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O ESTADO DA ARTE


Vitória de Samotrácia, escultura em mármore branco da ilha de Paros (Grécia). Cerca de 220 a.C a 185 a.C. Museu do Louvre.

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VICTOR PINTO DA FONSECA

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Para desenvolver uma mente completa: estude a ciência da arte; estude a arte da ciência. Aprenda a ver. Perceba que tudo se conecta a todo o resto, Leonardo da Vinci. 


É esta a essência da dialéctica.

Sabemos que arte e ciência se encontram historicamente ligadas. No entanto, o que caracteriza este século perturbado é uma total desconexão entre a arte e a ciência, e a perda pura e simples do que circulava entre elas de edificante (educativo). Desta interação decorre este texto — através da perspectiva da ciência procura compreender a natureza interna da arte na forma elementar da dinâmica do mundo, convidando o leitor a imaginar a arte como um conceito fundamental da ordem da entropia, transformando leis da física e da matemática, em arte: descrevendo a arte num mundo em que tudo acontece, mas em que não existe a variável tempo (não é necessária para o descrever), nem direcção privilegiada da mudança. Possa o leitor encontrar alguma ciência e, no restante, agir por sua conta.

Simultaneamente representa literalmente uma teoria em que noções de arte, física clássica, poesia, entropia, literatura, matemática, pintura, o campo gravitacional e as equações da gravidade quântica, convergem e revêm-se numa mesma realidade, para descrever a influência recíproca entre As Duas Culturas [1]  - das ciências exactas, em especial da física, por um lado, e das artes, por outro.

Actualmente, mais do que nunca, todos falam da intenção de mudar o mundo: mas para isso interessa primeiro tentar perceber da maneira mais completa, rigorosa e simples possível, o significado da entropia, a equação dos acontecimentos, que faz com que o mundo gire. É assim que a história do texto começa a ganhar forma. A entropia - o facto da 2ª lei da termodinâmica nos dizer que o mundo tende para a desordem /caos, em direcção à dissolução, atribuído à baixa entropia inicial do universo - como introdução científica para a afirmação de novas maneiras de pensar os acontecimentos, a mudança, que significará ao mesmo tempo uma aproximação científica à teoria fundamental da arte e à estrutura básica do mundo.

Tudo começa no séc. XIX com o Romantismo, a revolução científica — o Romantismo como ligação entre arte e ciência, o saber ver para além do visível!

Em 1865, Rudolf Clausius introduz o nome e o conceito de entropia indicado pela letra S; a entropia de Clausius é uma quantidade mensurável e calculável que aumenta ou permanece igual mas nunca diminui. Lê-se delta S é sempre maior ou igual a zero, e essa equação é o segundo princípio da termodinâmica — o seu conteúdo é o facto de num sistema isolado o calor passar apenas dos corpos quentes para os frios, nunca o contrário. O processo não pode ser revertido. A segunda lei da termodinâmica introduz o fluxo do tempo: é a única equação da física fundamental que conhece a diferença entre passado e futuro, a única que nos fala da direcção do tempo.

Num sistema isolado a entropia total termicamente tende a aumentar com o tempo até atingir o seu valor máximo. Dizemos que quanto maior for a variação de entropia de um sistema, maior será a dimensão da desordem, ou seja, menos energia estará disponível para ser utilizada. Uma consequência importante é a impossibilidade de existência de um motor perpétuo, isto é um motor auto-suficiente, uma vez que a sua energia total tenderá a tornar-se cada vez menos acessível em decorrência do aumento da entropia.

A energia (mecânica, química, eléctrica ou potencial) transforma-se em energia térmica, ou seja, em calor, vai para as coisas frias, e dali não há maneira de a trazer de volta gratuitamente e de a voltar a usar para fazer crescer uma planta ou movimentar um motor. Nesse processo, a energia continua a mesma (primeiro princípio da termodinâmica), mas a entropia aumenta, e é esta que não regressa. É o segundo princípio da termodinâmica que a consome; mesmo os fenómenos mais banais são governados pela segunda lei da termodinâmica. Não é de energia que o mundo precisa para avançar. É de baixa entropia.

É o instável e alternante aumento da entropia do cosmos que carrega toda a história do universo. Mas o aumento cósmico da entropia não é rápido como a expansão repentina de um gás numa caixa: é gradual e leva tempo. O aumento da entropia em cada processo individual que se catalisam reciprocamente é o que faz funcionar o todo.
Mesmo com um misturador gigantesco, mexer uma coisa tão grande como o universo leva tempo.

