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ALBERTO MORENO

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Entretém sobre o divino e o humano, o político, e como não podia deixar de ser, o cinematográfico, na Praça 2 de Maio com o cineasta João Nicolau, o último vencedor do festival Filmadrid para o melhor filme em competição e a melhor longa metragem para o júri jovem.

Uma manhã de domingo, depois das memórias da festa que os rapazes do Filmadrid nos propuseram na noite anterior – este que escreve desfaleceu. Bonita manhã, boa gente, bom ambiente no terraço do 2D na esquina da rua Velarde com a rua de San Andrés em Madrid. Terraços cheios, bons vinhos, conversas com o pessoal do local. Um encontro muito gratificante com uma antiga conhecida e umas quantas cervejas sem problemas de tempo. Espero na minha quietude hedonista a chegada de João Nicolau, cineasta “terrível, por impedimento ético”, parafraseando o já desaparecido Bernard da Costa sobre a figura de João César Monteiro, pai espiritual desta maravilhosa camada de cineastas de Portugal.

E ali nos sentámos, vendo passar a vida... as crianças a jogar à bola, uns músicos a tocar, os casais a beijarem-se, a gente conversando e... uma menina passa em bicicleta diante de nós. João pede uma Coca Cola, eu continuo com as minhas cervejas e umas azeitonas a acompanhar. Enrolo um cigarro, ele fuma outro e esperamos ver passar as nuvens. Começa a conversa, mais do que uma entrevista, fazendo-lhe uma reflexão.


>>>


AM: Interessam-me as ficções, mas as ficções que partem da matéria da realidade e creio ver uma coluna de contista, ou uma forma de fazer muito própria nos cineastas portugueses. Manuel de Oliveira, Fernando Lopes, Antonio Reis, João Cesar Monteiro, Pedro Costa, Manuel Mozos, João Pedro Rodrigues, Miguel Gomes, Sandro Aguilar, tu e o Gabriel Abrantes… é uma ambição pelo conto, pela memória, pela ruína e pelos fantasma que vêm de muito longe. Dão uma identidade muito sólida do cinema, onde inclusive se podia ver uma identidade cultural portuguesa compacta, facto que em Espanha, em geral, não se encontra, ou é tão diversa que está muito diluída. Também “a transição” no cultural deixou, porque não dizê-lo, os seus males: evasão e esquecimento.

JN: Sobre o país... Vocês tiveram uma transição que vos permitiu um avanço económico muito forte em 10, 20 anos. Não é assim no nosso caso, e isso influenciou tudo. Por exemplo, ter uma produção de cinema muito pequena, e por aí se pode ter uma visão mais geral. Também Espanha é maior, mais diversa.

AM: Trouxe dinheiro, mas creio que criou uma identidade um tanto evasiva cultural e socialmente. Agora parece que estamos a olhar mais para o que realmente somos. O cinema espanhol dos anos oitenta e noveta, com excepções – realizou-se “Amanece que no es poco” e irrompe Almodovar, temos “Deprisa deprisa” e subvalorizou-se Eloy de la Iglesia – foi um cinema talvez fresco, mas não profundo no meu modo de ver. A partir da década de 2000 foi-se desenvolvendo um cinema com uma projecção cinematográfica maior, também há mais facilidade para produzir e informação e dirige-se a um caminho culturalmente mais sólido e plural.

JN: As diferenças são mais fortes, explicam desde outros pontos como se faz cinema aqui. Esses pontos também... Curiosamente, no cultural não tem havido contaminação entre Portugal e Espanha. Se pensas no cinema e na televisão, não há muita mistura. Podia-se dizer que o cinema comercial espanhol, que é muito, podia penetrar no mercado português e isso não acontece.

AM: Portugal tem uma identidade forte.

