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EXPOSIÇÕES ATUAIS


© Bruno Lopes


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16 MAI - 31 JUL 2022


 

Na primeira sala do primeiro piso vemos, numa sequência de fotografias, uma mulher que se veste para na última imagem se despir. O ato primeiro é relegado para último lugar como uma surpresa que serve como prenúncio de uma revelação: diz-nos, quase diretamente, que o que iremos ver são momentos diretos, íntimos, confessionais, cristalizações de tempo eternizados num captar rapidíssimo. As fotografias estão a preto e branco, são texturalmente ruidosas, quase punk, ideia sublinhada pelas suas disposições museográficas: nada se encontra assente em molduras, as imagens são impressas numa placa e assentes numa base de ferro, como os bordos da ardósia onde se colocava o giz na sala de aula, uma maquete de estúdio, um projeto em construção.

Indo para a segunda sala, disposta em curva para um longo corredor, apalpamos terreno: um conjunto de fotografias dispõe pessoas focadas em objetos, seja um candeeiro, uma fotografia, uma televisão, uma lâmpada ou a própria câmara que fotografa, todos à parte de um casal de idosos sentado no sofá, olhando em frente – ainda que não nos mostre, conseguimos completar a imagem, pressupondo a existência de um ponto de foco, provavelmente uma televisão.

Conforme avançamos, a coesão temática das salas torna-se progressivamente mais vaga, ainda que à partida não entendamos o porquê. Vêem-se contextos familiares, quotidianos, enternecedores, captando momentos tão específicos que parecem registados por uma lente oculta - por exemplo, no díptico Enigma, que nos cerra à visão do conjunto através da manta que cobre parte das composições, tornando-as quase abstratas. No entanto, entre estas imagens, somos surpreendidos com séries como Bruegel e Bruegel #2 ou as Hanging Vermeer, onde o fotógrafo, de repente, opta por captar fotografias de pinturas destes dois pintores, um ato, logo à partida, metalinguístico, complexo, inusitado. Mais estranhas serão as perspetivas optadas, umas vezes com as fotografias parecendo querendo tornar-se as próprias pinturas, como, por vezes, intrincadamente, obedecendo a um processo telescópico, vertiginoso, vemos fotografias de fotografias dessas pinturas dispostas num estúdio, viradas ao contrário, denunciando linhas retas, verticais e horizontais, parecendo dialogar com as bases em que assentam as imagens no espaço real da galeria.

Este primeiro piso terminará com uma parede branca, sem saída, onde se dispõe uma série de 3 imagens, uma delas passível de ser vista logo desde a segunda sala, através do corredor. Dispõe-se ao centro, intitula-se Light Beam, e faz representar o sótão de uma casa, com vigas de madeira à beira de uma não sustentação, por onde perpassa um feixe de luz. Do lado esquerdo desta, uma mãe amamenta um bebé ao colo, num contraluz profundamente escuro em Lianna breastfeeding, e ao lado direito, denunciamos uma composição perdida em abstrações em Ampliando o Detalhe.

Estas fotografias destacam-se por um ambiente soturno, contrastante com a claridade da maioria das composições vistas até então. Podemos estabelecer algumas possibilidades de relações neste conjunto aparentemente deslocado: um percurso reverso, da direita para a esquerda, passando da abstração ao nascimento de um ente vivo? Será que aquele sótão de madeira, disposto ao lado de uma mulher segurando um bebé, como uma Madonna barroca, poderá aludir ao nascimento de Cristo sob o celeiro do presépio? O que é certo é que ao olharmos para trás vemos a fotografia de um parto, intitula-se Nascimento de Clara e o fotógrafo aponta a câmara na nossa direção, a um espelho que não vemos, captando uma selfie do momento. A câmara de Restiffe parece querer apreender a realidade totalmente, como um diário impulsivo que regista para não se esquecer. É importante ao artista colocar-se na ação, como memória ativa de que participou naquele momento, algures perdido no éter, agora eternizado. Mas, no enigma da exposição, descobriremos que esta imagem poderá ser mais macabra: se calhar, não há espelho nenhum e quem ele capta somos nós.

Chegamos a esse questionamento no segundo piso. Começa logo avisando-nos: isolada na parede da esquerda vemos Allen and the slides, um homem sentado, olhando para uma câmara que segura na mão; pequenas caixas assentam-lhe em cima das pernas, provavelmente guardando rolos analógicos. Poderemos dividir esta primeira sala em dois polos: um, continuando a tematização familiar vista antes, agora captando um ambiente de férias, pessoas num barco, numa cascata, numa sauna, contemplativas, imagens intensamente convertidas em memória, que sentimos como sumo de recordações; outro, onde vemos construções de cenários fotográficos, poses de modelos numa banheira, num sofá, onde um fotógrafo aponta por vezes a eles, não querendo deixar escapar o melhor momento, outras vezes a nós. Uma das características do meio fotográfico é que apesar de registar, documentar, cristalizar, também aprisiona. Estes dois polos poderão dividir-se em contemplação e prisão. O truque é que os momentos contemplativos são fruto de uma ilusão feliz, porque também eles foram aprisionados. Será que, por esta altura, ainda podemos voltar atrás? Continuamos.