Se não existisse a segunda lei da termodinâmica, se não existisse o calor, não haveria distinção entre passado e futuro. A ligação entre tempo e calor é portanto profunda.

O facto é que dentro desta equação entrópica está escondido um mundo; quem o desvelará será o romântico Ludwig Boltzman, lançando-nos num dos mergulhos mais vertiginosos rumo à nossa compreensão da gramática interna do tempo (é ele o herói da direcção do tempo) — ao nos revelar algo impensado e desconcertante a partir de um tratamento matemático: o calor não é uma constante, um fluído, o calor é a agitação microscópica das moléculas (tudo não passa de caos / desordem), é uma noção - à semelhança da entropia e da baixa entropia do passado - que faz parte de uma descrição aproximada, estatística, da natureza. A continuidade é apenas uma técnica matemática! 

Devo referir que muito do que aqui se revelará de científico de agora em diante segue a leitura da, "Ordem do Tempo", de Carlo Rovelli [2].

Rovelli: Boltzman demonstrou que a entropia é precisamente a quantidade que conta quantas são as diversas configurações microscópicas que a nossa visão macroscópica do mundo não consegue distinguir. A entropia existe porque descrevemos o mundo de forma desfocada, macroscópica, aproximativa, estatística.

Boltzman estudou como movimentos reversíveis de partículas (como átomos ou moléculas de um gaz) podem resultar num processo abrangente irreversível. Boltzman compreendeu-o: a diferença entre passado e futuro não está nas equações (do movimento) elementares que governam os eventos do mundo, não está na gramática profunda da natureza. Na descrição microscópica não existe um sentido em que o passado seja diferente do futuro. O tempo, na realidade não existe como o conhecemos, não tem orientação, não tem aquilo que atribuímos ao fluxo, não diferencia presente, passado e futuro: a distinção entre passado e futuro que tanto valorizamos é apenas um aspecto contingente / casual, que aparece quando olhamos para as coisas ignorando os detalhes, sem prestar atenção aos detalhes! Desse deslocamento nascem os conceitos de calor e entropia e a estes estão ligados os fenómenos que caracterizam o fluxo do tempo.

Se observarmos o estado microscópico das coisas, o fluir, o passar do tempo, a diferença entre passado e futuro desaparece. A temporalidade está profundamente ligada ao desfocamento! Entramos assim no mundo sem tempo: Boltzman compreendeu que no frenesim da mistura molecular não há nada de intrínseco no fluxo do tempo, apenas o reflexo desfocado de uma misteriosa configuração particular do universo num ponto do passado. 

E como observa Rovelli, é só essa a fonte do passar do tempo, da 'eterna corrente' da Primeira Elegia de Duíno, de Rilke.

A eterna corrente de Rilke, a vida e a morte enquanto unidade, esse fluxo do tempo entre passado e o que se lhe segue, do acontecer, a mudança, provém apenas de uma peculiaridade/ improbabilidade, do facto de no passado o mundo se ter encontrado num estado que parece especial ao nosso olhar desfocado, não de um todo.


A eterna corrente
consigo arrasta incessantemente todas as idades,
através destes dois domínios [dos vivos e dos mortos], e o seu som a ambos se impõe.
Afinal, de nós já não precisam aqueles que tão cedo nos foram arrebatados,
suavemente se vai perdendo o gosto pelo que é terreno, tal como ao crescer
nos desprendemos da doçura do peito materno.
Mas nós, que de tão grandes mistérios necessitamos, nós para quem o luto
é tão frequentemente a fonte de feliz amadurecimento —:poderíamos sem eles existir?
.
Rainer Maria Rilke, in "As Elegias de Duíno", Assírio&Alvim.


A eterna corrente da Primeira Elegia de Duíno, este fluir, sempre para a frente e nunca para trás, este viver entre eventos passados e eventos futuros, é o que nós conhecemos como o passar do tempo, a diferença entre passado e futuro. É a estrutura física do tempo / a estrutura temporal do mundo.

Mas vamos dar mais um passo. A esse desfocamento acrescentar a mecânica (indeterminação) quântica, para nos levar a perceber onde se insere a arte na forma elementar da dinâmica do mundo.

