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SNAPSHOT. NO ATELIER DE...




Vista do atelier do André Silva. © Joana Mendonça.


Vista do atelier do André Silva. © Joana Mendonça.


Vista do atelier do André Silva. © Joana Mendonça.


Vista do atelier do André Silva. © Joana Mendonça.


Montagem da exposição. © Joana Mendonça.


Inauguração da exposição, sputenikthewindow. © Joana Mendonça.


Inauguração da exposição, sputenikthewindow. © Joana Mendonça.


Vista da exposição, sputenikthewindow. © André Silva.


Vista da exposição, sputenikthewindow. © André Silva.


Vista da exposição, sputenikthewindow. © André Silva.


Vista da exposição, sputenikthewindow. © André Silva.


Vista da exposição, sputenikthewindow. © André Silva.


Vista da exposição, sputenikthewindow. © André Silva.


Vista da exposição, sputenikthewindow. © André Silva.


Cutis #9, 2022. Tinta acrílica em tela de linho, 30x24 cm. © André Silva.


Cutis #12. Tinta acrílica em tela de linho, 60x50 cm. © André Silva.


Estilhaços #2 2020-2022. Tinta acrílica em tela, 24x18 cm. © André Silva.


Frágil 2, 2019-2021. Tinta acrílica em tela, 60x50 cm. © André Silva.


Operação, 2020-2021. Tinta acrílica em tela, 30x25 cm. © André Silva.


S Tílulo, 2021. Tinta acrílica em tela, 40x30 cm. © André Silva.

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José Pedro Cortes




ANDRé SILVA

JOANA MENDONçA


30/04/2022

 

 

Esta conversa/entrevista surge no contexto da preparação da exposição Palimpsesto inaugurada a 9 de abril 2022 na galeria sputenikthewindow [1] no Porto. A série que motiva esta exposição vai buscar o título a um método/processo que abrange uma linha temporal grande, tendo em conta que o André trabalha em várias séries em simultâneo, mantendo velocidades e ritmos de trabalho diferentes para cada uma. Conhecendo o André Silva desde a altura em que fomos colegas de turma, na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (2000-2005), sei que o processo é algo que o mantém intrinsecamente ligado às séries que produz, por vezes persistindo nos métodos, por receio de os abandonar demasiado cedo. Sistemático e obsessivo por natureza, não há forma demasiado lenta ou demasiado difícil para conseguir chegar a um resultado: dificilmente opta por atalhos, quando pode aproveitar a viagem e observar a paisagem.
A par da poética da reutilização e da bricolage segundo Levi-Strauss (1970) [2], André Silva explora um eterno retorno, utilizando fragmentos de outras obras, mantendo as séries num limbo de não saberem de si mesmas. Talvez por isso a exposição nos pontue com alguns elementos processuais, aparentemente inacabados, ou será que não?
Enquanto preparávamos esta conversa, visitei ainda o atelier do artista em Mozelos, Santa Maria da Feira, que me permitiu conhecer ainda melhor o processo da série que podemos ver na galeria sputenikthewindow até 14 de maio 2022.


Por Joana Mendonça

 

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JM: Olá André. Podias começar por falar um pouco acerca do surgimento da série Palimpsesto?

AS: Claro que sim. A série aparece um pouco por acaso, em 2014. Na altura estava a fazer uma série que ainda vinha ao encontro das ideias em que andava a trabalhar anteriormente e que tinha a ver com as psicogeografias marginais, próximo da deriva situacionista. Por alguma razão, naquela altura, eu não estava a ficar satisfeito com as pinturas que estavam no cavalete, então decidi encostá-las por algum tempo no atelier. A nível metodológico, eu já usava sempre a fita cola para delinear as formas, para criar uma máscara, entretanto comecei a integrar alguns pedaços na composição para que fizessem parte dela. A fita cola tornou-se um dos motivos para aquelas pinturas, mas é importante dizer que isto foi em 2014: comecei a obliterar algumas formas, a criar algumas composições e a sobrepor outras camadas de forma experimental e a criar fundos. Entretanto reparei que a fita cola delineava as formas e se tornava protagonista, mas mesmo assim as pinturas que resultavam eram em si abstratas. Claro que o que lhe dava um lado reconhecível e pictórico eram as fitas em si, porque eu já na altura usava as mais coloridas.


JM: Ao preparar a exposição no sputenikthewindow, tinhas dúvidas acerca do título Palimpsesto. O que te fez escolher na mesma este título?

