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O ESTADO DA ARTE


Fotografia de brochuras, cartas, fotografias da workshop “Cleaning the House” dada pela Marina Abramovic, 2002, Centro Galego de Arte Contemporánea (CGAC), Santiago de Compostela, Espanha.


Fotografia da pg. 49 do livro “Marina Abramovic: Student Body” da Charta, Milão, Italia.


Fotografia da pg. 58-59 do livro “Marina Abramovic: Student Body” da Charta, Milão, Italia.


Fotografia da pg. 35 do catalogo “Cleaning the House” da Foundacion Montenmedio Arte Contemporáneo (NMAC), Cadiz, Espanha.


Fotografia da pg. 123 do livro “Marina Abramovic: Student Body” da Charta, Milão, Italia.

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Marina Abramovic nasceu em 1946 em Belgrado, Jugoslávia, agora Sérvia. É uma artista e performer incontornável, tendo sido apelidada de Madrinha da performance. [1]

Sendo eu uma das suas alunas, sempre senti que éramos como as afilhadas dela, os filhos da arte que ela apadrinhou devido à sua capacidade inata de mentora.

Sempre a admirei como artista e tive o meu primeiro contacto com ela em 2002. Foi a primeira vez que veio à Península Ibérica para realizar o seu workshop, criado em 1990, com o nome “Limpando a Casa” (Cleaning the House) no Centro Galego de Arte Contemporanea (CGAC). Nestes workshops, os exercícios criados por ela (o chamado método Abramovic) têm como objectivo libertar cada um para “limpar a sua casa”. Encontrar um estado puro para criar e transmitir a arte, chegando a um estado de clareza mental e uma recepção absoluta, centrando-se num corpo “limpo” como único veiculo da criação artística. [2]

É importante contextualizar que em 2002 o ensino oferecido sobre performance arte era limitado. Em Portugal, uma licenciatura de ensino superior demorava cinco anos (Pré-Bolonha), com disciplinas obrigatórias, com currículo rígido e muitos exames. A performance arte era uma forma de arte sem destaque, sem disciplina, classe ou curso, sem um departamento ou área de foco numa licenciatura em Portugal. Não devemos confundir com dança, teatro ou animação cultural, que tinham maior destaque. Nesse período existia muito pouco ensino oferecido focado na performance arte mesmo no mundo inteiro. Apenas era leccionado um pequeno curso no Reino Unido e nos Estados Unidos existiam dois mestrados no ensino superior. O mais conceituado e competitivo, com o seu próprio departamento de performance arte, sem ser dança, teatro ou ambos, era o The School of the Art Institute of Chicago (SAIC). Este mestrado era limitado entre seis e oito alunos e demorava dois anos a completar, mas possuía o ranking mais alto do ensino superior no catálogo impresso “U.S. News & World Report”. [3] Na Europa, esporadicamente, existiam uns workshops como o de Esther Ferrer, em 2001, e os de Marina Abramovic, “Limpando a casa”. Na Hochschule für Bildende Künste (HBK), em Braunschweig, na Alemanha, Marina Abramovic tinha uma masterclass, onde desenvolveu a maioria da sua prática pedagógica (1997-2004). [4]

Em diferentes alturas do meu percurso artístico eu experienciei, em todo o seu esplendor, o método Abramovic e a sua pedagogia pela mão da própria:
- Workshops “Limpando a casa”, no CGAC (2002) e no NMAC (2004) em Espanha;
- Classe em Braunschweig (2004); e
- Parte do grupo Independent Performance Group (IPG) , fundado por Marina Abramovic com trinte e seis artistas em quinze países diferentes de 2003 a 2007;

Neste texto vou focar-me na pedagogia implícita na experiência dos exercícios criados por ela, que iam de encontro às necessidades de cada um de nós. Abramovic é uma professora que tem grande empatia e ternura por todos, como se fossemos uma planta que ela ajuda a crescer através da partilha da sua sabedoria para libertar todo o nosso potencial. Nas suas próprias palavras, “O meu papel como professor é ensinar os estudantes a confiarem em si mesmos e a canalizarem a sua energia… Não vejo o ensino como um monólogo mas sim vejo-o como um diálogo… Como professora, espero ensinar aos meus estudantes qual é a direcção que devem seguir com o seu trabalho. Espero ajudá-los a se realizarem em pleno como artistas.” [5]

