|
COLECTIVAPROFANAÇÕESCULTURGEST (PORTO) Edifício Caixa Geral de Depósitos Avenida dos Aliados, 104 4000-065 Porto 30 SET - 14 JAN 2024
“Continuaremos pelo fim”
A profanação não é a simples negação do sagrado. Profanar significa a possibilidade de conceber uma forma particular de negligência, pressupondo esta a desvinculação da escrupulosidade das normas. Partindo deste princípio, é possível elaborar um uso singular da separação entre profano e sagrado, potenciando novas alteridades. É sob esta égide concetual que se desenrola a obra filosófica “Profanações” (2006), de Giorgio Agamben, e a partir da qual se estrutura a exposição com a curadoria de David Revés, patente na Culturgest, do Porto, entre 30 de setembro de 2023 e 14 de janeiro de 2024. A exposição desenvolve-se em torno de uma panóplia, de obras e documentos, que incide em temáticas diversas como o esoterismo, a bruxaria, o macabro, a alquimia, e ecologia, a sexualidade e a violência. Potenciando esta diversidade, a pluralidade de alinhamentos e narrativas, e não uma apreensão de sentido único, do que se pode entender por “profanação”.
*
Refere Fiódor Dostoiévski, na sua obra literária “O Adolescente”, que “o riso é a mais certeira prova da alma”. [1] Na verdade, associá-lo à bondade, felicidade e comédia é prosaico, mas não é despeito reconhecer que também pode ser maquiavélico, cínico e sarcástico. E habitar num pendor popular moralista, no corriqueiro “muito riso, pouco siso”, ou mesmo ficar à mercê do fanatismo religioso pousado na ideia de que desvirtua a sociedade e a afasta da espiritualidade. Talhado pela sonoridade do riso, pejado de ´ironia azeda´, o sarcasmo introduz a exposição, a partir da entrada do edifício. Esta “Sonata para uma cave” (2023), de Odete, encontra um alinhamento com as outras obras da artista que apresentadas no subterrâneo do edifício, parecem fecundadas na ideia da etimologia da palavra “sarcasmo” que, derivada do grego antigo "Sarkázein", significa “rasgar/dilacerar a carne”. O riso, em onomatopeia, titula estas obras que sendo figurativas e abstratas contemplam a ação e os resquícios do terrível. Recortada em papel, corporizada numa existência singular, uma língua pontiaguda e ondulante, pintada a lápis numa tonalidade rosa suave, surge conectada ao desenho de um monstro de boca aberta, onde ajudado por dois diabretes, consome pequenos seres nas suas labaredas (“AHAHAHAH”, 2023). Os mesmos materiais, papel e lápis de cor, são utilizados em “AHAHAHAHAH” (2023), onde uma mancha acastanhada se estende por quase metade do suporte, e é acompanhada por salpicos da mesma cor e manchas subtis de outras colorações. Por sua vez, “AHAHAH” (2023) contempla uma mancha disforme de tinta acrílica e sangue falso, numa plastificação ‘gore’ de vermelho vivo. O vermelho que, simbolicamente plural, se vê associado à paixão, ao impulso sexual, à proibição, ao perigo e à violência, é a cor do fundo abstrato das duas pinturas de Francisca Sousa, da série “Red Sees” (2014), que situadas na entrada, representam duas decapitações. Uma figura feminina nua, empunhando uma faca, dirige-nos o olhar de soslaio, e segura a cabeça decapitada de um homem. Enquanto na outra pintura, uma figura masculina, seminua, segura triunfal a cabeça decepada de outro homem. A temática continua numa outra obra – “Orgulho” (2019) – que pousada no chão da sala A, dentro do edifício, revela duas mulheres: uma vestida apenas com uma camisola vermelha, que segura uma faca e a cabeça decepada de um homem, e outra que numa tela, circular de fundo verde, surge nua, mascarada e a segurar um bastão. A máscara que ao ocultar o rosto, e as suas expressões, permite-nos com maior liberdade encarnar personagens e satisfazer desejos, adensando o mistério do “Eu” que, na sombra, se recolhe para dar espaço à farsa. Podendo estar ligada à morte e aos rituais a ela