AS: Nunca tinha usado este título, e já que a série era constituída - não sei ao certo - por cerca de 40 pinturas, porque não assumir o processo? A ideia é também parte do palimpsesto em si, embora ele se fragmente. Dentro destas pinturas consigo encontrar três momentos: o tal primeiro momento em 2014; um segundo a partir do qual eu reaproveitava realmente algumas telas que não tinham capacidade de sobreviver, e que eram removidas, lixadas para depois voltar a pintar - sempre em analogia à ideia do que é o palimpsesto. Reaproveitava algumas composições, e deixava sempre alguns vestígios das pinturas anteriores. O terceiro momento foi quando decidi assumir esses vestígios e perceber que se tratava de uma série, porque senti que tinha ali a veracidade do processo, que acabava por fazer a própria mediação da obra.


JM: Tenho uma curiosidade. Quando falas acerca do inicio deste processo, mencionas que pela primeira vez olhaste para a fita cola como um elemento da composição. Essa pintura está aqui na exposição?

AS: Não, essa pintura não está aqui. Quando eu a mostrei pela primeira vez em público, ela foi adquirida. Acaba por haver um hiato, porque depois só voltei a fazer outra pintura desta série em 2016. Em 2018/2019 voltei ao tema, mas nunca dedicando totalmente a ele. Entretanto, só no confinamento me voltei para este tema novamente, e embora a maioria destas telas tenham sido realizadas durante o confinamento, esta não é uma série sobre o confinamento. Embora estas cores, estas fitas, entretanto são muito reconhecidas por todos, devido a este fenómeno pandémico. Quando íamos a qualquer superfície comercial no início do (des)confinamento, era com estas fitas que faziam as marcações de distanciamento, obstáculos, usadas até para fazer sinalética. Agora, se eu tivesse de dizer qual o tema da série, até é mais acerca da história da pintura do que acerca da pandemia, mas estas analogias têm sido feitas, e isso não me incomoda.
Podemos ver aqui composições suprematistas, a lembrar o Malevitch.
Há ainda outra coisa que me parece importante, que foi a forma como mudei a minha maneira de trabalhar, do modo vertical em pintura de cavalete, para um modo horizontal, deitado, fazendo referência a uma terminologia usada nos anos 1950, que era o chamado “Flatbed Picture plane” [3], um termo cunhado pelo Leo Steinberg, que falava de um tipo de pintura realizada pelo Robert Rauschenberg e até pelo Andy Warhol, e que é quando olhas para uma imagem (um plano) de onde é retirada a noção de espaço ou de profundidade. Quando estes artistas usavam este método, aquilo passava a ser um plano (uma ideia), onde se ia compondo elementos, quebrando aquilo que era a pintura desde o início do século XX, a ideia de janela para o mundo, criando uma mimésis. Aqui não tenho essa intenção, ao compor os elementos vai sendo de uma maneira mais ou menos livre, só que depois volta novamente ao plano vertical para quando queremos ver a pintura. Podemos querer ver a janela metafórica ou não.


JM: Agora fizeste-me recordar uma coisa. Quando dizes que a pintura é feita na horizontal, mas depois apresentada na vertical. No entanto, aqui tu escolhes algumas pinturas para mostrar na horizontal.

AS: Sim, exatamente. Mas porque uma das ambições desta exposição era mostrar um pouco do processo. Mesmo sendo encenado, está aqui tudo.
Também dizer que as telas desta série são todas de tamanho médio e pequeno - a tela maior desta série tem 1,30 m por 97 cm - como eu aqui queria mostrar um lado mais íntimo desse processo, acabou por ser também uma coincidência que as pinturas mais pequenas são as que se apresentam no plano horizontal.


JM: Há um artista que faz um bocadinho essa apologia, no fundo até para ironizar a ideia da pintura feita no chão ou numa superfície horizontal para depois ser colocada na vertical (penso aqui no Cézanne também), que é o Mel Bochner. Naquela exposição que esteve em Serralves em 2013 (na sala da piscina) não sei se te recordas, fazia umas composições propositadamente no lugar, com a pintura em spray sobre jornal - que normalmente é usado para proteger o chão - e havia até alguma contradição na forma como depois a obra era vista porque ele intencionalmente provocava ao público uma dificuldade em visualizar a obra, nunca se tinha a noção do todo. Não sei se já tinhas pensado nessa possibilidade, nessa relação.