JN: Agora... Também têm aqui casos de cineastas como Buñuel ou Saura, ou o Guerín, o Albert Serra, para mencionar os mais contemporâneos. Essa ficção está aí. Talvez desde o exterior seja mais simples, construir essa coluna vertebral portuguesa, que para nós desde o interior.

AM: Portugal, ao ser mais pequeno, também é mais abordável, mais segmentado...

JN: Claro... Mas, por exemplo, dessa coluna o Manuel Mozos e o Pedro Costa são da mesma geração e são muito diferentes. O que faz João Pedro Rodrigues é muito diferente daquilo que eu faço.

AM: Vejo semelhanças em certos elementos...

JN: Sim, pode haver. Existe uma coisa essencial que António Reis e João César Monteiro, ou Fernando Lopes, já deviam ao Manoel de Oliveira. Devemos todos os que estamos nessa lista, é a liberdade para filmar e isso pode ver-se em todos esses cineastas: a liberdade. Eu não tenho uma proximidade ao mundo de Oliveira, ele era católico e eu não sou crente. Para bem ou para mal. Digo para mal porque há muitas coisas que me tornam ignorante nisso. Digo para bem porque não tenho psicologismos para abordar certas temáticas. Mas essa liberdade, esse jogar com todas as matérias do cinema, devemo-lo a ele. E estou certo que debaixo desta mesa assinaríamos todos, incluindo o Abrantes que é o mais jovem.

AM: Abrantes é o mais norte americano.

JN: Sim, e tem um ritmo voraz de produção de curtas. Mas pronto, a mim interessam-me mais os filmes que os realizadores. Por exemplo, Pedro Costa tem muitos filmes e quase todos bons, mas quando se liberta da máquina de cinema clássico e pega na sua câmara de vídeo, consegue fazer “No quarto da Vanda” (2000) e “Juventude em Marcha” (2006). Esses são os dois filmes que mais me interessam e aí, por exemplo, essas ficções que estavam nos seus dispositivos iniciais têm mais força quando não as escreve e em vez disso as capta com a sua câmara de vídeo. Definem-se como documentários mas não são documentários. A ficção nesses dois filmes é muito interessante.
É curioso, talvez menos no meu caso, que todos esses, num momento ou noutro, se alimentam da realidade para ficcionar sobre o cinema. Sobretudo o Miguel Gomes e é evidente no João César Monteiro, Reis, incluindo Fernando Lopes. Há sempre esse vaivém, se calhar menos com Mozos ou com João Pedro Rodrigues... É que para mim, pensando em todos os filmes desses realizadores, parece-me um pouco difícil ver todas as coisas comuns. Estou certo que as há, e acho que é o ponto fundamental ao fazer um filme desde a “tábua rasa”, desde o zero. No caso do Miguel é evidente a diferença entre um filme e o outro, começa desde o nada. Há sim um gosto por um tipo de ficção que não considero uma coisa extraordinária. O que considero extraordinário é o modo como se perdeu um outro tipo de cinema, a crença de que a ficção tem um valor no mundo. Dá-me a impressão que o mundo do cinema actual quase considera o desejo da ficção como uma coisa que ficou na História do cinema. É como se estivéssemos a cometer um erro. Eu estou totalmente em desacordo, talvez seja um pouco naïf da minha parte.

AM: No outro dia na livraria 8 ½ comentaste uma coisa muito importante: fazer cinema sem utilizar em profundidade todas as capacidades que tem, é um pecado. A ficção é muito importante e a capacidade que o cinema tem para se aprofundar com ela. Primeiro porque a ficção é necessária para nós, é esperança, de certo modo eufemismo. Precisamos dela para pré-visualizar um mundo mais belo. Por exemplo, João César Monteiro utilizou as potencialidades do cinema para desenvolver a partir da realidade uma ficção belíssima da sua própria vida. Isto não teria sido possível sem todas as capacidades do cinema.

JN: Sim... Monteiro não é só o cineasta que melhor o fez na Europa, é talvez o que melhor o fez no mundo inteiro.

