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SÍNDROME VERTIGINOSO (1)




I – Dois Conceitos para a Liberdade


Há diversas modalidades de Estado: os estados socialistas, os estados corporativos e o estado a que isto chegou! Salgueiro Maia (2)


Quando em 1958 Isaiah Berlin publica “Dois conceitos para Liberdade” o mundo padecia de uma espécie de Síndrome Vertiginoso. Nesse mesmo ano, e no auge da Guerra Fria, Khrushchev impunha um ultimato à retirada de Berlim dos aliados ocidentais num processo que se arrastaria até à construção do muro (1961). Enquanto se sucediam as caças às bruxas outras medidas eram ensaiadas no sentido de amuralhar a respectiva noção de liberdade que cada bloco ideológico defendia.

É durante este período de antagonismos declarados que Isaiah defende também ele (3), uma distinção entre Liberdade Positiva e Liberdade Negativa. Enquanto a forma negativa referir-se-ia à posição estática de não estarmos sujeitos à submissão de forças externas contrárias à nossa vontade, Liberdade Positiva significava por outro lado que o sujeito tinha ao seu alcance as condições necessárias para livremente e activamente exercer essa vontade.

É na urgência do momento que a inquietude provoca em determinados homens grandes feitos, pois estes são homens que encontram dificuldades em conviver com o imobilismo na sua consciência. A grandeza de Isaiah Berlin foi a contribuição para uma mais alargada compreensão do perigo e alcance das retóricas libertárias encontradas no cerne de cada discurso totalitarista. Neste importante ensaio ele descreve como as características da Liberdade Positiva a predispõem à manipulação e por conseguinte passível de ser usada como decisiva arma de propaganda por regimes que se pretendam substituir aos interesses do indivíduo. O gesto positivo da criação de condições para a Liberdade encontra-se na base da constituição desses sistemas autoritários e, quer sejam de ideologia fascista, socialista ou democrática, o do pavor por eles alimentado de uma noção de insustentabilidade e fraqueza da Sociedade regida pela autonomia do indivíduo, providencia-lhes a legitimação para medidas de controlo social.

Na ressaca dos dilemas de Kennedy’s e Khrushchev’s, tomados à responsabilidade pelas palavras de homens como Isaiah Berlin, interessa-me recuperar a citação de Salgueiro Maia e questionar – Afinal, qual foi o Estado a que isto chegou?

(Comecemos a Oriente…)



II – O Ano do Coelho

Mas o que é libertar? Se eu libertar, no deserto, um homem que não sente nada, que significa a sua liberdade? Não há liberdade a não ser a de «alguém» que vai para algum sítio. Libertar este homem seria mostrar-lhe que tem sede e traçar o caminho para um poço. Só então se lhe ofereceriam possibilidades que teriam significado. Libertar uma pedra nada significa se não existir gravidade. Porque a pedra, depois de liberta, não iria a parte nenhuma. Antoine de Saint-Exupéry – Piloto de Guerra

Saint-Exupéry escreve que uma pedra solta a nenhum lado se poderá deslocar se para tanto lhe faltar gravidade que lhe conceda a direcção. Contudo a recente detenção do artista Ai Weiwei pelo Regime Chinês demonstra que a pedra somente é livre de se deslocar na direcção que dita a gravidade. No exercício simples de se negar à pedra que na queda pretenda ascender ao céu encontramos os muros que delimitam a nossa noção de Liberdade.

Esta detenção poderá até encontrar enquadramento jurídico numa qualquer investigação de delito financeiro mas o que fica deste gesto é a mesma atitude provocatória do elevar de dedo médio feito pelo mesmo artista na Praça de Tian'anmen (4). Ela demonstra ainda uma ansiedade em nos relembrar que o Sistema não faz concessões nem se encontra disposto a abdicar da liderança dos destinos daquela nação. Essa mesma ansiedade que origina as vertigens da Liberdade (5) induz o Estado a balbuciar mensagens repletas de bafienta ortodoxia.

Ai Weiwei era decerto uma pedra enferma que incomodava o Regime Chinês há demasiado tempo. Enquanto o pai deste havia sido alvo de um programa de reeducação intensiva tão ao gosto da cartilha voluntarista do Maoísmo (6) o filho parece estar a ser tratado à luz de novos paradigmas. Ao homem que contribuiu com um brilho especial para o cartão postal da China para o Mundo (7) estariam reservadas sucessivas vagas de intimidação física e burocrática que visavam isolar a sua voz, mas a inépcia demonstrada na aplicação desta política são reveladoras do desconforto das autoridades chinesas em lidar com esta situação.

Diz-se que um homem se pode distanciar daquilo que corre atrás dele mas que jamais poderá fazer o mesmo do que corre dentro dele (8). Ai Weiwei é um desses homens que encontra a virtude fazendo o que outros na Sabedoria indicaram ser necessário fazer e era na sua visão da China contemporânea, construída por políticas de branqueamento social e realizadas nas costas do enorme crescimento económico, que eram causados sérios embaraços internos e externos ao sistema repressivo chinês.