AS: Não, não tinha pensado nisso. Embora depois aqui haja momentos de agressividade, nas pinturas em que realmente lixo as superfícies, mas depois como elas são envernizadas com várias camadas, essa textura deixa quase de existir, mantendo-se uma textura visual - tu sabes que está lá, mesmo que não lhe consigas tocar. Tem um lado irónico, a ideia tátil é mesmo uma ilusão, não sei se lhe posso chamar um tromp L’oeil - que também está ligado à própria ideia da pintura - porque não existe essa ilusão do “outro plano”, é tudo muito bidimensional, sempre como se tratasse de uma colagem, até com alguma precisão, mesmo sabendo que nem tudo é pensado.


JM: As tuas telas da série palimpsesto começaram por ser “palimpsestos” formais, ou seja, executadas através da reutilização de telas ou dos seus excedentes, até de telas que consideras falhadas, como disseste.

AS: Algumas reenquadradas, sim. Outras anuladas, em que aproveitava o formato da tela, sem as cortar e a partir daí começava com outra composição, sempre deixando vestígios das camadas anteriores. Eu uso sempre camadas muito finas de tinta, às vezes posso ter dez camadas de tinta numa tela, e isso não ser percetível, porque ao usar camadas finas, a pintura continua com um ar muito leve.


JM: O que te fez começar do zero nas telas “Cutis”? Sentiste que precisavas de algo sem história?

AS: Sim, e também provavelmente porque o próprio processo já estaria saturado. Tinha vontade de continuar a usar a fita-cola e não queria ainda começar uma série diferente, mas precisava de alterar alguma coisa. “Cutis” é um desdobramento da série em si, mas com um processo de acumulação, enquanto que com o anterior, eu tinha sempre de aproveitar, num alinhamento arqueológico.


JM: Quando falamos em fita cola, nós que estudámos pintura na Faculdade de Belas Artes, sabemos que a fita cola era estrutura, máscara, stencil, no fundo um elemento essencial na produção de resultados rigorosos na pintura.
Consideras que a fita cola faz parte do teu processo por seres uma pessoa rigorosa ou porque ganhaste esse hábito nas Belas Artes?

AS: Talvez tenha que escolher as duas coisas, até porque isto é um processo. E como processo que é, e como vou trabalhando ao mesmo tempo noutras séries, tento manter o mesmo rigor, mas sem o recurso à fita cola. Repara que aqui é quase uma conversa que acontece comigo mesmo: porque não usar a fita cola para ajudar a construir a própria fita cola. Às vezes criam-se situações caricatas, porque como a escala é de 1:1, e a fita cola é pintada com a cor aproximada, acontece-me ficar na dúvida entre qual é a verdadeira e qual é a falsa (risos).


JM: Continuas a usar a fita cola como recurso para pintar, imagino. Deitas fora a fita cola real e pintas a ilusão. Nunca sentiste que estavas a manipular, ou a enganar o espectador?

AS: Já, já me aconteceu. Testo isto com parceiros, com quem é mais fácil discutir as questões do conceito e da técnica. Mas os meus amigos e familiares que não tenham o hábito de visitar exposições são facilmente enganadas (risos).


JM: E isso agrada-te?

AS: O objetivo disto não é tentar enganar as pessoas, é criar imagens, produzir pinturas. E esta é uma das formas, é mais uma investigação no campo da pintura. Acho que se usasse sempre esta técnica, já tinha razões para ficar preocupado.
Alguém me disse que isto parecia uma forma de curar as telas, como se elas estivessem furadas e eu estivesse a curá-las de alguma coisa, a tapar, a cobrir. Especialmente na série “Cutis”, em que o pano cru remete mais para a ideia de pele, a metáfora torna-se mais evidente.


JM: Em relação a essa ideia que mencionas - do público trazer coisas novas - vais inaugurar no espaço sputenikthewindow, que tem as suas particularidades: é um espaço expositivo pequeno no qual optaste por colocar uma mesa no centro com trabalhos de escala reduzida. Não tens receio que o público se sinta tentado a mexer nas peças?

AS: Não. Poderá eventualmente acontecer, mas acho que esse risco existe sempre em qualquer exposição. De uma maneira geral, penso que as pessoas estão sensíveis para as obras expostas, há um respeito quase em modo distanciamento em relação ao que está na parede.