Rovelli: A quantização do tempo implica que quase todos os valores do tempo t não existem. Não podemos pensar a duração como contínua, temos de a pensar descontínua: a continuidade é apenas uma técnica matemática para aproximar coisas de grão muito fino. O Bom Deus não desenhou o mundo com linhas continuas: traçou com partículas minúsculas [os quantas], como fazia Seurat. [...]. O tempo é granular, existem intervalos mínimos de tempo (não é contínuo). Numa escala muito pequena, espaço e tempo deixam de ser o que são. [...]. Desse modo a distinção entre presente, passado e futuro, também se torna indeterminada. O incessante acontecer que extenua o mundo não é ordenado por uma linha do tempo, é uma infindável e desordenada rede de eventos quânticos. Descrevemos, portanto, o mundo como acontece, não como é. Mecânica de Newton, equações de Maxwell, mecânica quântica, etc, dizem-nos como os eventos acontecem, não como as coisas são.

Compreendemos a mecânica do mundo no seu devir, não no seu ser!

Sabemos agora que o tempo da física em última análise, está ausente. No entanto, a ausência da quantidade "tempo" nas equações fundamentais da física - o mundo sem tempo da física elementar - não significa um mundo congelado e imóvel, não põe em causa o facto de o mundo ser uma rede de acontecimentos. Pelo contrário significa um mundo onde a mudança é ubíqua sem ser ordenada pelo tempo.

Rovelli: Uma coisa é o tempo com as suas muitas determinações, outra é o simples facto de as coisas não "serem": acontecem. [...]. Toda a evolução da ciência indica que a melhor gramática para pensar o mundo é a da mudança, não a da permanência. Do acontecer, não da falta de dinâmica.

Pensar a mecânica do mundo como uma dança permanente é a única maneira compatível com a relatividade - as quatro dimensões de Einstein (três espaciais e uma temporal: a variável "tempo" é uma das variáveis do campo gravitacional) -, com a ideia de espaço-tempo ou campo gravitacional (e vice-versa) que substitui os conceitos independentes de espaço e tempo da física clássica de Newton. Se deixarmos de lado os efeitos quânticos, tempo e espaço passarão a ser aspectos do molusco einsteiniano no qual estamos mergulhados: na nossa escala, não nos apercebemos das suas flutuações quânticas, portanto, podemos pensá-lo como determinado: o molusco einsteiniano; na nossa escala, os batimentos do molusco são pequenos, podemos negligenciá-los. Assim, podemos pensar o campo gravitacional como uma entidade real com uma dinâmica própria, descrita pelas equações de Einstein. Essa entidade tem direcções, a que chamamos espaço, e aquela ao longo da qual a entropia aumenta, a que chamamos tempo. O campo gravitacional é a origem da força da gravidade, mas também é a trama que tece a grande gelatina móvel com que Einstein reinterpretou o espaço e o tempo de Newton, na qual está desenhado / descrito o resto do mundo.

Mas o mundo é quântico, e a gelatina de espaço-tempo também é uma aproximação. Na gramática elementar da mecânica do mundo, não existe nem espaço nem tempo: apenas processos que transformam quantidades físicas umas nas outras, cujas probabilidades e relações podemos calcular.

Rovelli: O mundo quântico sem a variável t não é um mundo complicado: é uma rede de eventos interligados, onde as variáveis em jogo respeitam as regras probabilísticas que, incrivelmente, em grande parte sabemos escrever. É um mundo claro, ventoso e cheio de beleza, como os cumes das montanhas, como a beleza árida dos lábios fendidos das adolescentes.

Tenho falado muito sobre o processo científico baseado na racionalidade, mas sei que ao contrário da ciência que aspira à objectividade, o que descobrimos com a experiência e, acima de tudo, por intuição, é que no nível fundamental, a "arte" não acontece ordenada pelas rígidas leis elementares da física, que implicam uma ordem material.

— A origem profunda da arte talvez seja, deve mesmo ser, exprimir uma noção de transcendência, mudança, de reflexão, ocupando um lugar fora do nosso mundo. Isto determina o essencial da prática artística.

Aqui se esconde o segredo da arte: um tempo externo ao mundo contemporâneo.

