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ANTÓNIO FARIAAS VIZINHASCENTRO CULTURAL BOM SUCESSO Rua Fonte de São Romão 1 2615-306 Alverca do Ribatejo 16 ABR - 28 ABR 2024
Oito bichos de proporções humanas, sem morfologia semelhante a nenhum inseto do mundo natural, mas estranhamente próximos de muitos seres que habitam o real, vivem por estes dias suspensos nas paredes brancas do Centro Cultural Bom Sucesso. Ao entrarem no edifício projetado pelo arquiteto Miguel Arruda, alguns visitantes irão recordar, numa primeira observação, os animais que lhes causavam repulsa ou atração, na infância, como os escaravelhos ou os grilos que se fechava numa caixa de fósforos ou numa gaiola para ouvir o seu cantar. Na contemplação panorâmica dos desenhos, talvez alguns não resistam a convocar A Metamorfose (1915), de Franz Kafka, e identificar, nas criaturas bidimensionais, a metáfora da transformação humana em inseto. Os de memória mais prodigiosa lembrar-se-ão de Jácome, “um inventor de coisas impossíveis: tinta invisível, formigas mecânicas, pássaros a vapor, sapatos voadores, aparelhos de produzir espirros…” (2000: 8) e serão tentados a comparar António Faria com o protagonista do conto “Estranhões, Bizarrocos e outros seres sem exemplo”, de José Eduardo Agualusa. O que se observa e aprecia é sempre um cruzamento entre a vontade do artista e as múltiplas leituras de quem interpreta com base na sua própria experiência e referências. A obra de arte será sempre, citando Umberto Eco, aberta. No texto da folha de sala, a curadora Carla Carbone convoca o Livro dos Seres Imagináveis, de Jorge Luís Borges, para conceptualizar a experiência da descoberta da exposição As Vizinhas, “o jardim povoado de criaturas fantásticas e intrigantes”: “Por um lado, alarma-nos, com a estranheza dos insectos lívidos que evoca, por outro, atrai-nos pela robustez e vigor que sugere. Remete-nos para o fascínio das coisas da natureza e para a variante assombrosa e inquietante do reino dos animais, também presentificada nas antigas Wanderkammer, ou gabinetes de curiosidades.”
Vista da exposição António Faria, As Vizinhas, 2024.
Numa apreciação mais profunda, percebe-se que os desenhos a carvão, guache e pastel seco, com dimensão de 200 x 140 cm, não emergem nas folhas de papel por influência de nenhuma ideia presente em obras literárias ou outras peças de artes plásticas, mas sim graças à vontade do autor de se autodescobrir e superar. As Vizinhas, de António Faria, é o resultado das ideias que surgem no ato criativo; esse impulso incontrolável que permite que a matéria a que o artista atribui forma seja dada por terminada, quando ele sente - quase como num diálogo íntimo entre a obra e o seu criador – que está concluída. Sem obedecer a quaisquer formalismos e desviando-se sempre dos caminhos óbvios, as diversas camadas de pastel sob um tom monocromático que geraram as criaturas denunciam uma entrega constante a cada desenho. É como se o autor tivesse habitado o mesmo jardim dos seres que deu à luz e criado, como nos fenómenos da natureza, uma carapaça para as proteger. Como escreve Carla Carbone: “O artista resgata os seres brumosos das suas sombras. Confere-lhes um lugar na luz. Não é o conceito, ou o pensamento analítico que determina a sua existência no imaginário dos desenhos, mas antes o impulso criador, a pulsão criativa. O gesto reiterado do artista revela também o macerado dos dias. Em busca de pistas e meios, para dar forma à imaginação, o artista, de modo insuspeitado, vai depositando, sobre a planura do desenho, a marca do tempo.” São desenhos inéditos, com uma abordagem técnica diferente, sem a harmonia das figuras florais que António Faria tem vindo a apresentar. É uma abordagem experimental que exige tempo de contemplação. Preservando a bidimensionalidade das formas e a coerência tonal, cada plano esconde um depósito infinito desse ato criativo. Estes bichos não nos transmitem repulsa, como os insetos de que fugíamos em criança, mas uma atração irresistível, como se quanto mais imergimos na obra, mais pormenores descobrimos. “Num jogo perpétuo de reflexos e espelhos alguns conferem a propriedade de nos reflectirem, outros de nos autoretratarem.” Nas várias camadas de tinta, sobrepõem-se as marcas da relação que António Faria estabeleceu com a obra, para depois, como na natureza, a lançar ao mundo quando a sentiu perfeita. A intensificar a experiência, As Vizinhas é complementada com o zunido dos bichos recriado através da distorção que se ouve quando se coloca uma guitarra elétrica junto de uma coluna de som. No exterior da sala de exposição, encontra-se ainda uma escultura de ferro e bronze, um ninho de pássaros que é habitado por três insetos dourados, como se fossem figuras cristalizadas a quem lhes foi conferida materialidade eterna. As palavras de Miguel Torga, no conto “Cega-Rega”, de Bichos, poderiam mimetizar o imenso esforço do artista, depois um projeto terminado: “…É preciso percorrer um longo caminho. Embrião, larva, crisálida… Todas as estações do íngreme calvário da organização. Animada pelo sopro da vida, a matéria necessita de calor dum ventre. Antes dessa íntima comunhão, desse limbo purificador, não poderá ter forma definitiva. Custa. Mas a lei natural é inexorável- Exige consciência do cosmos antes da consciência de ser…” (1984: 85).
Fátima Lopes Cardoso
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