AM: Mas eu vejo essas belezas ou paraísos comuns na lista toda que te comentei, incluindo também nos novíssimos, como tu. E pergunto-me, porque é que isto acontece?

JN: Bom, não sei, eu não posso falar pelos outros. O que fiz com “John From” (2015) é o mais possível a isso. Porque o amor, a paixão, é o que procuramos porque nos faz bem. O que eu acho é que o que há no amor é a beleza [eu comento: um paraíso]. Essa foi a minha linha exploratória em “John From”, e isso talvez se dilua um pouco no cinema actual, as capacidades de procurar isso, porque talvez haja um reflexo de uma consciência política não resolvida nos criadores.

AM: Qual é a consciência política não resolvida nos criadores?

JN: Para mim 80% dos filmes que estão nos festivais dedicam-se a reflectir sobre o que já está. A capacidade de denúncia que o cinema tinha já a perdeu, porque agora há outros meios mais eficazes para o fazer. Nos anos 60 e 70 podiam ser assim, porque a televisão não chegava a todos os sítios, mas agora já não é. Há muitos filmes que se contentam em apenas transmitir essa mensagem de denúncia. Por exemplo, o caso dos emigrantes que estão a morrer no Mediterrâneo. Pode haver um bom filme aí, mas não pode haver um bom filme que se contente só com isso e já está. É preciso que seja um bom filme. É necessário respeitar o cinema, respeitar todas as suas capacidades. Mas isso não é o que se vê. Se só o que fazes é reflectir, o que há é uma falta de crença nas suas capacidades. Não entendo que a opinião política de um artista seja mais importante que o olhar político de um empregado de mesa, ou de um taxista. Creio que o artista deve reservar-se o direito de fazer um filme sobre uma história de amor se é isso que quer. Mas parece que há a exigência que um artista tem que posicionar-se numa opinião política. E às vezes isso não é mais interessante por ser um artista. É respeitável, mas se queres fazer isso torna-te político, não cineasta.

AM: Eu tenho uma opinião sobre isso. Acho que não é preciso ser defensor, ou agarrar na bandeira como artista, porque o quotidiano, a beleza de viver com dignidade é uma coisa da esquerda. A arte deve ser livre, deve procurar a beleza dessas coisas quotidianas, isso é o seu trabalho e já é uma postura política. Podes agarrar um dia uma bandeira como fez César Monteiro com “Que farei com esta espada” (1975), porque não, mas...

JN: Se considerares “Que farei com esta espada” de João César Monteiro ou “As mil e uma noites” de Miguel Gomes, para mim são exemplos de filmes em que aos realizadores lhes interessou o que acontecia nesse momento. Mas eles não se limitaram a denunciar, antes realizaram cinema com todas as suas potencialidades. Fizeram cinema.

AM: Sim, não sei se sabes a história que parece que aconteceu a Fellini com Antonioni, creio que numa festa. Antonioni recriminava Fellini por não haver defendido o PCI (Antonioni vinha de uma família burguesa do norte de Itália, enquanto que a família de Fellini era da classe média de Rimini) e não fazer militância política através do seu cinema. Fellini respondeu que não era necessário fazer militância, simplesmente mostrando a dignidade daquele pai anarquista em Amarcord, diante de toda uma multidão de lunáticos fascistas, já situava onde estava a beleza e a sua percepção da dignidade. Com a arte identificava a beleza e uma postura no mundo.