JM: Mas eu estava a pensar no público que vem habitualmente ao sputenikthewindow (como eu), que tem filhos pequenos. Mostraste estas pinturas mais recentes a crianças?

AS: Sim, por acaso já mostrei. Sabes que eu gosto muito de trabalhar com modelos, e já dediquei algum tempo à produção de maquetes, com muitos detalhes pequenos. Acho que foi a única vez em que alguns elementos das minhas obras desapareceram durante uma exposição (risos). Mas claro que é um risco, e eu estou disposto a corrê-lo.


JM: Gostava de te perguntar também - como alguém que nunca parou de pintar desde a faculdade - como funciona o tempo nas tuas pinturas? É importante para ti teres a noção do tempo que demoras em cada série, cada peça? Quanto tempo demoras em cada? Dá um exemplo.

AS: Há aqui pinturas que demoraram muito mais do que outras. Sendo que são palimpsestos, a verdade é que algumas foram sendo construídas ao longo de anos: ora vou pintando, ora ficam em stand-by, ora regressam. Têm o tempo todo: dois a três anos (algumas), noutras demorei cinco. As “Cutis” devem ser as únicas que eu considero rápidas.
Mas para mim o tempo é para ser respeitado, eu cheguei aqui e demorei porque precisava de percorrer o caminho e demorar este tempo. Ao respeitar este processo, a verdade é que cheguei a uma depuração: não quero dizer que com isto concluí. Mas também não sei se me interessa fazer isto durante muito mais tempo.


JM: Quando visitei o teu atelier (em Mozelos, Santa Maria da Feira) em fevereiro deste ano, fiquei com a sensação de que o tempo está suspenso lá dentro. Sentes o mesmo? Achas que é pelo facto de não se localizar no centro da cidade do Porto que se torna diferente?

AS: Torna-o muito diferente sim. Até porque ali ainda se respira o ar puro, que me permite deixar as pinturas respirar, sem sentirem grande pressão. Isso aliado ao facto de ter mais espaço físico, permite-me preservar esta metodologia de criar várias séries em simultâneo.


JM: Não sentes necessidade de partilhar atelier com outros artistas?

AS: Quando terminei a faculdade (circa 2005), durante alguns anos ainda consegui partilhar atelier com colegas - no caso a Ana Santos - e gostava de ir discutindo ideias com eles. Mas também tinha momentos em que só conseguia estar sozinho, para poder pensar, ver, contemplar. De qualquer forma, eu tive sempre um pequeno atelier em casa, porque tinha noção de que as ideias para trabalhos podiam surgir em qualquer momento, e mesmo que fosse só para uma anotação, um esboço, sempre quis ter materiais por perto.
Partilhar um espaço é muito bom, mas às vezes pode transformar-se numa forma de pressão adicional, sabes? Porque nem sempre queremos falar, há dias em que o silêncio no atelier é essencial, neste momento eu sinto que o silêncio é uma parte do meu método de trabalho.


JM: A Lourdes Castro dizia isso, que é no silêncio que se consegue criar, tanto no silêncio como no escuro.

AS: E o silêncio por vezes também se torna ruído.
Eu também sinto noutras alturas, que talvez por não encontramos as palavras certas, é muito difícil falar acerca do nosso próprio trabalho, quando ainda está em processo. Tive sempre um lado solitário e um lado de partilha, e gosto deste limbo. Quando preciso do feedback, gosto de convidar pessoas a vir ao atelier, e gosto que me visitem. E também gosto muito de ouvir rádio.


JM: Sobre o que fala o teu trabalho André? O teu trabalho todo, não apenas esta série.

