantar para uma aldeia destruída pela colonização a ruína de um muro destruído pela democracia. Se visitarem esta encantadora vila, vão contar-vos a sua história, que começa em 1949: antes, claro, nada. Tão absurdo como a importação do Muro de Berlim é a acção da associação israelita Starting Over Sanctuary, que, enquanto os habitantes de Gaza são mortos pelo exército do seu país, "salva" os burros de Gaza do matadouro: um sentido das prioridades esclarecedor (e como têm muitos burros, alguns foram exportados para França). Sharif Waked, sempre irónico, mostra-nos um burro que escapou a este tráfico: tornou-se zebra no zoológico de Gaza, onde os seus predecessores, as verdadeiras zebras, morreram em consequência dos bombardeamentos ou de fome. Trazer uma zebra do Egipto pelos túneis teria sido muito dispendioso, o proprietário do zoo contentou-se então em pintar um burro. No vídeo de Waked, o burro toma um duche e as cores vão-se. Uma bela alegoria do estado da Palestina: fazer como se, como se o bloqueio não existisse, como se fosse uma verdadeira zebra, como se fosse um verdadeiro país. Na mesma sala, Hanna Qubty joga com a semelhança entre árabe e hebreu num vídeo com peixe pintado de vermelho e peixe pintado de azul em torno do personagem do pessoptimista de Émile Habibi. E os lampiões de Mohamed Abusal iluminam a gás as noites de Gaza. De notar também que há algumas conferências (incluindo Shlomo Sand), a projeção do filme Tantura de Alon Schwartz, e inúmeras obras traduzidas em português.
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Fronteiras Porosas Passado Presente. Perspetivas de paisagens em desaparecimento Data: 7.1 – 26.2.2023, qua – dom, 12h – 23h Largo Residências / Quartel do Largo do Cabeço de Bola ![]()
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