associados, à crítica social ou à excitação trazida pela vida sexual. Apesar das pinturas aqui descritas não contemplarem quaisquer elementos iconográficos que, especificamente, nos conduzam a uma narrativa religiosa, é intuitivo associar o tema das decapitações a episódios bíblicos como o de Judite e Holofornes, de Davi e Golias e de Salomé e S. João Batista. Revela-nos George Bataille, que o erotismo está pejado de contradições pois a sua profundidade, é tanto religiosa, como horrível e trágica. O seu fundamento é a atividade sexual que, numa perspetiva puritana, cai sob a égide da proibição que, por sua vez, se arrasta para o enfeitiçamento da transgressão. O clarão de má luz que brota do erotismo, refere o filósofo, é possível encontrar igualmente na violência e na morte. Esta última, confessa-nos com uma certa vileza, abre em si o riso infinitamente alegre. E na “pequena morte” [2], acrescenta, desfaz-se numa sensação de triunfo sem chegar a morrer. [3] É nestas “Lágrimas de Eros”, na cúspide da interligação entre a dor, o erotismo e o prazer, mas também da violência e da morte, que as obras de Francisca Sousa se estruturam. Neste seguimento, impera a referência à xilogravura de Albrecht Dürer, “A Grande prostituta da Babilónia” (1497-98; tiragem séc. XVIII), presente na exposição. Tal porque este episódio bíblico é sugestivo da forma como a mulher foi sendo vista e tratada, ao longo dos séculos. Imperando nela a vilania da sedução e do erotismo, da sexualidade profana, da prevaricação e de todos os males do mundo. No livro do Apocalipse (cap. 17; 1:5), a mulher é caracterizada como a prostituta vestida de púrpura e vermelho, adornada por ouro e pedras preciosas, que montada sobre uma besta vermelha, será julgada. Na sua testa encontrava-se escrito: “Mistério, a grande Babilónia, a mãe das prostituições e abominações da terra.” [4] Representando, simbolicamente, a figura da prostituta, a depravação, a ostentação e a deslealdade da Babilónia, face aos preceitos da religião e de Deus. A sexualidade é um tema recorrente de outras obras da exposição, que procuram confrontar e desmistificar os preconceitos ainda existentes. Proclamando a liberdade de ser e escolher que, na verdade, deve imperar. São exemplo, as pinturas especulativas de Rasmus Myrup, “Homo Homo Erectus (Forest Fuck)”, 2018, “Homo Homo Neanderthalensis and Sapiens (In the Field)”, 2018, e “Homo Homo Erectus (In the Grass)”, 2023, que encenam a pré-história da homossexualidade humana, através da imagética homoerótica, sexual e pós-pornográfica. E que afirmam o combate à ignorância que ainda nutre a visão de que a homossexualidade é antinatural. E saliente-se o vermelho nas molduras, numa possível relação com a simbologia da cor, já suprarreferida. A sexualidade é também abordada, sem puritanismo, nem perversão, através de “Brazil Solos” (2016), do artista António da Silva. Um vídeo, onde trinta homens brasileiros homossexuais, surgem nus, contando as suas experiências sexuais enquanto acariciam os seus órgãos genitais. As imagens gráficas e repetidas e os testemunhos verbais, proclamam a liberdade sexual e permitem outras perspetivas desse confronto silenciosamente ruidoso, entre o sagrado e o profano, da sexualidade. Com “Extreme Kiss” (2005), um vídeo de quase uma hora, Annie Sprinkle & Beth Stephens, beijam-se continuamente. E se as artistas procuram enaltecer a transcendência do poder salvífico do amor e do erotismo, outras obras da exposição projetam o lado sombrio da existência humana. Em “Toxic Carousel” (2019), uma assemblage situada no centro do edifício, a artista Christine Henry desorienta-nos com um emparelhamento (macabro) de corpos vários: galhos de árvores, braço de manequim, estruturas enferrujadas de metal, crânios e ossadas falsos/as de animais, entre outros. Em seu torno, observa-se o confronto entre as colunas de