AS: O meu trabalho é acerca da ideia de espaço, mesmo que esta série, por exemplo, não tenha aparentemente uma referência, uma linha de horizonte, e por vezes parecer até que as coisas estão a flutuar. Nesse sentido, a pintura, que é da ordem da mimésis, ao mesmo tempo está sempre a fazer uma alusão ao espaço metafórico ou simbólico. Ou seja, muito próximo daquilo que é a deriva situacionista, como já tínhamos falado há pouco: o meu trabalho começa sempre por essas caminhadas no espaço urbano, em que deambulo, devagar, e levo a máquina fotográfica para encontrar os meus motivos. Não trabalho a partir da realidade, mas é sempre através de uma mediação, quer seja através da fotografia ou da construção de modelos (maquetes) que replicam uma ideia de realidade. Depois há um segundo momento em que vou para o atelier, e a partir do material que já recolhi, através de um distanciamento desse primeiro momento, realizo esboços, esquemas. Às vezes acontece sentir a necessidade de regressar a esses lugares, e voltar a fotografar ou apenas voltar a olhar in situ.
Neste sentido, acho que a minha pintura não é representativa, não é resultado de uma documentação, mas antes da construção de um lugar metafórico, uma ideia de realidade que é construída por mim.
Sempre me interessei pela arqueologia industrial, não necessariamente ligada às questões de memória ou de tempo, porque podem ser coisas muito diferentes, mas os objetos em si, as estruturas metálicas edificadas, as inclinações e as subtilezas.
Acho que a minha pintura às vezes se torna barroca, e um dos meus passos metodológicos é sempre o da simplificação, porque começo por querer dizer muitas coisas numa tela, depois apago, simplifico, acrescento outra tela e começo uma série - ou relaciono com outra série anterior.


JM: O conceito de palimpsesto é muito importante para o desenho contemporâneo, mas ao mesmo tempo evoca um passado, na lógica de recuperar espaço no pergaminho para escrever ou desenhar novas mensagens. Tu sentes-te mais um artista contemporâneo que vive e experiencia o momento atual, ou um artista do passado com ramificações para o presente?

AS: Hoje em dia, tudo a que tenho acesso é inevitavelmente contemporâneo, mas eu sempre revisitei os clássicos, e gosto de o fazer e de o repetir. Sinto que aprendi muito com os pintores clássicos. Agora como dedico o meu tempo a assuntos atuais, vejo-me como contemporâneo, como um artista deste tempo. Mas nunca esquecendo a relação com a aprendizagem do passado, que tento revisitar sempre que possível.


JM: É claro que esta pergunta pode ser considerada uma provocação, mas como estavas a falar desse lado barroco do teu processo de trabalho, achei que encaixava aqui bem.
Acompanhas o percurso de outros artistas? Portugueses, internacionais? (eu sei que sim). Qual foi a ultima exposição que viste que teve impacto em ti? De que te lembres.

AS: Deixa-me pensar. Uma que neste momento está em Serralves, do artista Mark Bradford. Pela escala, que sabia que eram gigantes. Não julguei que fossem tão matéricas como são, e foi uma surpresa nesse sentido. Como eu tenho andado a explorar a ideia do palimpsesto, a obra dele é uma forma muito matérica de palimpsesto, muita daquela matéria é retirada de cartazes de rua, em que parece que volta a remover. E achei interessante o facto de a maioria das peças não estarem engradadas. Quase que poderiam ser pergaminhos que se enrolam e desenrolam.
Agora, o que senti foi que as salas de Serralves dão um caráter mais confortável às pinturas, que com aquela escala monumental, parece que assentam ali mesmo bem, e até parecem mais pequenas.


JM: Ainda acerca do impacto, algum artista que (até hoje) te fez repensar ou mudar alguma coisa no teu trabalho, ou no teu processo? Quem? Fala um pouco acerca disso.

AS: Não sei se consigo encontrar assim uma referência única, há varias sem dúvida. Enquanto estudante, quando tive oportunidade de viajar e de realizar o programa Erasmus, houve dois artistas diferentes que me marcaram: um foi o James Rosenquist, artista da Pop Art americano, tive oportunidade de assistir a uma conferência realizada no Museu Guggenheim de Bilbao, e outro foi o Matthew Barney, onde assisti ao Cremaster Cycle completo. Foi extremamente marcante tomar consciência do universo de Barney, as simbologias, a construção de objetos, culturas, as performances. Nunca tinha visto aquele tipo de vídeo arte assumida daquela forma.


JM: Consideras importante estar a par do que se passa nas artes plásticas a nível internacional ou achas que é possível o artista solitário? Achas ainda que é possível ver demasiadas coisas?

AS: Sim, acho que é possível a circulação de demasiadas imagens. Agora, não acredito na ideia de que o artista tenha de ficar isolado. Agora, o artista contemporâneo também não pode estar à espera de descobrir imagens novas perfeitas, porque as experiências são mais ou menos semelhantes em todo o lado, e hoje em dia, as distâncias também já se anularam, não é.
Nós, artistas, claro que não conseguimos acompanhar tudo, o dia não teria horas suficientes para tal, resta-nos acompanhar os artistas ou instituições que vão no sentido dos nossos interesses. Às vezes, pode ser suficiente ver uma imagem que nos agrada, e até não sabermos de quem é, mas isso chegar para nos aconchegar o dia. Outras vezes encontramos um artista que se aproxima muito do nosso trabalho, ou algo que até queríamos fazer, e isso condiciona-nos; mas o resultado não significa que o processo seja semelhante, podem até ser completamente díspares.