Existe um balanço entre o físico e o mental/espiritual nos seus workshops. Não se limita a criar as regras, ela segue-as ao nosso lado. Como as de não comer ou tomar banho a não ser de água fria. Só a regra de não falar é que é a única excepção, porque existe a necessidade de nos dar as instruções necessárias para os exercícios. Desta forma, cria-se uma comunidade que de repente está em grupo a beber chá frente a uma fogueira no crepúsculo de Antas de Ulla (Lugo, Espanha). Nas palavras de Abramovic “(…) coloca-me perto de cada participante, como se se tratasse de uma família. Espero e creio que todos os participantes nos workshops saiam com um sentimento de unidade.” [6]

Um dos exercícios mais presente na minha memória é o de escrever o meu nome, sem tirar a caneta do papel, durante uma hora (Writing the Name Exercise). [7] Este exercício foi realizado pela primeira vez pelos alunos no primeiro dia do workshop. Pessoalmente, este exercício foi bastante difícil, porque todo o meu pensamento girava entre manter e mover lentamente a caneta, o entediante da acção e os ruídos do pensamento, tudo factores de distracção. No último dia do workshop realizámos este mesmo exercício, só que após toda a preparação dada por ela a minha experiência foi o oposto da inicial. Estive focada, centrada, senti o cheio e o som do espaço em que me encontrava. Já não considerava a tarefa entediante, mas sim um ritual de onde tirei grande grado.

Noto, assim, a transformação e o impacto que os exercícios tiveram em mim. Como a mistura das actividades físicas aliadas ao mental, que foram os nutrientes necessários para desenvolver e crescer, para, em suma, sermos uma versão melhor de nós.

Outro exercício muito eficaz foi o de olhar-me ao espelho. Abramovic mostra-nos que podemos parar e olhar para nós em qualquer altura do workshop (Stop with Mirror Exercise). [8]

Infelizmente, no quarto dia do workshop encontrava-me doente e febril quando ela sorrateiramente apareceu por trás de mim e me mostrou o espelho. No reflexo via a expressão natural da minha cara (ninguém diria que estava doente!), apesar de os meus olhos terem uma expressão cansada, o espelho mostrava o meu estado real de corpo e espírito. Uma das particularidades do reflexo era o fundo, o ângulo de visão, o enquadramento, as cores e o reflexo da pessoa que segura o espelho. Neste exercício não só vemos a nossa experiência e energia como também o outro que faculta essa oportunidade.

O terceiro exercício que tenho guardado vivamente na minha memória é o do grupo todo fechar os olhos. Abramovic direciona uma pessoa para a nossa frente e temos que tocar na sua cara e corpo. Temos que identificar mentalmente quem é e escrever o seu nome (Feeling another person Blindfolded Exercise). [9] Lembro-me de ser direccionada por Abramovic para uma pessoa com barba curta, nariz, olhos, boca, cabeça, pêlos, pormenores que não tinha antes reparado, como o sentir a pele áspera e sedosa. Lentamente construí uma imagem dessa pessoa, identificando-a. Antes de abrir os olhos sabia na minha mente quem era a pessoa do grupo, sem dúvidas. Quando nos pediram a todos para abrir os olhos, sou confrontada com uma realidade diferente: estava totalmente errada na identificação dessa pessoa à minha frente. Fiquei admirada como existem tantos estímulos e outras maneiras de olhar o mundo, inclusivé como o de só olhar para uma pessoa.

É importante mencionar que durante todo este processo da nossa experiência pessoal mantínhamos um diário escrito. Todos estes exercícios terminavam ao fim de cinco dias com uma refeição feita por nós, umas bolas de mel com frutos secos, especiarias e ouro. Era criado um sentido de comunidade, de partilha e experiência. Após esse período criámos todos uma performance duracional (ou com maior duração que o habitual). Esta performance era o somatório do nosso percurso neste workshop. Nas palavras de Abramovic, “O acto criativo é como dar à luz, um processo doloroso que pode ser destruidor….Logo isto só é conseguido num estado mental puro, por isso os workshops funcionam como uma preparação para o acto criativo.” [10]

A síntese e compilação destes exercícios, como um guia de técnicas que outros podem implementar no seu próprio ensino, foi cristalizada na forma de um livro intitulado “Corpo do estudante” (Student Body). [11]

 

Em Abril deste presente ano (2020) fiz a Marina Abramovic três perguntas sobre a sua pedagogia:

 

Beatriz Albuquerque (B. A.) - Quem foi o seu professor favorito e porquê?