mármore do edifício, com as colunas de pneus e cintas de alumínio (“Ring”, 2023) de Isabel Cordovil. No embalo desta estética do horror, as pinturas de Paulo Serra apresentam rostos cuja composição plástica, de tons escuros e terrosos, plasma uma aura tétrica e espectral. Os traços fisionómicos à mercê do esperpentismo [5], podem ser metáforas dos monstros e demónios que ‘habitam’ nas partes ocultas da psique e que nos atormentam. E ora os traços parecem dissolver-se no abstrato, como parecem surgir da escuridão. Percebendo-se que os olhos, considerados o espelho da alma, não são mais do que aberturas fantasmagóricas. Neste seguimento, os desenhos a tinta e grafite (c.1955-1963) de Foma Jaremtschuk, revelam uma orquestração surrealista de seres híbridos compostos por um entrelaçamento de elementos antropomórficos, zoomórficos e maquínicos. Não tendo sido um artista profissional, nem amador, o conjunto das suas obras (que chegaram até ao público) foram criadas durante o seu primeiro internamento num hospital psiquiátrico, entre 1947 e 1963. Provavelmente guardadas como documentos clínicos e não devido ao seu teor estético. Acresce, ainda, revelar que entre 1936 e 1947, Jaremtschuk viveu num campo soviético de trabalhos forçados. [6] O seu corpo de trabalho, inserindo-se nas premissas da Arte Bruta ou Outsider revelam, em composições que exteriorizam uma espécie de arqueologia do caos psíquico, o grotesco da desumanização das privações várias, da miséria e da tortura a foi submetido. Por sua vez, a instalação “Aftermath” (2023), de Pedro Moreira, que congrega diversas obras do artista, comporta uma constelação caótica de objetos que, podendo contar diferentes histórias, acabam por se encontrar nas esferas do sobrenatural e da violência. Uma bola de espinhos com corrente, um conjunto de armaduras do caos de Orbis, máscaras de diabo e partes do corpo do Golem como o estômago, as vísceras e as costelas pousam, não inadvertidamente, numa cama de terra. O Golem é uma figura de barro, enraizada na tradição religiosa judaica, e cuja vida proveio de uma série de rituais mágicos. Acredita-se que será de inspiração bíblica, uma vez que no Génesis é narrado que Deus criou Adão a partir da terra. E do sopro divino deu-lhe vida e alma. [7] Os rituais de magia são utilizados para que se estabeleça uma relação, muito particular, com o sobrenatural. O que pressupõe um diálogo entre mundos, onde opera uma meta condição da fisiologia dos sentidos, permitindo alcançar o que está oculto. E onde aspetos tangíveis e intangíveis se encontram para uma dança conjunta. Em “sopro-louvor” (2023), da artista Mariana Barrote, inúmeras mãos são integradas num recorte totémico que, estrategicamente suspenso, projeta a sua sombra na parede do espaço expositivo. Pressupondo uma relação entre o concreto e palpável que a fisicalidade do objeto detém, em relação aos aspetos de sacralização de que pode ser dotado, trazendo o abstrato e o impalpável da espiritualidade. De igual forma, as pinturas (“Sem título”, 2023) de Mariana Gomes, em formas fluidas e orgânicas de cores terrosas e outras saturadas, sustêm o abstrato que o mundo contém e elucidam-nos sobre o disforme. Neste seguimento, o “vidro animístico” (2023) de Igor Jesus, representa, a partir da abstração, a cosmovisão de entidades não humanas, que além de corpo também têm espírito. Por sua vez, as figuras da série “How to destroy angels” (2022), de Mauro Ventura, visam explorar os arquétipos da bondade e da maldade, reenquadrando contemporaneamente a bruxaria, a alquimia e a espiritualidade, como base simbólica para alcançar outros mundos e realidades visíveis e não visíveis. [8] Aliás, a magia vive entre a dualidade, embora nem sempre linear, de ser branca ou negra. E segundo os eruditos medievais, tanto estava ligada ao conhecimento das grandes leis do universo ou da cura pelas