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PILAR MACKENNACONSTELAÇÕES E DERIVASGALERIA PEDRO OLIVEIRA Calçada de Monchique, 3 4050-393 Porto 04 MAI - 06 JUL 2024
Círculo Polar (2024) introduz-se logo que entramos na galeria. Somos atraídos pela sequência das cantoneiras que irradiam a partir de um centro, qual leque, qual feixe de raios de sol, qual roda-viva de um vestido plissado. Em frente, suspende-se uma possível versão formal de The Dove (1915), de Hilma af Klint: Tangente (2022) aparece na simplicidade de uma linha sem princípio ou fim, rotativa, suspensa num perfeito nó em equilíbrio. Orbitar II (2024), série de desenhos-pinturas em papel, recorre-se igualmente às formas circulares e elípticas em composições variadas, sobre fundos mais ou menos atmosféricos e luminosos. Nesta primeira sala, onde se encontram estas três obras, é claro que tudo levita, sem intenções de tocar o solo. Na segunda sala, acontece o oposto. As obras nascem do pavimento ou nele assentam. A sequência e a estrutura modular são dados assumidos, e a sua desmultiplicação foca a nossa atenção nas juntas, nas uniões, nas aproximações e afastamentos, nas tensões que estabelecem. Espina (2002), Cenit (2022), 4x4 / Topografia (2022) e Contra-formas (2022-2024) constituem um grupo que se distingue pelas suas diferenças formais e materiais, sinónimo do caráter experimental que define a prática artística de Pilar Mackenna. Notas de Campo I (2019-2024) dá-nos pistas sobre a concepção das obras. Aqui, retomo a pergunta anteriormente colocada: o que faz esta mediação entre o céu e a terra? Pilar faz-nos crer que é no passo. O caminhar constitui uma das primeiras etapas do seu processo criativo, a denominada “deriva territorial”. O andar permite explorar o terreno na sua amplitude espacial, visual, e até espiritual, e instiga o encontro com uma série de circunstâncias e objetos que acaba por (re)colher para o seu estúdio. Vai reunindo, assim, um variado conjunto de materiais que irão ser matéria de pensamento e labor. Esses objetos - plásticos, cordas, tubos, madeiras, esferovites, elásticos, pedras, cerâmicas - são agrupados, categorizados, fotografados, desenhados, manipulados no mínimo gesto. Através de processos intuitivos e associativos, a colecção vai-se compondo por uma afinidade pictórica depurada que tende para a semelhança com “planos, pontos, linhas e formas geométricas” [1]. Um vocabulário universal que permite a Pilar formalizar hipóteses de “organização e ordem do universo infinito de informação a que estamos expostos na vida contemporânea” [2].
Círculo Polar, 2024 © Galeria Pedro Oliveira
Pilar inclui-se no grupo de artistas cujo ímpeto para o seu trabalho advém do ambiente que a rodeia: transforma as suas percepções individuais do mundo que encontra e deseja, numa matriz diagramática, transferindo o que está em redor - e em nós - para algo passível de re-atenção, nessa tarefa (sobre)humana de “desvelar a complexidade que nos sobrevoa e subsiste” [3]. No conjunto expositivo, notamos que a variedade formal e material das peças condiz com esse caráter rizomático e variadíssimo que define o mundo, na ânsia (serena) de perceber a “totalidade de um sistema, corpo, coisa, fenómeno, através da decomposição e estrutura das partes” [4].
Orbitar II, 2024 © Galeria Pedro Oliveira
Delicados, os desenhos operam como veículos de canalização do pensamento e “(...) às vezes, são automáticos (...), às vezes são (desenhos) mais analíticos (...) muitas vezes são ambas as coisas” [5]. Em Notas de Campo I e Notas de Campo / Pintura, os desenhos pairam límpidos e as pinturas assertivas. Reconhecemos alguns motivos - telhas, correntes, padrões - outros são deixados à imaginação: “os referentes quase desaparecem” ao tornarem-se abstratos por via da mão [6]. A absorção de todos estes elementos (aparentemente) aleatórios recusa a linearidade, salientando essa primeira impressão de quando entrámos na galeria - tudo orbita à volta de algo (do nosso corpo?). Segundo Susana Ventura, curadora da exposição, “a tentativa de doar uma ordem ao caos só é possível se a obra acolher um resquício - que seja - do próprio caos.” Na transição entre o desenho e a instalação escultórica, a apropriação de materiais “banais” é visível nas Contra-formas (2022-2024), Estela azul (2022) ou Terreno baldio (2022), que agrupam materiais desirmanados numa unidade poética. As matérias são sujeitas a uma lista de verbos alla Richard Serra - empilhar, tecer, dobrar -, “ações para se relacionar com o eu, o material, o lugar e o processo” [7]. Isto conduz inevitavelmente a um imprevisível encadeamento de ideias, definidor da obra de arte.
Contraformas, 2022-2024 © Galeria Pedro Oliveira
Nesta que é a sua primeira exposição individual na Galeria Pedro Oliveira, Pilar expõe obras que desenvolveu maioritariamente durante o seu mestrado em Belas Artes – Especialização em Escultura (FBAUP, 2022) [8]. Na respetiva dissertação, Pilar elucida o leitor sobre as suas referências, os processos, as etapas e a não linearidade que todas elas pressupõem, sendo óbvio que esta mostra oculta um extenso trabalho de atelier. Talvez o facto de Pilar ter deixado essa porta fechada ao espectador da exposição, corrobora a amplitude do seu trabalho como uma grande teia de probabilidades, relações e associações que lhe é, acima de tudo, íntima e emocionalmente marcante. A pré-obra a Pilar pertence. Se tal, por vezes, nos pode fazer sentir desgarrados (a levitar, portanto), por outro, o encontro com x objeto faz eco a algo que também conhecemos, e, por isso, enraizado. Por mais palavras que escreva neste texto, parece que desemboco sempre na mesma sensação, sensação essa que Esfera Celeste (2023) esclarece: o vocabulário da artista paira sobre fundos em inícios de tempestade, promissores de fenómenos naturais sublimes. A conjugação de pinceladas soltas com a rigidez de pequenos diagramas e geometrias, busca uma qualquer ordem natural que, a nós humanos, falha sempre. Acredito que para um artista é sempre insuficiente a explicação. A mera “aproximação a” pode ser insustentável: quer-se a obra inteira (mesmo que o seja no seu fragmento). Foi o que senti nesta exposição – a condição humana da busca e descoberta perpétuas sobre a realidade. Como há poucos dias li no fresquíssimo livro de Martim Sousa Tavares ao citar Sophia, “um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso” [9]. Expressão que assenta tão bem nas obras de Mackenna: círculos desenhados à volta das coisas; círculos cujo centro é Pilar, não fosse Pilar o centro do seu mundo.
::: [1] Pilar Mackenna, Constelaciones y Derivas: Diagramas para la construcción de un pensamiento visual-objetual, Dissertação de Mestrado, FBAUP, 2022.
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