Agora as coisas ficam muito mais claras. Não devemos esquecer-nos de que a ciência entende que 'o mundo visto de fora', é um contra-senso, porque para um um bom cientista não existe 'fora' do mundo [coerente com a realidade física, universal]. Mas isso certamente não significa que 'fora do mundo' não é um espaço possível e que não vale a pena comemorar: o facto da ciência (seguindo uma lógica da realidade/razão) não permitir que o mundo seja visto de uma posição externa e transcendente (no seu todo) - um estranho lugar fora do tempo que não pode ser apreendido pela razão, povoado por obras de arte-, não o torna (o estranho lugar) menos verdadeiro. De facto, é apenas uma consequência lógica da ciência procurar eliminar distorções e ilusões ópticas provenientes do nosso ponto de vista. Estabelecer os limites de todo o conhecimento possível. A ciência aspira a um ponto de vista comum onde possamos estar de acordo. É excelente, no entanto, temos de prestar atenção ao que se perde ao ignorar outros pontos de vista, tratando-os como irrelevantes em relação à ciência.

O que significa exactamente 'fora' do nosso mundo contemporâneo, um espaço fora do tempo? Não há nada de misterioso. Falamos sobre a possibilidade de uma meta-posição [a consciência da natureza interna mais do que externa da arte] — falamos da conservação de objetos históricos e da sua exibição no mundo contemporâneo, esses "fragmentos do paraíso", como menciona Jonas Mekas num dos seus filmes. Embora esses objetos do passado - vistos aqui e agora - pertençam ao mundo contemporâneo, eles não têm uso presente. É claro que existem outros objetos - edifícios urbanos, por exemplo - que têm as suas origens no passado, mas, através do uso dos seus habitantes, eles integram-se no mundo contemporâneo. Mas os objetos de arte não têm uma utilidade concreta, não são usados ​​para fins práticos, não pertencem totalmente ao nosso mundo contemporâneo: esses "fragmentos do paraíso" permanecem testemunhas do passado no presente, após o desaparecimento das culturas que os produziram, um tempo externo ao mundo. Assim, são meta-objetos (fundamentam-se na intuição transcendental, no acontecer, e na reflexão), cruciais para a distinção entre passado e futuro que é ubíquo, ocupando um lugar fora do nosso mundo. 

A arte, portanto, é isto: existe inteiramente no passado, no nosso presente, como memória e como um tempo externo ao mundo. É a fonte da nossa identidade, do nosso sentir a nós mesmos como nós mesmos.

Há certamente alguma coisa de alienígena na arte, talvez ligado ao transcendente, que permite ver e apreender o mundo na sua totalidade. Proust é explícito: A realidade forma-se apenas na memória, escreve na "Em Busca do Tempo Perdido". E a memória do mundo, por sua vez, é um produto directo da arte, uma colecção de fragmentos do paraíso, de vestígios, que nos dizem como o estado do mundo se encontrava no passado.

Desde o início, a obra de arte é tratada de uma maneira que lhe permite sobreviver à cultura. É colocada sob a condição de conservação / preservação, impedida de ser destruída pelo tempo e pelo uso. Ela não é uma mercadoria normal. A mercadoria normal é feita para ser consumida, por outras palavras, para ser destruída. Então, em certo sentido, a arte é uma anti-mercadoria, numa sociedade moderna / contemporânea  que espera que tudo seja útil. E essa é a característica essencial da arte: ela sobrevive à sua cultura original, fazendo uma longa jornada por todas as outras culturas posteriores. Ao mesmo tempo, permanece estranha a essas outras culturas - um estrangeiro entre elas, levando consigo o conhecimento do seu passado., Boris Groys, e-flux, Journal #106, "The Museum as a Cradle of Revolution".

E o que é muito mais importante entender, é que quando pensamos na gramática elementar do mundo, a arte não é uma variável independente distinta das outras inúmeras variáveis em jogo da física teórica que descrevem o universo. As investigações não nos mostram que a arte não faz parte elementar da realidade física. A arte está profundamente ligada ao nosso mundo físico, real. É um aspecto coerente com um mundo dinâmico e concretiza-se apenas na interação. Este interagir é o acontecer do mundo: o mundo não é feito de entidades, é feito de acontecimentos que se combinam... processos, compósitos e limitados no espaço e no tempo.

Descrevemos portanto o mundo como acontece, não como é. Por outras palavras, o mundo é mudança. Todo o devir artístico é um processo gradual de interação.