plantas (a magia naturalis), como era praticada para fins menos nobres como a previsão do futuro. [9] As artes divinatórias que, presentemente, ainda são praticadas sob as mais diversas formas. De forma humorística e subversiva, com uma imagética ligada à inteligência tecnológica, Plastique Fantastique apresenta, na exposição, um Tarot contemporâneo de laivos surrealistas: “Science Fictioning Tarot: Your Future in Foolish Memes” (2020-2023). Disposto numa mesa, e acessível aos visitantes, este Tarot revela-nos as impossibilidades futuras. Outrora, a magia era tida como arte ou pré-ciência e o mago era considerado um homem de ciência. Por sua vez o feiticeiro era um aprendiz e conhecedor (vulgar) dos pequenos mistérios. [10] Na vitrine da exposição, é possível ver exemplares da “Revista de Espiritualismo: publicação mensal de cultura psíquica e filosófica” (1939), onde se destaca um artigo designado “Demócrito e os Átomos”; e ainda do “Almanach da bruxa d’arruda: magica, espiritismo, somnambulismo, feiticeria e cartomancia” (1909), onde é possível aceder a artigos sobre práticas de índole duvidosa “para interromper um namoro” e “Fallar com o diabo.” A ascensão da feitiçaria vulgar às classes superiores e o aparecimento da figura estereotipada, que anuncia a feiticeira medieval, que voava à noite e fabricava unguentos e venenos, levou à desvalorização do mundo mágico dos primeiros séculos da era cristã. [11] Na exposição as práticas de feitiçaria são evocadas através das obras do coletivo artístico “Pedreira” que apresentam no patamar das escadas do edifício “Banhas com água al dente” (2023), uma “panela de barro banhada com aguardente, fogo, limão, maça, açúcar e grãos de café, aquando esconjuro des manes ardentes”, nobilitada num pedestal, e acompanhada por um áudio feitiço em voz distorcida e gutural. E, ainda, “Beijos de leoa embruxados pela ‘Queimada Profanada’” (2023), em tags escritos a caneta de plástico sobre as paredes da galeria. Na história das práticas ocultas, a oposição às práticas mágicas medievais e diabólicas, ocorreu no século XII, na Europa, pela reintrodução dos estudos de Alquimia e Astrologia, que relançaram a magia natural fundamentada em virtudes ocultas e de difícil acesso. [12] A obra audiovisual “Viriditas [13], 2025-2020” de Jol Thoms, cumpre-se na contextura entre a ancestralidade da tradição alquímica pré-moderna e o futurismo tecnológico de uma fonte de energia de fusão nuclear 'limpa'. Numa ação de utopia ecopoética assiste-se à tentativa de construção e manutenção magnética de uma miniestrela na Terra, para dela extrair o seu potencial energético. Na realidade, enquanto ancoramos a nossa fé na investigação científica para a descoberta de formas mais sustentáveis de produzir energia, ao mesmo tempo criámos e alimentámos modos de vida que fomentam níveis catastróficos de poluição e de extração de recursos naturais, que conduzem às alterações climáticas. A morte é certa, disso estamos conscientes. Mas quando tecemos a condenação de um planeta, devemos colocar as nossas ações em perspetiva. Tal encontra-se subjacente, e de forma metafórica, na pintura de Sonja Alhäuser “Grünkraft/Energia Verde” (2017), na qual um esqueleto humano se tenta agarrar a uma viçosa planta verde, a fim de reverter a condenação da finitude. E se acaso, como seres vivos, também nos constituem pó de estrelas, como podemos nós não conhecer, no nosso íntimo, a imensidão da matéria escura? Não nos devemos escusar viver nesse ‘entre-lugares’, nesse traço desinforme como que relampejado, em que o sagrado e o profano habitam articulados, nas ideias da vida e da morte, da realidade e da imaginação. Porque já o poeta o dizia: “nunca principio nem acabo, nasci do amor que há entre Deus e o Diabo”. [14]
Sandra Silva
:::
Notas [1] Dostoiévski, F. (2003[1875]). The Adolescent. Everyman’s Library, p.439
|