Marina Abramovic (M. A.) – O meu professor favorito foi John Cage. Ele não era exactamente meu professor. Fazia a sua vida e criava a sua obra, e eu às vezes sentava-me na sua cozinha e ajudava a cozinhar comida macrobiótica. Ele falava sobre a sua vida e o seu trabalho. Estava cheio de sabedoria, modéstia e honestidade. Senti que aprendi muito com ele.


B. A. - Que momento/situação a mudou/ou a validou como professora? Porquê?

M. A. - Isso não aconteceu em nenhum momento específico. Foi um processo gradual. Senti que tinha tantas experiências pessoais na minha vida e no meu trabalho que seria egoísta não as compartilhar. Eu simplesmente comecei com os workshops e a resposta dos alunos foi tão positiva que me deu a coragem de começar a ensinar.


B. A. - Agora, com a pandemia e o que está acontecendo em todo o mundo, a sua pedagogia irá mudar? Porquê?

M. A. - O que está acontecendo agora em todo o mundo não mudará a minha pedagogia. Na verdade, o mundo poderá beneficiar do uso de algumas das suas ideias - do Método Abramovic, especialmente relacionadas com o isolamento e a solidão: solidão por escolha própria, conotação positiva – “solitude”, e solidão imposta, conotação negativa – “loneliness”.

 

 

 

 

 


Beatriz Albuquerque
Licenciada pela Faculdade de Belas-Artes do Porto. Mestrado na The School of the Art Institute of Chicago e doutoramento na Columbia University, Nova Iorque, com o apoio das bolsas Fulbright e FCT. Neste momento, é membro integrado no Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes da Universidade Católica Portuguesa e membro colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra. Foi distinguida com o Prémio Myers Art Prize: Cross Media Art, Columbia University, Nova Iorque; o Prémio Revelação pela 17ª Bienal de Cerveira, Vila Nova de Cerveira, assim como o Prémio Ambient Series, PAC/Edge Performance Festival.

 


:::

 

Notas

[1] Urist, J. (2016). What to Make of Marina Abramović, the Godmother of Performance Art. Smithsonian Magazine.

[2] Abramovic, M., Blasquez, J., Llull, P. & Morales, A. (2007). Cleaning the House. Foundacion NMAC, Cadiz, Espanha., ISBN 978-84-690-35351.

[3] The School of the Art Institute of Chicago. (2004). Graduate Programs. SAIC.

[4] Abramovic, M., Blasquez, J., Llull, P. & Morales, A. (2007)

[5] Abramovic, M. & Fernandez-Cid, M. (2003). Marina Abramovic: Cleaning the House. Centro Galego Arte Contemporaneo, Xunta de Galicia. ISBN 84 453 3634
Abramovic, M. & Fernandez-Cid, M. (2003). Marina Abramovic: Student Body. Milan: Charta.ISBN 88-8158-449-2

[6] Abramovic, M., Blasquez, J., Llull, P. & Morales, A. (2007)
Abramovic, M. & Fernandez-Cid, M. (2003). Marina Abramovic: Cleaning the House.
Abramovic, M. & Fernandez-Cid, M. (2003). Marina Abramovic: Student Body.

[7] Abramovic, M. & Fernandez-Cid, M. (2003). Marina Abramovic: Student Body.

[8] Abramovic, M. & Fernandez-Cid, M. (2003). Marina Abramovic: Student Body.

[9] Abramovic, M., Blasquez, J., Llull, P. & Morales, A. (2007).

[10] Abramovic, M. & Fernandez-Cid, M. (2003). Marina Abramovic: Cleaning the House.
Abramovic, M. & Fernandez-Cid, M. (2003). Marina Abramovic: Student Body.

[11] Abramovic, M. & Fernandez-Cid, M. (2003). Marina Abramovic: Student Body.