Resplandece agora claro a sensação de que uma analogia pode ser vista entre arte e energia: a arte tem aquilo que atribuímos à energia no sentido em que falamos de energia no contexto da termodinâmica [energia térmica], como aquilo que governa a evolução no tempo. A arte, portanto, está ligada ao conceito de calor, analogamente, ao conceito de entropia, e a estes estão ligados os fenómenos que caracterizam o fluxo do tempo. Logo, o fluxo do tempo, poderá dever-se à arte, tanto como ao segundo princípio da termodinâmica: o mesmo é válido: a arte distingue, para nós, o passado do futuro e conduz o desenvolvimento do mundo. Por outras palavras, a arte fala de um tempo organizado globalmente ao longo de uma linha, da direção do tempo, memória, vida, do pensamento — exprime a noção de mudança, do acontecer, da evolução. Determina a existência de vestígios, restos e memórias do passado. 
A ideia de que a nossa história passada pode existir apenas na arte é mais convincente do que pode parecer a uma primeira leitura. No presente, vemos apenas o presente; a história, observem, não é um relato de eventos do mundo: é um relato daquilo que existe "unicamente" no interior das obras de arte.

Em definição o seu valor (a arte) não pode ser determinado/aprendido, apenas percepcionado como beleza pura: que estabelece a beleza intencionalmente inútil, no que descreve o absoluto reconhecimento do inatingível. É a forma elementar da arte. Algo que John Baldessari viu e compreendeu claramente em "Pure Beauty" / Tate Modern (2009): 

 

 

Isso não significa que o valor da arte seja arbitrário ou subjectivo. Significa que é um valor relativo. O valor de uma obra de arte não é uma propriedade apenas da obra: é uma propriedade da obra em relação a outra obra, diz respeito à relação entre, e com, o conjunto de obras, história de arte..., ao seu funcionamento em conjunto e em relação a nós, e não existe a entidade "arte" além dessas relações e acontecimentos. O nome "arte" designa apenas um conjunto de relações e de eventos... Uma propriedade relativa. Ter em conta este facto esclarece muitas coisas. Esclarece, por exemplo, a relação entre o que diz uma obra e o que vemos. Para compararmos uma obra de arte com o que vemos, temos de acrescentar uma informação crucial: reconhecer na obra o significado do que sabemos. Um significado que é determinado pelo nosso conhecimento... a obra de arte assume um significado / valor diferente dependendo do sujeito que a critica e das circunstâncias em que é criticada, ou seja, depende do facto de sermos parte dela e da nossa posição nela [3]. Estas críticas indicais fazem referencia explícita ao facto de que existe um ponto de vista, um ponto de vista que é ingrediente de qualquer descrição da obra de arte observada.

Se damos uma descrição da obra de arte que ignora os pontos de vista, que é unicamente "de fora", do espaço, do tempo, de um sujeito, podemos dizer muitas coisas, mas perdemos alguns aspectos cruciais da obra. Porque a obra que nos é dada é a obra vista de dentro, não a obra vista de fora. Muitas coisas da arte que vemos são compreensíveis se tivermos em conta a existência do ponto de vista. Tornam-se incompreensíveis se não o tivermos em conta. Em qualquer experiência, estamos posicionados no mundo: dentro de uma mente, de um cérebro, de um lugar do espaço, de um momento do tempo. Esta nossa posição no mundo é essencial para compreender a crítica de arte, não basta pensar na obra, para compreender a arte, temos de nos lembrar de que vemos essa obra de dentro, de que estamos posicionados nela, em cada instante da nossa experiência. 

Por outras palavras, diversos elementos fundam a identidade de uma obra de arte, e a sua unidade: é um mundo incomum e talvez extravagante, mas não um mundo sem sentido. 

Sabemos que quando fazemos ciência, queremos descrever o mundo da maneira mais objectiva possível. Precisamos de uma teoria que nos diga como as variáveis mudam uma em relação à outra; ou seja, como uma muda quando outras mudam. As equações fundamentais da gravidade quântica são efectivamente feitas assim: não descrevem como as coisas acontecem no tempo (não precisam de uma variável tempo). A teoria quântica descreve a dinâmica do mundo indicando como as coisas mudam "umas em relação às outras", como os factos do mundo ocorrem uns em relação aos outros. É só isso. O mundo é como um conjunto de pontos de vista em relação uns com os outros.

É por esta razão que as nossas vidas mudam tão frequentemente e tão drasticamente, refletindo não uma mudança em nós, mas apenas uma mudança no mundo. O mundo reflecte-se dentro de cada um de nós através de uma rica gama de correlações individuais para a nossa sobrevivência. 