Por entre fotografias de descanso, onde pessoas deitadas repousam ao sol, no sofá, um grupo de crianças despertas olha perplexa para um televisor em Tv Watching. Ao seu lado dispõe-se Cães onde dois cães fazem sexo. Há um humor seco, inesperado, perturbadoramente irónico na fotografia de Restiffe. Restam-nos ainda duas salas. Voltam as fotografias de obras de arte: dispõe-se na penúltima sala uma fotografia do Quadrado Negro de Kazemir Malevich, captada no interior de um museu, e outra fotografia de uma fotografia de uma escultura em Calendário, enquanto de um lado vemos Bus Ride, uma imagem pelo olhar de um passageiro de um autocarro que olha em frente em direção ao motorista: de larga dimensão, e disposta isoladamente no lado direito da sala, parece sugerir que o comprimento do espaço real daquela sala será o corpo fictício do autocarro que não vemos.

Chego aqui a uma possível conclusão: as fotografias de objetos artísticos parecem dispor-se como um ato duplo, por um lado uma continuação do quotidiano do artista, vivido através de imagens diarísticas, por outro uma consciência irónica do que seria esperado numa exposição, como se o artista estivesse ciente da nossa experiência, presença enquanto visitantes, agentes isolados da ação das obras e, consciente disso, quer agora alcançar o inalcançável, a interação através da afasia do objeto físico (como diria Variações, “quer estar onde não está”), quebrar a inultrapassável inércia das imagens, como o trompe l’oeil que nos convence, falsamente, da sua tridimensionalidade. Na última sala, de disposição quase fechada, cuja única saída, mais uma vez, é o retorno, a primeira fotografia que vemos é de uma mulher que parece correr em Japanese Landscape Girl. Vemos uma série de fotografias íntimas, um cenário matinal, uma mulher que acorda em Auto-retrato com Lianna no espelho #4, onde o artista mais uma vez capta o momento olhando-se num espelho retangular, refletindo-se, imagem que dialoga com a geometria de outra imagem-vertigem, virada ao contrário, em Lab. Mas é em Alcance que o fotógrafo - num exercício que automaticamente percecionamos como descontraído, ironicamente dramático - se faz representar deitado, olhando diretamente para nós e, esticando, de olhar sério, perturbador, a mão em direção à câmara, querendo tornar-se real, apanhar-nos. A ironia torna-se ato fatal. A imagem apanha-nos. Estamos aprisionados. Completa-se a captura, que nos tinha atraído, confundido, deixado sempre à procura de uma qualquer lógica, desde o início. Mordemos o isco. Caímos na ratoeira.

A curadoria de João Maria Gusmão e Natxo Checa não parece deixar nada ao acaso. Não só a construção narrativa da exposição se vai concretizando compassadamente, revelando-se a cada nova secção expositiva, como presta atenção ao mais ínfimo detalhe, percetível apenas a um quase habitar da exposição. Por exemplo, antes de entrarmos para as duas últimas salas, conseguimos observá-las à distância, e de um determinado ângulo distante, apenas termos no nosso campo de visão o Black Square juntamente com Lab e Auto-retrato com Lianna no espelho #4. Num exercício quase ao acaso, que poderia passar como completamente irrelevante, observa-se uma lógica notória, rigorosamente geométrica, entre as três composições. Parece termos entrado num labirinto, um espaço mental profundamente planeado, um Overlook Hotel onde os espectros confundem, mas puxam-nos, nunca se esquecendo de si próprios (o erro de Jack foi os ter “overlookado”), certamente o resultado de um processo longo e moroso, um olhar cirúrgico para as obras e um teste dos seus possíveis diálogos.

Algures no segundo piso, passámos por uma parede onde se dispuseram um conjunto de três fotografias: Lianna e Helena deitadas no Pano, Lianna deitada no Pano e Oysters. É de notar que são as mesmas pessoas as protagonistas de diferentes fotografias, a literal família do fotógrafo que ele opta por colocar em destaque, como num álbum de recordações. O que me leva a destacar estas imagens, ainda assim, é o facto dos padrões, movimentos que as primeiras duas fotografias compõem, o tecido redobrando-se desajeitado na relva, seguindo os movimentos do corpo inquieto ao sol, estarem espelhados nas ostras comidas, sob a mesa, da última imagem, os contrastes elusivos do preto e branco, as torções dos corpos, encontram semelhanças quase surreais. É assim que acabamos, fugindo do labirinto: devorados até ao tutano.

Ao abandonarmos a exposição reparamos que à entrada da galeria, está, afinal, a primeira obra da exposição, Demain Matin. Pode ser que nessa altura o artista nos deixe sair em liberdade.


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Mauro Restiffe (São José do Rio Pardo SP 1970). Fotógrafo. Estuda cinema na Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado – Faap, em São Paulo, formadondo-se em 1993. Estuda fotografia no International Center of Photography, em Nova York, entre 1994 e 1995. Representante da nova geração de fotógrafos-autores que opera na fronteira entre o universo da fotografia e o das artes plásticas, realiza trabalhos estruturados em torno de duas vertentes básicas: uma autobiográfica e a outra metalinguística.

 



MIGUEL PINTO