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MIGUEL BRANCOBLUE ANGEL![]() GALERIA PEDRO CERA Rua do Patrocínio, 67 E 1350-229 Lisboa 15 SET - 04 NOV 2023 ![]() ![]()
Através do olhar, o observador contempla o assombro.
Astonishment, as I have said, is the effect of the sublime in its highest degree; the inferior effects are admiration, reverence and respect. (Burke, E. [2008]. A Philosophical Enquiry into the Sublime and Beautiful, p. 57).
O artista sensibiliza-nos com uma experiência estética da sensação, nos diferentes modos de ver e de contemplar, reinterpreta a História da Arte, mas a desconstrói através de um rizoma alegórico contemporâneo. Nesta exposição, avistamos a ruína e o assombro na obra de arte. Mergulhamos na existência do ser através de pequenas e pequeníssimas imagens, preciosamente detalhadas, ora redondas ora retangulares, em vários tamanhos, numa ténue parede colorida. Alude-nos a um palco estético da sensação, a cor da parede transporta-nos ao “puro sentir”, um direito ao qual qualquer experiência estética tem vindo a reivindicar. Ao vaguear pelo espaço, o espectador pertence a este palco cenográfico, em que o olhar é despertado por uma oscilação deambulante do corpo. Sentimos a efemeridade perante a perceção alegórica. Captamos o belo pela sensibilidade, por ínfimas formas pictóricas, configuradas em sentidos ocultos do instante. Na contemplação, sobressaem-nos imagens perdidas de metadiscursos de um mundo alienado, compondo, assim, uma espécie de drama-cenográfico, mas não-narrativo, cujos significados quase que desvanecem em múltiplos intervalos. Entre eles, emergem da incerteza ecos refratados e fragmentos existenciais, que se espalham em vórtices do imaginário do ser. Lembra-nos o que afirma Bernardo Pinto de Almeida (2023, Folha de sala):
Miguel Branco remete justamente quer para apresentação de um Atlas, que a meu ver simboliza não apenas o espaço próprio do seu esforço de tornar visível o tempo actual, como, também para a ideia de uma passagem para o mundo imaginário (…) ao mesmo tempo que reintroduz a figura tutelar do anjo, símbolo por excelência desse que transporta a mensagem e a traz até nós.
Em Blue Angel, operam-se imagens imaginárias que irradiam o assombro, a escuridão, a solidão e o silêncio. Aponta-se uma era apocalíptica pela vivência existencial do horror, numa reflexão obscura do pensamento contemporâneo. Todavia, as pinturas expressam um modo de revelação, um olhar eterno sobre o abismo do ser, suspende no espaço o drama trágico, na ruína dos significados, um expectante encontro com a transcendência - a catarse regeneradora. Em delicadas pinceladas e a subtileza de tonalidades de cor e de luz, nascem formas voláteis de anjos e flores. Nas obras de Miguel Branco, aspira-se o desconhecido. Através do estado da vigília, rompe-se no instante o invisível que se trespassa pela ruína do ser. Uma distorção da tradição da pintura dada pelo assombro da contemporaneidade. O espectador, em Blue Angel, reencontra anjos e demónios, flores e esqueletos, caracóis e caveiras, fragmentos enigmáticos como imagens alegóricas de transitoriedade entre logos e mythos, a razão e o imaginário, a consciência e a alienação. Evoca-nos a divine madness, uma espécie de visões arrebatadoras que se se apresentam mais como um espírito demoníaco da obscuridade ou um estado transcendente da consciência, à semelhança da poesia de William Blake, poeta e pintor pré-romântico inglês. Apreciamos um dos seus trechos em I Heard an Angel:
I heard an Angel singing
Thus he sung all day
Ao voltar à tradição, Miguel Branco anuncia um estado de consciência, mas também uma necessidade do devir, que se destrói e se recria, uma evidência conceptual ao espírito dionisíaco nietzschiano. Nesta exposição, o artista resgata o não-ser antes do ser, eleva-o à sua superação, ao devir cósmico como uma vontade de reafirmação da profundeza do ser através da alegoria contemporânea. Recorda-nos Benjamin, na obra Origem do drama trágico alemão (2004), quando argumenta que a alegoria exprime a transitoriedade, o sofrimento e a ruína. Com ela o ser revela-se dilacerado pela sua finitude. “Para resistir à queda na contemplação absorta, o alegórico tem de encontrar formas sempre novas e surpreendentes” (Benjamin, 2004, p. 199). Contemplemos, então, Blue Angel. O anjo que transcende as sombras, renasce da criação. Alegorias, sombras e aparições cujo reflexo culmina em tempos conturbados, de guerra e de sofrimento, abrem-se, assim, brechas de múltiplos significados, um modo de sentir em tornar visível a essência, desmistificar falsos castelos de pensamentos, desconstruir o conhecimento e as mitologias contemporâneas, para dar lugar a metáforas sombrias de um lugar ontológico do ser. Diante delas, o espectador devaneia numa anuência entre a esperança e o sofrimento, a vida e a morte, os anjos e os demónios, o belo e a tragédia, a alegoria e a ironia, quase num indistinguível imperativo ético que ascende para além da consciência e da ignorância do ser. Um olhar sobre a humanidade.
Joana Consiglieri
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