De facto, à medida que o mundo muda, nós, como suas partes, mudamos junto com ele. Cada um de nós é um processo complexo que reflecte o mundo e elabora as suas informações de maneira estritamente integrada. A tradição religiosa, juntamente com a filosofia idealista, entendia a alma ou a razão de alguém como imaterial e puramente espiritual, permitindo que o mundo na sua totalidade fosse visto de uma posição externa e transcendente. Mas um ser humano não pode existir fora do interior do mundo, é apenas uma coisa material entre outras coisas materiais, componentes da natureza, uma peça na imensidão do universo; então a metaposição parece impossível: e não podendo assumir uma posição externa em relação ao mundo ou melhor longe da civilização, não será capaz de ver e compreender o mundo na sua totalidade — para mudar radicalmente o mundo. 

Da nossa perspectiva, a perspectiva de criaturas que são uma pequena parte do mundo, vemos o mundo fluir no tempo. A nossa interação com o mundo é parcial, por isso o vemos desfocado. E como o mundo é mudança, o processo de mudança é permanente, todo o acto de mudança é anulado pela próxima mudança. Não é um mundo estático, nem um universo em bloco: pelo contrário, é um mundo de eventos e não de coisas. 

Este processo permanente não pode ser controlado, direccionado ou mesmo descrito exactamente, pois só podemos sentir os seus efeitos e não pensar em termos de 'causas' que antecedem os 'efeitos': a causa de um evento futuro é um evento passado. Na nossa experiência, a noção de causa é assimétrica no tempo: a causa precede o efeito. Quando reconhecemos que dois eventos 'têm a mesma causa', em particular, encontramos essa causa comum no passado, não no futuro.

Também podemos participar desse processo de mudança modificando certos detalhes no mundo, mas continuamos incapazes de ver as consequências dessas mudanças específicas, não somos capazes de prever ou mesmo analisá-las. Todo o processo de mudança se apresenta aleatório, ineficiente e sem objectivo final., Boris Groys, e-flux, Journal #106, "The Museum as a Cradle of Revolution".

A ignorância daí decorrente determina a existência de uma entropia que quantifica a nossa incerteza. E o aumento de entropia diferencia o passado do futuro: nós, seres humanos, somos um efeito desta grande história do aumento de entropia, mantidos juntos pela memória permitida pela existência de vestígios e memórias do passado [fragmentos do paraíso]. Vivemos de relações, emoções e pensamentos que nos ligam uns aos outros em redes. Em especial, reagrupamos numa imagem unitária o conjunto de processos que constituem os organismos vivos que são os outros seres humanos, porque a nossa vida é interdependente e, portanto, interagimos muito com eles, e eles são entrelaçamentos de causas e efeitos muito relevantes para nós. Somos reconhecidamente parte de uma rede que vai muito além dos dias da nossa vida. As redes, por sua vez, transformam-se umas nas outras, perspectiva sobre o mundo unificada pela memória.

Este conceito traz à superfície a necessidade de nos determos na alteridade essencial de uma obra de arte. De facto, estamos totalmente imersos num mundo contemporâneo ou melhor na civilização contemporânea — em que frequentemente se fala de diferentes culturas, pressuposto básico de que existem pessoas e culturas singulares e subjectivas que pensam, agem e entendem o mundo das suas próprias maneiras. Existe, afinal de contas, aquela noção trivial mas profunda da voluntária suspensão da descrença. A arte verdadeira (esses "fragmentos do paraíso") faz-nos apostar a nossa credulidade no que é visivelmente inútil. Apanha-nos de surpresa. E, para que a arte nos apanhe desprevenidos, temos de a experienciar, de nos pôr na mão de outro mundo — a obra de arte. Porém, tudo na nossa sociedade, tão saturada com imperativos económicos, nos diz para não nos rendermos nem por um momento, convencendo-nos de que as únicas formas de expressão cultural em que podemos confiar são as que nos dão gratificação instantânea, informação útil ou uma imagem refletida de nós próprios. Assim, somos inundados pelo tipo de arte que desvaloriza a atenção profunda, que nos fala da espuma dos dias, e que corresponde às nossas personalidades.