JM: A aparência desta exposição sugere que estamos perante um processo, não é? Essa foi uma das ideias que já conversamos, parece que estamos a meio de alguma coisa. Achas que o público vai sentir que o artista está a partilhar algo de si? Gostas deste tipo de desafios quando visitas exposições, em que parece que a mensagem está encriptada, ou preferes quando as coisas são mais claras? Enquanto público, quero dizer.

AS: Gosto de mensagens encriptadas (risos). Gosto de poder fazer várias interpretações, e de ficar com vontade de saber mais, investigar. Não é a primeira vez que eu apresento esta ideia do processo, da construção, mas durante muitos anos resisti a esta ideia, tenho de confessar. Não sei se tem a ver com algum defeito de formação, pelo facto de, enquanto estudante, ser importante o processo porque o professor acompanhava, mas precisávamos depois de ter o trabalho acabado: não podia ser entregue um trabalho incompleto. Claro que aquele contexto (de escola) seria o ideal para compreender o erro, e a importância de errar e ter de recomeçar, mas eu sinto que nos foi incutida sempre a ideia do resultado final como o mais importante. E eu, durante algum tempo, na minha “gaveta secreta”, guardava os meus processos, porque achava que não era suposto partilhar.


JM: Falaste agora no teu processo de formação nas Belas Artes do Porto. Há alguém que te tenha marcado mais? Professor, colega?

AS: Sim, acho que houve pelo menos três professores que me marcaram muito, por razões diferentes, claro. O Pedro Tudela, que foi meu professor durante três anos, o Baltazar Torres também foi meu professor durante mais do que um ano, e esteve bastante presente, e o Eduardo Batarda, claro.


JM: Estava à espera desse.

AS: Esse era mais do que um professor de pintura, era uma figura enciclopédica, marcou-me muito.


JM: Mas alguma vez sentiste que podias ser “outro” artista, se não tivesses passado por estes professores no teu percurso?

AS: Certamente seria, claro que sim. Também tive, durante a experiência de Erasmus, que já mencionei, uma professora que me marcou muito, a Ana Múgica.


JM: Voltando à presença da fita cola nesta série, tens algum método do tipo usar apenas três em cada tela? Ou outro método diferente?

AS: Sim, por norma tenho. Mas o que acontece na maioria das vezes é que deixo que a pintura encontre a sua própria métrica, ou por não ser suficiente, ou por sentir que falta alguma coisa. Nem todos os tipos de fica cola aparecem em todas as telas, mas tem a ver com a necessidade de cada composição se sentir concluída. Como a fita cola ajuda a definir as linhas de força da composição pictórica, são também elas que definem como é que a pintura deve acabar, o momento em que temos que parar.


JM: A certa altura mencionaste que, enquanto estavas a trabalhar nesta série, encontraste por acaso o trabalho do artista holandês Kees Goudzwaard, que usa a fita cola, certo? Faz composições prévias em papel e usa a fita cola e depois reproduz, é isso? Que importância teve para ti?

AS: Sim, na altura fui investigar. Pelo que consegui compreender do seu processo, ele parte sempre da ideia de cópia, utiliza um número limitado de fitas - uma ou duas cores - enquanto eu uso a paleta completa de cores (risos). Talvez isto tenha a ver com uma relação paternal, porque o meu pai é técnico de eletrónica, e eu desde pequeno reconheço a fita cola verde e amarela dos eletricistas. De alguma forma, sempre convivi com isto. A partir do momento em que comecei a pensar em fita cola como conceito para a minha pintura, descobri para minha surpresa que, afinal era possível existir algum tipo de ligação afetiva, mesmo não tendo consciência disso.
O artista Kees Goudzwaard utiliza a ideia de cópia, reproduz.


JM: No fundo o que eu te queria perguntar era se o facto de teres conhecido a obra dele influenciou de alguma forma o teu processo, o teu trabalho? Fez-te mudar alguma coisa?

AS: Na verdade, não. Porque ao compreender o processo de Kees, não senti que estivesse muito próximo dele. O meu caminho ia noutra direção bastante diferente e por aí continuou. Claro que gosto muito do que ele faz, e faz-me sempre sorrir quando encontro alguma coisa dele.