Em nome do evitar de contágio da febre revolucionária que grassa agora em certos países árabes, a repressão preventiva Chinesa é repetidamente omissa da agenda política nas grandes cimeiras internacionais relegando a responsabilidade da denúncia aos movimentos cívicos e outras instituições de carácter independente. A detenção de Ai Weiwei foi realizada ao abrigo de uma daquelas cláusulas de excepção que persistem em ser negociadas de forma opaca pela Comunidade Internacional e que negam a universalidade de certos valores.

A dignidade do sentido ético de Ai Weiwei esbarrou finalmente no muro que desde sempre o cercava e que havia sido erigido sob os desígnios da Liberdade e da Paz Celestial. Mas se por ora apenas resta a certeza de alguma salvaguarda a medidas de repressão mais radicais devido à projecção internacional que este caso suscita, razões históricas e culturais ensinam-nos que na China os sistemas de controlo falham em encontrar sustentação sem o equilíbrio estável da ética confucionista.

A Lei controla o homem inferior. A conduta correcta controla o homem superior (9)



III – Vertigem, Inquietude, Vertigem…

Num frio dia de Inverno, alguns porcos-espinhos juntaram-se para se aquecerem com o calor dos seus corpos, para não enregelarem. Mas depressa viram que se estavam a picar e afastaram-se. Quando de novo ficaram com frio e se juntaram, repetiu-se a necessidade de se manterem separados até descobrirem a distância adequada a que se podem tolerar. Arthur Schopenhauer – Fábula do porco-espinho

É inquietante constatar que as retóricas do Passado deixaram-nos repetidamente apeados a meio do caminho que prometeram construir. Mas tal só é assim porque no imobilismo do meio caminho a retórica garante a posição de maior estabilidade. São discursos de carácter subversivo como o artístico que constituem sérios incómodos aos defensores dessa estratégia pois neles reside o potencial para o indivíduo construir novos trilhos.

A detenção de Ai Weiwei demonstra que o Regime teme as repercussões das acções deste dissidente ao ponto de sentir a necessidade de fazer da sua detenção uma mensagem para dentro e fora de portas. Contudo, a ansiedade desta repressão preventiva poderá agora estar na base do colapso deste Socialismo já demasiado recauchutado.

Na tradição de participação ética dos confucionistas cabia aos intelectuais e artistas o dever de mostrar o seu descontentamento com o que consideravam estar errado enquanto restava ao Estado gerir da melhor forma as repercussões dessas vozes críticas. Como na fábula de Schopenhauer em que cabe aos ouriços encontrar um ponto equilíbrio gerado na instabilidade, na China essa convivência forçada funcionava como uma válvula de escape que cinco mil anos de cultura enraizaram fortemente na mentalidade do seu povo. Se essa válvula um dia deixar de existir devido a uma qualquer ansiedade causada por uma qualquer vertigem preventiva o sistema poderá estar a assinar o contrato da sua queda.



IV - (E nós?)

Enquanto nas Chinas da nossa contemporaneidade novos equilíbrios são negociados, por aqui nós subsistimos na inércia da indecisão. A herança de uma Era alicerçada nos tais dilemas de Kennedys e Khrushchev’s faz com que o mesmo que nos compele a agir nos torne devedores por antecipação. Perfilhando a poesia de Vinicius de Moraes constato que com as lágrimas do tempo e a cal do dia fizemos o cimento da nossa poesia.

Nós somos os ouriços que tentam aprender a conviver com os espinhos do nosso Passado…


Carlos Alcobia



NOTAS

(1) Síndrome Vertiginoso refere-se habitualmente à doença de Meniere de causa desconhecida e cujos sintomas incluem ataques súbitos de vertigem, náuseas e vómitos que podem durar até 24 horas.
(2) As palavras que o Capitão Salgueiro Maia dirigiu aos militares na Escola Prática de Cavalaria de Santarém na madrugada de 25 de Abril de 1974.
(3) Já antes em 1941 o psicanalista da Escola de Frankfurt Erich Fromm havia delineado semelhante distinção.
(4) Study in Perspective, Ai Weiwei 1995-2003.
(5) Soren Kierkegaard.
(6) O pai de Ai Weiwei foi o importante poeta chinês Ai Qing que em 1958 foi enviado com a sua esposa para um campo de trabalhos forçados durante o Movimento anti-reaccionário Maoista.
(7) Ai Weiwei foi comissionado pelo Regime Chinês para a direcção artística do Estádio Nacional de Pequim, também conhecido como “Ninho do Pássaro”, por ocasião das Olimpíadas de Pequim 2008.
(8) Provérbio ruandês.
(9) Provérbio chinês.