JN: Sim, claro. Acho que foi o realizador francês Chabrol que dizia que por ser comunista não ia filmar toda a vida os camponeses a apanhar as colheitas. Não me obrigam a isso. Pode ser que encontre numa história tão comum como uma relação de amor na classe média algo tão vital e forte como a outra. Essa confusão é muito habitual no cinema actual. Além disso, acho que há um aproveitamento oportunista de uma consciência colectiva que está agora presente.
Bom, pegando no outro assunto, o do conto. Às vezes penso, mas não tenho base para o supor solidamente, pegando em certas características do cinema português que... acho que há elementos comuns com Espanha, como um surrealismo ibérico muito mais antigo que o surrealismo francês de André Breton. Muito mais enraizado no popular... [faço uma intrusão e comento que vem dos contos populares desde os celtiberos] – e isso descobre-se, ou surge das coisas laterais com as quais estás a trabalhar. Não são as coisas centrais, mas surge, da nossa própria forma de ser.

AM: Essas coisas laterais, ou essa bagagem cultural, que se poderiam ver nos contos populares vêm de muito longe.

JN: Sim, sim... Eu fiz uma curta, não muito conhecida, para a Guimarães Capital da Cultura 2012, “O dom das lágrimas” (2012). Estava a ler nessa altura uma recompilação de orações da liturgia cristã que tinham como objectivo que crente chorasse como maneira de estar mais perto de Deus, como uma ferramenta para conseguir a clarividência. Isto interessou-me, essas súplicas que o crente pedia como uma ajuda para chorar – isto é verdade, quando se chora há um momento de redenção. Nos anos 60 já não se praticava muito, o Concílio do Vaticano II proibiu-o. Mas isto existiu até há cerca de 50 anos atrás. Na altura não sabiam muito bem o que fazer, tinha um título e tentei construir um conto que na verdade não existia. Queria juntar isso com uma música folclórica americana e uma jovem loira que tinha uns cabelos muito compridos, e assim acabou por se construir um pequeno conto que muita gente ao vê-lo acha que eu o adaptei de um conto popular desse lugar, mas não foi assim. No fim, essa pequena narrativa que tinha desenvolvido não estava tão longe do conto de raiz popular, coisas arquetípicas que estão presentes em toda a Europa.

AM: Sim, a cultura de transmissão oral...

JN: E estas são coisas dum tipo de surrealismo ibérico que se baseiam num elemento da própria realidade.

AM: Sim, essas coisas surgem um pouco de forma inconsciente, mas talvez aqui em Espanha castrou-se isso...

JN: Sim, isso do inconsciente é verdade. Isso sobre Espanha e seu cinema já não sei, tu sabes mais que eu sobre o cinema de aqui e a sua cultura.

AM: Acho que o franquismo gerou uma castração dessas capacidades próprias e “a transição” não penses recuperou essa base de um surrealismo cultural. Buñuel fazia-lhe homenagens, mas não deixou escola. Há mais escola sua no México ou em França que aqui. É uma força muito potente que inclusive se pode ver em certo realismo mágico latino americano, ou a potência do primeiro Iñarritu em “Amores Perros”...

JN: Bom, atenção, tu estás a falar de coisas à distância, mas são coisas muito interiores, que não temos em conta de forma consciente. Há coisas conscientes que controlamos e que estão presentes, mas há coisas que não são conscientes e derivam das nossas criações. Há de tudo, por exemplo, eu trabalho com a produtora de Sandro Aguilar e partilho com o Miguel muitas coisas, ou o caso do Pedro Costa e do Manuel Mozos que saem da mesma escola e são da mesma geração, mas realizam um cinema completamente distinto e todos realizamos coisas diferentes. Talvez o digam os espectadores ou o críticos, mas eu acho que não fazemos os mesmos filmes. Pode ser que entre uns e outros façamos coisas com laços em comum, mas no fundo acho que somos muito individualistas.

 

[Primeira parte da entrevista de Alberto Moreno ao realizador João Nicolau - a segunda parte será publicada nesta secção em Novembro de 2016]

 

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João Nicolau (1975), realizador, começou o seu percurso com Rapace (2006), recebendo o prémio de melhor curta metragem no festival de Vila do Conde. Realizou “A Espada e a Rosa” (2010) e “John From” (2015), este último prémio de melhor longa metragem no festival Filmadrid.