JM: Como e quando é que surgem as grades nuas, sem tela? Sentes que concluem de certa forma a série, ou ainda há mais relações que podes criar, construir?

AS: Acrescentou de facto algo ao trabalho. Acabou por ser tudo tão gradual, que eu neste momento não sei se este é um momento feliz ou o contrário, é o fim de série de um projeto artístico, mas eu provavelmente vou sentir necessidade de voltar a isto, não sei como ou quando: já pensei em usar escalas maiores, mas neste momento não está nos planos.
As grades surgem a seguir à série “Cutis”, que insinua uma pele, e eu pensei “porque não retirar a pele” à estrutura? Não havendo aqui nenhuma relação com a figura humana, a verdade é que estas metáforas estão aqui muito presentes.


JM: Há pouco falavas na relação com a figura humana a nível da própria escala e das mãos. Eu também vejo aqui um cuidado na utilização das próprias palavras, porque estas têm significados múltiplos, e variam conforme a sua utilização - a grade como um corpo nu, incompleto, por exemplo. Pensas nas palavras que escolhes para as séries, e no sentido que cada palavra pode ganhar?

AS: Sim, eu penso bastante nisso. Às vezes há os felizes acasos, quando tudo se conjuga e parece que faz tudo parte do mesmo corpo. Porque o acrílico - a tinta - no fundo é uma técnica que seca por evaporação e condensação das moléculas e dá origem a uma pele no processo de secagem. Às vezes quando tentamos retirar, ela sai de acordo com essa pele, essa superfície (camada) que é quase uma descamação. Quando pinto sobre a madeira, fica tudo muito diferente, o resultado e o processo na verdade.


JM: Isso é quase uma hiperbolização do processo, não é?

AS: Sim, acho que podemos dizer isso, mas eu vejo mais como felizes acasos.
Esta exposição é um bom momento para ver de forma escancarada a minha preocupação com a comunicação que cada peça tem com a outra ao lado, ou seja, a própria disposição das peças que faz com que eu as veja com um carácter expandido. A forma como eu organizo, escolho e crio ligações sempre esteve presente como parte do processo. Esta continua a ser uma exposição bem-comportada, porque há um lado muito tradicional, da tela pendurada na parede, e as transgressões são quase um piscar de olho - como a fita cola no rodapé por exemplo. Para mim, a grande mudança é que cada vez mais me interesso pela envolvência do espectador, pelas reações, pelo feedback que posso vir a receber. E isso tem sido uma grande descoberta.


JM: Muito obrigada André, foi uma boa conversa.


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Joana Mendonça
Doutora em Educação Artística, trabalha entre a criação artística, a mediação de arte, o ensino e a investigação que cruza estes campos. É professora adjunta na UTC de Artes Visuais da Escola Superior de Educação do Porto, e na Escola de Arquitetura, Arte e Design da Universidade do Minho, em Guimarães.

André Silva
Nasceu na Venezuela em 1980. Licenciatura em Artes Plásticas-Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto Bolseiro do Programa Sócrates/ Erasmus na Facultad de Bellas Artes de la Universidad del Pais Vasco. Curso de Especialização em Intervenções Artísticas em Espaços Públicos e Produção de Obras Site Specfic (Universidade Lusófona). Co-Fundador do Projecto Colector.
O seu trabalho pictórico explora zonas de contacto entre a pintura, desenho e instalação. Em algumas ocasiões as obras apropriam-se do espaço tridimensional e estabelecem um diálogo com a arquitetura. www.andresilvastudio.com

 

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Notas

[1] “Sputenikthewindow pretende ser um project room com o intuito de promover uma programação concertada e regular, baseada nas correntes artísticas contemporâneas e na divulgação de valores emergentes nacionais e internacionais das artes plásticas, visuais, performance, dança, design, literatura, arquitetura e design de moda. Os projetos poderão ser visitados no dia da inauguração ou por marcação durante um mês e meio. A gestão e programação é da responsabilidade de Ana efe e Luis xavier”, texto retirado da página www.facebook.com/Sputenik-the-window
[2] A partir de Christopher Johnson (2012), “Bricoleur and Bricolage: From Metaphor to Universal Concept”, consultado em www.jstor.org
[3] Para mais informação acerca deste tema, ver www.academon.com, consultado em abril 2022