E tudo isto tem um efeito profundo, hoje, na nossa cultura: a suposta segurança da opinião de massas, a ideologia que sugere que partilhemos todos o mesmo ponto de vista, o melhor ponto de vista — a crescente incapacidade para se aceitar pontos de vista que difiram do status quo, do moralmente superior, a inclusão de todas as pessoas na mesma forma de pensar. Em grande medida, nunca me convenceu a ideia de que o mais importante na nossa experiência é o facto de partilharmos todos o mesmo ponto de vista!

Rovelli: Os quanta elementares do campo gravitacional que vivem na escala de Planck são os grãos elementares que tecem o tecido móvel [o espaço-tempo] com que Einstein reinterpretou o espaço e o tempo absolutos de Newton. São eles, e as interações entre eles, que determinam a extensão do espaço e a duração do tempo.

Este é o mundo real com o qual a visionária artista sueca Hilma af Klint, (1862-1944), procurou ajustar as contas, no sentido da expressão da sua obra, para levar a humanidade a uma nova sensibilidade. A redescoberta do trabalho de Hilma, como pioneira da arte abstrata, tem sido aclamada em todo o mundo; em 2019, a retrospectiva "Hilma af Klint: Paintings For the Future" bateu todos os recordes de visitantes no Museu Guggenheim. 

As suas pinturas estiveram escondidas durante décadas, mantidas em segredo por décadas após a sua morte. A maravilhosa série de grandes pinturas "The ten larget" (1907), são uma representação simbólica abstrata do ciclo integral da vida: as duas primeiras representam a infância (o passado), seguidas por painéis que representam a juventude, a idade adulta e a velhice. Uma experiência transformadora. 

O ocultismo das suas pinturas cresceu a partir de experiências com o contacto com a eternidade, entrando em estado de transe: muitos dos elementos presentes nas suas pinturas aparecem como o caos primeiro. A sua pintura não tem apenas uma dimensão visual, mas também uma dimensão transcendente: 

 

 

Este é o mundo descrito por Hilma af Klint. Fala do momento em que o artista supera a temporalidade e se sente como o todo, ajuda-nos a penetrar camadas desse mistério. Esclarece a importância da arte na transformação do pensamento. É o mundo sem tempo da arte elementar, que por si só nos abre para níveis mais profundos de percepção global do nosso ser -compreender a arte significa reflectirmos sobre nós mesmos -, e empatia pelo outro, por pessoas diferentes de nós, de educação e conhecimento, em todos os tempos simultaneamente, não num momento particular da sua existência, mas como um todo... Talvez tenha acabado de compreender que a veracidade ou a falsidade da profética amizade do cérebro com a beleza, de que nos falou Dostoiesvski, com a misteriosa frase A beleza salvará o mundo, numa passagem do "Idiota"... talvez seja apenas uma indeterminação quântica (que por si só não conhece espaço nem tempo. Apenas eventos e relações), no final de contas.

O fenómeno da pandemia colocou em perspectiva (mais do que nunca) a importância da ciência e da cultura - especialmente a nossa necessidade de criarmos pensamento crítico e a compreensão da natureza - para melhor pensarmos este estranho mundo, mais justo e solidário, com o conhecimento, a arte e a criatividade mais presentes no futuro e em comunicação com a natureza. Gostava de pensar que fosse sabedoria comum valorizar as coisa certas: que os políticos (em especial o governo do nosso país) agissem em conjunto por uma visão política de investimento em arte e cultura não como um conceito meramente retórico mas como a solução para vislumbrar-nos alguma coisa sobre a mudança, sobre a harmonia entre o indivíduo e a natureza — para com educação, arte e ciência fazermos um futuro melhor!

 

 

 


victor pinto da fonseca
Licenciado em engenharia mecânica, dirige a artecapital e a plataforma revólver - para a arte contemporânea.

 

 


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Notas


[1] A perspectiva de que a sociedade, o sistema educacional e a vida intelectual são alvo de uma dialéctica entre duas culturas - a primeira subordinada às artes e às ciências humanas e a segunda relativa às ciências exatas - tem já uma longa história. Mas foi através da obra "As Duas Culturas" de C.P.Snow, publicada em 1959, que esta temática obteve debate público e destaque mediático. 

[2] Carlo Rovelli, é físico teórico e membro do Instituto Universitário de França e da Academia Internacional de Filosofia das Ciências. É, actualmente, responsável pelo departamento de Física Teórica da Universidade de Aix-Marseille.

[3] Uma filósofa contemporânea que esclareceu com profundidade estes aspectos perspécticos do mundo, é Jenann Ismael, no seu livro "The Situated Self".